sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

cores




CORES


Um sorriso amarelo encontrou um dia um sorriso azul e os dois sorriram um lindo sorriso verde.



Misturou sumo de tomate com sumo de limão e estranhamente obteve o que parecia ser sumo de laranja.



Estava debruçada a pintar um céu azul, quando começou a deitar sangue do nariz, e as gotas que caíram transformaram-se em violetas.

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

Exercício Inconsequente



Foi a última coisa que disse, mas ninguém o ouviu.
Ninguém o ouviu, e ele sabia que nenhum era surdo.
Nenhum era surdo, mas todos ouviam apenas o que queriam.
Ouviam apenas o que queriam mas viam ainda menos.
Viam ainda menos, mas estavam muito mais atentos.
Estavam muito mais atentos, mas não percebiam patavina.
Não percebiam patavina, mas também ninguém estava à esperava que percebessem
coisa alguma.
Ninguém estava à espera que percebessem coisa alguma, bastava que concordassem.
Bastava que concordassem, e foi isso que fizeram.
Foi isso que fizeram, e também isto e aquilo.

Isto e aquilo são a mesma coisa, afirmou, mas bem sabia que assim não era.
Assim não era possível, disseram-lhe, e era verdade, pois por mais que tentasse foi
sempre impossível.
Foi sempre impossível, ainda que às vezes quase parecesse possível.
Ainda que às vezes quase parecesse possível, ele gostava sempre de dizer que era
impossível.
Ele gostava sempre de dizer que era impossível, e às vezes até ele acreditava.
Às vezes até ele acreditava nas suas mentiras.

Nas suas mentiras encerravam-se muitas verdades.
Muitas verdades são esquecidas, outras apenas ignoradas.
Apenas ignoradas e nunca esquecidas estão muitas coisas que em nós fazem toda a
diferença.
Fazem toda a diferença, disse ele, sobretudo as pequenas coisas a que não damos
qualquer importância.
Não damos qualquer importância a quase tudo que é realmente importante.

Realmente importante é o amor, ele devia ser a nossa religião e a nossa fé.
A nossa fé, disse ele, consiste em não acreditar em nada.
Não acreditar em nada é ser capaz de acreditar em tudo.
Ser capaz de acreditar em tudo é estar aberto a tudo.
Estar aberto a tudo é estar completamente vivo.
Completamente vivo, disse ele, estou completamente vivo.
Estou completamente vivo, disse ele, mas estava quase morto.

Estava quase morto e ainda não o sabia.
Ainda não o sabia, mas ia sabê-lo não tardaria nada.
Não tardaria nada, já estava acontecer.
Já estava a acontecer, ainda que não o soubessem.
Ainda que não o soubessem, já pouco podiam fazer.
Já pouco podiam fazer, a não ser esperar.
A não ser esperar só lhes restava desesperar.
Só lhes restava desesperar: desesperaram.
Desesperaram e continuaram a desesperar.
Continuaram a desesperar porque nada mais lhes restava.
Porque nada mais lhes restava, começaram tudo de novo.
Começaram tudo de novo, uma e outra vez.

Uma e outra vez tentou ouvir, mas não conseguia.
Tentou ouvir, mas não conseguia, e quase desistia.
Quase desistia, não fosse ser teimoso.
Não fosse ser teimoso há muito que estaria vencido.
Há muito estaria vencido se não acreditasse na vitória.
Se não acreditasse na vitória só lhe restaria a derrota.
Só lhe restaria a derrota, se renunciasse ao sonho.
Se renunciasse ao sonho, teria de viver na realidade.
Teria de viver na realidade, estava a imaginar coisas.

Estava a imaginar coisas e não era a primeira vez.
Não era a primeira vez, nem seria a última.
Nem seria a última, rematou.
Rematou, falhou.
Falhou, voltou a tentar.
Voltou a tentar, voltou a falhar.
Voltou a falhar, pensou em desistir.
Pensou em desistir, seguiu em frente.
Seguiu em frente, seguiu o caminho.
Seguiu o caminho, passo após passo.
Passo após passo avançou.
Avançou e estava cada mais próximo.
Estava cada vez mais próximo, próximo de desistir.
Próximo de desistir, mas ainda longe.
Mas ainda longe já via a meta.

Já via a meta, dentro da sua cabeça.
Dentro da sua cabeça, era o vazio.
Era o vazio, um vazio construído.
Um vazio construído, feito de nadas.
Feito de nadas, assim sou eu.
Assim sou eu, disse ele, e calou-se.
Calou-se, mas não era o fim.
Não era o fim, mas já tinha acabado.
Tinha acabado, mas ninguém sabia.
Ninguém sabia até que ele disse: é o fim.
É o fim, disse ele, e foi a última coisa que disse.

[Escrever é continuamente dobrar e desdobrar palavras à procura de um sentido.]

Antologia Pessoal

O ESSENCIAL


1 - QUEM SOMOS? (sobre o eu e a sua relação com o mundo)


Não é verdade nem mentira que o dia esteja cinzento mas eu sei que está, ou talvez eu esteja. Sempre tive dificuldades em distinguir o interior do exterior, o côncavo do convexo, o dentro do fora, o eu dos outros. Este facto trouxe-me bastantes problemas ao longo da vida e vi-me forçado, inúmeras vezes, a explicar aos outros o que, no geral, chamavam as minhas distracções e, nalguns casos, as minhas bizarrias. As coisas são o que são e disso nunca tive dúvidas, embora saiba perfeitamente que não é verdade nem mentira que o sejam. A realidade e a ficção são duas faces da mesma moeda, por assim dizer. Foi nisto que sempre acreditei e toda a gente que me conhece sabe que é assim. Quando anunciei que me apaixonara por uma personagem de ficção e íamos casar, todos foram unânimes em dizer que o casamento não fazia sentido: eu vivia no mundo da lua, nunca iria resultar.


Ela tocou-lhe a mão sobre a mesa com as pontas dos dedos. Ele estremeceu interiormente. Não tinha sentido a suavidade de uma carícia ou a displicência de um choque ocasional; fora um toque intenso, profundo, interrogativo, a pôr em causa a sua própria existência — a mais extraordinária experiência metafísica que alguma vez tivera.


2 – COMO CHEGAMOS A SER QUEM SOMOS? (sobre o tempo e as metamorfoses)


Passeava pelo jardim municipal quando se sentiu diferente. Um quase nada. Uma fugidia sensação de mudança. Tentou desesperadamente capturá-la, mas em vão. Sentou-se num banco, desanimado, e ficou à espera.


Uma a uma, inexoravelmente, as suas possibilidades começaram a diminuir. O homem apercebeu-se disso mas, apesar de todos os seus esforços, não conseguia inverter a tendência. Não era muito esperto nem dispunha de qualquer talento, era um homem sem qualidades, como podia ele escapar da armadilha que é o mundo? Certo dia, tirou um romance da estante e começou a lê-lo. A páginas tantas, suspendeu a leitura, por coincidência, no exacto momento em que mais nenhuma hipótese do que ser quem era lhe restava. Não teve consciência desse facto, e durante anos ainda acreditou que a sua vida podia mudar.


3 – O QUE É O AMOR? (sobre as várias formas do amor)


Adormeceu a pensar nela e acordou a pensar nela. Vários dias depois continuava a pensar nela. Este sentimento era-lhe tão agradável que decidiu preservá-lo. Desapareceu sem deixar rasto e nunca mais a procurou. Foi bem sucedido. Ainda hoje, decorridos mais de vinte anos, continua loucamente apaixonado por ela.


No exacto dia em que fez dezoito anos, mais precisamente no final do almoço de aniversário, o pai desejou-lhe muitas felicidades e convidou-o a sair de casa, imediatamente, era tempo de viver a sua vida, já era um homem feito, com tudo o que isso implicava de direitos e deveres. Agradeceu ao pai, tudo o que tinha feito por ele, e saiu sem mais demoras nem bagagem. Não lhe guardou ódio ou rancor; vinte anos depois, quando o pai morreu, depois de lhe ter sido diagnosticada uma doença terminal, foi ele o único que esteve ao seu lado, mesmo até ao fim, ajustando-lhe a almofada, contra o rosto. Todos os anos, por altura do aniversário da sua morte, leva-lhe flores à campa rasa e sorri, mansamente.


4 – PORQUÊ LER E ESCREVER? (sobre os livros, a escrita e a leitura)


Sentiu, pela primeira vez, uma imensa vontade de escrever, mas não tinha a mínima ideia de como lhe podia dar forma. Talvez uma carta para um amigo, mas não os tinha, talvez uma poesia de amor, mas não estava apaixonado, talvez um pequeno conto, mas ninguém o leria, talvez o seu testamento, mas não tinha quaisquer bens. Acabou por nada escrever quando podia ter escrito alguma coisa de extraordinário e perene. Mais tarde, ultrapassado aquele momento, acabou por produzir uma obra extensa e bem recebida pela crítica, mas nunca mais sentiu aquela vontade imensa de escrever. São coisas que acontecem.


Abriu o livro ao acaso e leu uma linha, mais precisamente a quinta linha da página 145. Ficou muito perturbado, o rosto lívido e a voz embargada, parecia que ia começar a chorar mas conteve-se com esforço. Leu mais uma linha, desta vez a décima da página 31, e riu com gosto durante muito tempo. Depois foi a vez da linha trigésima da página 222: um autêntico convite à reflexão que lhe foi impossível declinar. Devolveu o livro ao seu lugar na estante e pensou emocionado, entre o choro e o riso, que só a literatura dá sentido à vida.


5 – PORQUÊ CONTAR HISTÓRIAS? (sobre a arte e a necessidade de contar histórias)


Todas as histórias têm de ter um fim, nem que seja, ou sobretudo por isso, para que outras comecem. Quantas histórias deixamos por acabar, histórias que precisavam de terminar para que outras pudessem começar. E só nós, cada um de nós, pode terminar essas histórias. Ele sentiu-se atraído por ela. Sentiu vontade de a conhecer e de se dar a conhecer. Tentou aproximar-se, estabelecer uma relação; mas, a partir de certo momento, o que deveria ser uma aproximação transformou-se numa despedida. Podíamos... — disse ele para si mesmo, e não era o início de uma frase, mas sim um ponto final numa história que, como todas as histórias, precisava de um fim.


Um homem que passeava o seu cão no jardim público desapareceu misteriosamente. Desapareceu de repente, à frente de várias testemunhas. Todas as pessoas interrogadas foram unânimes em afirmá-lo, não houve forma de demovê-los, o homem desaparecera no ar. Os jornais falaram em alucinação colectiva, chegando mesmo alguma imprensa a afirmar que o homem fora raptado por alienígenas. Nunca se soube quem era e, apesar das investigações realizadas, parecia nunca ter existido. Muitas pessoas foram ouvidas, muitas opiniões foram avançadas, mas ninguém deu atenção ao escritor que, em poucas palavras, explicou o sucedido: o homem caíra fora da sua história.


6 – O QUE SE PODE DIZER COM MEIA DÚZIA DE PALAVRAS? (sobre a brevidade)


Depois de muito tentar conseguiu. Conseguiu sabe-se lá o quê.


Mudou de carro. Mudou de nome. Mudou de aspecto. Mudou de profissão. Mudou de residência. Nunca ninguém conseguiu perceber porquê. Nem ele.


7 – A VIDA TEM UM SENTIDO? (sobre o que parece não ter explicação)


Levantou-se e permaneceu sentado, fechou o livro e continuou a leitura. Desde que se levantara da cama, manhã cedo, tudo lhe saíra ao contrário, sem que conseguisse, no final do dia, encontrar uma única explicação para tudo o que acontecera. Levantou-se e de novo permaneceu sentado, voltou a fechar o livro e leu-o até ao fim. Durante algum tempo pensou em tudo o que fizera nos últimos anos, a vida tinha-lhe corrido bem, a sorte nunca lhe tinha faltado, a sublinhar, é certo, opções correctas. Levantou-se e mais uma vez permaneceu sentado, fechou o livro e foi deitar-se, convencido de que amanhã seria outro dia e talvez tudo voltasse ao normal, afinal só a morte não tinha remédio. Nada disso, nada mas mesmo nada disso, adormeceu e nunca mais acordou, saiu-lhe tudo ao contrário, menos a morte, que é astuta e maliciosa e não gosta de contradições.


Ontem, cerca das 21 horas, um homem matou a mulher por causa de um iogurte. Ele queria comer iogurte mas a mulher queria que ele comesse sopa. Eram horas de jantar, disse-lhe ela, comer iogurte estava fora de questão. Discutiram durante muito tempo, em voz alta, quebrando copos e pratos. A dada altura o homem agarrou um garfo, avançou lentamente em direcção da mulher, e espetou-lho com força na jugular. Depois foi para a varanda comer o iogurte. Era um iogurte cremoso e com pedaços de pêssego amarelo. O homem adorava aqueles iogurtes e comeu-o com prazer. Interrogados os vizinhos, aqueles foram unânimes, todas as horas são boas para se comer iogurtes.


8 – A MORTE É UMA OPÇÃO? (sobre o suicídio e outras atitudes perante a morte)


Não queria morrer sem deixar rasto, ignorado, incompreendido, apenas mais uma breve notícia numa página interior de um jornal local. Não só o seu suicídio deveria estar carregado de um claro e grandioso simbolismo trágico, mas também o bilhete de despedida, inevitável, teria de ser brilhante, conciso e comovente. Começou pela tarefa que lhe pareceu mais fácil; terminou duzentos e cinquenta e sete bilhetes de despedida, que lhe consumiram seis meses de intensa actividade, mas, apesar da elevada qualidade de todos, nenhum lhe pareceu verdadeiramente ajustado ao seu sentir. Uma grande editora interessou-se pelo seu trabalho e publicou-o sem demoras, tendo atingido, em seis meses, seis edições e cem mil exemplares. Aceitou o sucesso com indiferença, um ano depois morreu, famoso, sem deixar qualquer bilhete de despedida; o seu suicídio continua por explicar.


Foi o último a saber que tinha morrido. Durante muitos dias frequentou os locais habituais sem se aperceber que estava morto. Claro que todos sabiam mas ninguém lhe disse nada. Não é uma coisa muito agradável para se dizer a quem quer que seja e ninguém o queria entristecer. Ele sentia-se bem, muito bem, e só quando se apercebeu que essa sensação não desaparecia é que soube que estava morto.


9 - O QUE PODEMOS SABER? (sobre lições de vida e sabedoria)


Era uma vez um homem a quem nada corria bem. Como era dado à reflexão, passava muito tempo a pensar na sua vida. Disciplina e persistência é tudo o que é preciso para obter o que desejamos: foi a esta conclusão que ele chegou finalmente. E se assim o pensou mais depressa o fez. Mas não havia nada a fazer. A disciplina e a persistência foram inúteis no seu caso. Escreveu um livro sobre o assunto, que se tornou um campeão de vendas, e foi feliz para sempre. Morreu, sem que se saiba porquê, num sete de Outubro.


O mestre zen tinha dois alunos que estavam sempre em desacordo. Se um afirmava alguma coisa logo o outro a negava e as discussões nunca tinham fim. Numa discussão mais acesa, um deles empurrou vigorosamente o outro, que caiu no chão desamparado. O mestre ia a passar e assistiu a tudo. Aproximou-se do aluno caído e ajudou-o a levantar-se. Depois, dirigindo-se aos dois, censurou-os com rudeza: quem não sabe dominar o seu discurso não sabe dominar as suas consequências. Os alunos olharam um para o outro, e depois para o mestre, e deram-lhe uma tremenda sova que o deixou prostrado.


10 – O QUE PODEMOS FAZER? (sobre as diversas atitudes perante a vida)


Esperou por ela uma hora. Já tinha bebido dois gins tónicos e comido quase uma cesta de pão variado com um queijo seco de cabra. Telefonara-lhe duas vezes, e das duas deixara mensagem. Pediu a ementa e a lista dos vinhos e, depois de uma leitura atenta e minuciosa, encomendou o jantar: rosbife, com puré de maça e batatinhas coradas, e uma garrafa de vinho tinto, reserva, do Douro. Comeu e bebeu com um prazer intenso, tonto de sabores e aromas. Não quis sobremesa, terminou com um café forte, da Etiópia. Quando ela chegou queixando-se do trânsito e da vida, ele sorriu-lhe, levantou-se e saiu, deixando-lhe a conta para pagar. Caminhou durante meia hora, aspirando voluptuosamente o ar frio da noite lunar; sentia-se feliz. Decidiu jantar mais vezes sozinho.


Subitamente, sentiu-se triste, mais do que isso, sentiu que nada mais era do que tristeza, como se todos os outros sentimentos o tivessem abandonado, deixando atrás de si apenas a tristeza, esmagadora e cruel. Olhou a chávena fumegante de café com leite, suspensa da imobilidade da sua mão direita, e riu. Riu sonoras gargalhadas que abriram espaços vazios na densa tristeza que ainda sentia e, pouco a pouco, se foram enchendo de memórias, ternas e doces, alegres e cómicas, até que a tristeza se dobrou sobre si mesma, voltando à sua condição de nó cego à espera de um desenlace.

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

Causa e efeito ou de como escrever uma história muito pequena



Começar com uma frase, como por exemplo, e porque não, "um homem ganhou o maior prémio de sempre no Euro Milhões", que é afinal o que todos gostaríamos. E a história poderia ser a que sonhamos.

Era uma vez um homem que ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões e viveu feliz para sempre.

No entanto é uma história bastante comum e aborrecida: sem mistério e sem surpresa.

Um homem ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões. Depois acordou, e foi a correr entregar o seu boletim.

É ainda uma solução fácil mas já diz muito mais que a primeira. E por que não quebrar a relação causa e efeito que se estabelece normalmente entre o dinheiro e a felicidade?

Um homem ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões. Durante algum tempo foi feliz. Depois, nem por isso. Mas ainda hoje é rico.

Está um pouco melhor. Também não é completamente invulgar que alguém morra ao saber que ganhou bastante dinheiro. Experimentemos-lhe uma variação.

Um homem ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões. A mulher deu-lhe a notícia momentos antes de o matar.

E para terminar pensemos no que seria menos provável que acontecesse a alguém que ganhasse uma grande soma de dinheiro. De certeza que dará uma boa história.

Um homem ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões. No dia seguinte suicidou-se. A decisão estava tomada há muito.

E assim se escreveram histórias muito pequenas.

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010


Tiburcio 439


Nunca me engano e raramente tenho dúvidas, dizia quando questionavam a sua eficiência. Para serem mais honestos do que eu teriam de nascer duas vezes, dizia quando questionavam a sua credibilidade. Era sério, muito sério, mas a verdade é que lhe faltava quase tudo para ser um homem a sério.

domingo, 26 de dezembro de 2010

Não me perguntem porquê [17]



[…]



No domingo seguinte, ao meio-dia, Ângelo Durão tentou ouvir-se no programa de rádio, mas o programa que foi para o ar não foi aquele em que estivera. Ficou a ouvir durante algum tempo, mas devia ter havido algum engano, e embora o programa fosse o mesmo em que estivera, a Rua do Imaginário, aquela não era a emissão em que estivera. O autor falava de um programa concebido como um todo e com uma intenção artística, dizia que o texto que servia de base era da sua autoria, e Ângelo Durão admirou-se pois ninguém lhe tinha dito que o outro também escrevia. Não o tinha visto na tertúlia mas se calhar também era um frequentador. Ouviu falar de realidade e de ficção, de como eram uma e a mesma coisa, escutou jazz, muito jazz, mas não se ouviu a si mesmo, o que aliás não o incomodou nem um pouco.

Já quase se tinha esquecido do programa quando o seu autor lhe telefonou pedindo-lhe desculpa - tinham colocado na repetição um programa anterior, infelizmente acontecia muitas vezes - e a dizer-lhe que tiver algumas reacções ao programa e se ele não queria ali voltar.

“Reacções?”, estranhou Ângelo Durão. “Que reacções?”

“Alguns leitores entraram em contacto comigo.”

“Leitores?”

“Leitores do livro”, disse o outro, lendo o espanto de Ângelo Durão e soltando uma gargalhada. “Não contava com os leitores?” “Olhe que os livros têm leitores”, e riu novamente.

“Não me interessam os leitores”, respondeu finalmente Ângelo Durão.

“Lançámos um desafio, seria agora interessante confrontar-nos com a opinião dos leitores”, disse o autor do programa. “Gostava de o ter aqui outra vez.”

“Mas terei de falar com essas pessoas?”

“Poderia ser feito”, disse o outro, a ver onde paravam as coisas.

“Não me interessam os leitores, interessa-me apenas o livro.”

“Isso quer dizer que posso contar consigo no próximo programa?”

sábado, 25 de dezembro de 2010

gente comum - porque todos somos especiais


Serafim de Jesus


Acreditava que tudo na sua vida se deveria limitar a acontecer. Ainda muito novo deixou o cabelo crescer e muitos anos passaram, tantos que lhes perdeu a conta, já o cabelo quase tocava o chão. Foi então que se decidiu. Cortou o cabelo à careca e deixou-o, de novo, crescer.


sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Carta de alforria

Quando lhe foi concedida a liberdade tomou de imediato uma decisão: ia continuar a trabalhar para o patrão. Anos mais tarde, quando o patrão morreu, decidiu-se: ia continuar a trabalhar para o filho do patrão.

gente comum - porque todos somos especiais

Segismundo Savedra

Repetidas vezes sonhou que acontecia, que acontecia mesmo, mas disse sempre a si próprio que nunca, mas nunca, ia acontecer, e a verdade é que não só nunca chegou a acontecer como deixou mesmo de acontecer de um todo. Pode parecer muito difícil de perceber, mas até é bastante fácil.

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

A arte do romance

René Magritte, O assassino ameaçado

*

Amava as mulheres

como amava as flores.

Contemplava-as distante,

aproximava-se lentamente,

aspirava-lhes todo o ser

e depois colhia-as

de morte.

Nunca digas não facerei

Não me perguntem porquê [16]

[…]



O advogado passou a mão forte pelo rosto, como que a sentir a barba impecavelmente escanhoada. Ângelo Durão aguardava uma resposta, mas já a adivinhara, e pela primeira vez foi ele a tomar a iniciativa.

“Não tenho qualquer hipótese, não é?”

O advogado, e também poeta, não respondeu. Era um bom advogado, cauteloso e consciencioso. Se bom ou mau poeta, avalie quem o ler, que o mesmo poeta é muitas vezes bom para uns e mau para outros, pois digam o que disserem tudo depende afinal do gosto (ou se gosta ou não se gosta) e a da autenticidade (ou se é ou não se é diferente).

Ângelo Durão levantou-se, e o outro levantou-se também, rodeou a secretária, e aproximou-se dele.

“Não tem qualquer hipótese de conseguir o que quer”, disse-lhe. “Qualquer hipótese legal, pelo menos, mas talvez pudesse encetar algumas negociações que poderiam dar os seus lucros.”

Ângelo Durão olhou-o com o seu rosto triste de náufrago e disse-lhe com determinação que não iria desistir.

“Não tem nenhuma hipótese em termos legais de ver o livro retirado de circulação. E não estou a ver porque o farão de livre vontade. É verdade que rumores de má conduta poderão pôr em causa as duas empresas que financiaram o prémio, mas desconfio que isso até aumentaria as vendas e, no final, acabariam sempre por ganhar.”

Ângelo Durão abrira desmesuradamente os olhos e parecia querer fulminar o advogado, que sorriu ao vê-lo tão magro e desengonçado à sua frente, como um D. Quixote que recordava de um livro de leitura da sua infância, à beira de uma apoplexia, mas determinado e aguerrido.

“No final, se fizer escândalo, eles até lhe agradecem”, continuou o advogado, discretamente aproximando-se do outro, pronto a imobilizá-lo, não fosse o diabo tecê-las, mas Ângelo Durão voltara a sentar-se e chorava em silêncio, as lágrimas descendo-lhe pelo rosto inexpressivo.


todos os nomes

terça-feira, 21 de dezembro de 2010

O homem e o espelho (réplica no feminino]



René Magritte, La condition humaine

*

O amor


Uma mulher olhou-se ao espelho
e viu-se
apaixonada.
Ficou surpreendida,
mas nada,
mesmo nada
admirada.
Olhara-se ao espelho,
apenas para confirmar
aquilo de que nunca
duvidara.
Que de novo se iludira.

O homem e o espelho (réplica numero 2)

René Magritte, O espelho mágico

*

Um homem olhou-se ao espelho

e viu-se velho,

os cabelos brancos,

o rosto enrugado.

Ficou muito surpreendido.

Um dia antes ainda era novo.

Olhou-se de novo ao espelho,

desconfiado,

abriu muito os olhos

e suspirou:

Como o tempo passa

depressa.


não se fala com a boca cheia

segunda-feira, 20 de dezembro de 2010

O homem e o espelho (réplica)

René Magritte, O espelho falso

*

Um homem olhou-se ao espelho

e não se viu.

Ficou muito surpreendido

e assustado.

Esfregou os olhos,

olhou de novo e de novo

não se viu.

Só depois de se ter visto

a todos os outros espelhos da casa

é que percebeu afinal

que o espelho da casa-de-banho

estava cego.

[pequena história n.º 469]


A primeira vez que participou num concurso literário foi-lhe atribuído o primeiro prémio. Ficou entusiasmado. Da segunda ganhou o segundo prémio. Ficou intrigado. Da terceira, espanto dos espantos, coube-lhe o terceiro prémio. A partir daí concorreu mais de mil vezes, mas não voltou a ganhar, não obstante a sua escrita se ter aperfeiçoado cada vez mais com o correr dos anos e ter chegado mesmo a alcançar aqui e ali a perfeição. [A moral desta história vem mesmo a propósito, como aliás é esperado nestas ocasiões: Concentra-te no que fazes e não te preocupes com o resultado dos teus actos.]


Não me perguntem porquê [15]


[…]



As palavras não são poesia

Umas vezes despertam-na

Outras vezes matam-na

Mas nunca são poesia


Podem até ser poema

Mas nunca são poesia



suspenso

domingo, 19 de dezembro de 2010

O homem e o espelho


René Magritte, La Reproduction interdite (portrait d’Edward James), 1937.

*


Um homem olhou-se ao espelho

e viu-se

a sorrir.

Ficou muito surpreendido.

Sentia-se triste,

abatido, desanimado.

E no entanto...

Olhou-se de novo ao espelho,

atentamente,

e percebeu, afinal,

que era o espelho

que sorria.


palavras para quê?

sábado, 18 de dezembro de 2010

sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

[pequena história n.º 450]

A pedra no sapato

Era uma vez um homem que tinha uma pedra no sapato e, por mais vezes a deitasse fora, nunca dela se via livre, pois a pedra, a mesma ou outra, sabe-se lá, sempre voltava a aparecer como por artes mágicas. O homem desesperava e não encontrava solução, até que depois de muito matutar resolveu não mais se calçar. Muitos foram os que acharam que ele endoidecera, muitos os que riram dele, e muitos deixaram até de lhe falar. Mas o homem não se importou mesmo nada. A verdade é que se sentia muito melhor e só isso era realmente importante.


teatromosca



O teatromosca esteve no CAPA, em Faro, e o António Baeta esteve lá e dá notícia desse acontecimento. Também estive lá e subscrevo as palavras dele.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Aguinaldo Linguado


O lânguido linguado, muito recordado e venerado, quer entalado quer adornado, ensopado ou salteado, ora irritado ora esgotado, nunca punha a língua de lado e por rimas era tarado. Também tinha um fraco por anagramas, como a sua prima Guindola que, tal como ele, não batia muito bem da bola.


humor negro

Na última terça-feira li dois textos de Marina Colasanti no Draculea e senti que mexeram bastante com os ouvintes. Deixo aqui mais um texto seu e dois de Ana Maria Shua, para ali ler numa próxima terça-feira.


*

301

Do poleiro ele não fugiria. Garantiam sua permanência a argola de ferro no pé e a ponta da asa cortada. Sem ele, que solidão insuportável seria sua vida. Sim, era outra mulher. Lavava, passava, cantava na cozinha e crescia plantas.Longe estavam os dias de choro e desespero. Distante aquela tarde em que, o formicida pronto na cozinha, a campainha tocara interrompendo o gesto.

E da porta, louro e alado, o adolescente lhe dissera:

- Não chora, vim lhe ajudar. Sou seu anjo da Guarda.


( Marina Colasanti, A morada do Ser)

*

Yo todo lo consulto com la almohada porque la sé de buen juicio. Ella me escucha en silencio y me responde con sensatez. En la conversación interviene la frazada. Al final, siempre le hago caso al colchón, que es un

irresponsable.

(Ana Maria Shua, La Sueñera)


Consulto sempre a almofada porque sei que ela é boa conselheira. Escuta-me em silêncio e responde-me com sensatez. O cobertor mete-se na conversa. No final, dou sempre razão ao colchão, que é um irresponsável.

(mudada por mim)


*


Un hombre sueña que ama a una mujer. La mujer huye. El hombre envía en su persecución los perros de su deseo. La mujer cruza un puente sobre un río, atraviesa un muro, se eleva sobre una montaña. Los perros atraviesan el río a nado, saltan el muro y al pie de la montaña se detienen jadeando. El hombre sabe, en su sueño, que jamás en su sueño podrá alcanzarla. Cuando despierta, la mujer está a su lado y el hombre descubre, decepcionado, que ya es suya. (Ana Maria Shua, La Sueñera)


Um homem sonha que ama uma mulher. A mulher foge. O homem envia em sua perseguição os cães do seu desejo. A mulher atravessa uma ponte sobre um rio, passa para lá de um muro, ergue-se ao cimo de uma montanha. Os cães atravessam o rio a nado, saltam o muro e no sopé da montanha detêm-se arfando. O homem sabe, no seu sonho, que nunca no seu sonho a conseguirá alcançar. Quando acorda, a mulher está a seu lado e o homem descobre, decepcionado, que ela já é sua.

(mudada por mim)

Não me perguntem porquê [14]

[…]



“O que achaste do Ângelo Durão?” perguntou Francisco Aresta a Celestino, enquanto olhava em volta, passeando o olhar pelas mulheres na sala.

“Acho que fiquei com vontade de ler o romance dele.”

“Gostas mesmo de perder tempo”, disse Francisco Aresta, as sobrancelhas negras e hirsutas a sublinhar o escárnio da afirmação. Bebeu mais um gole de cerveja pela garrafa e encostou-se ao balcão do bar, olhando para além dele, para o átrio.

“Tu também não gostas de nada nem de ninguém, a não ser de ti próprio e do que escreves”, afirmou Celestino.

“Não gosto é de fraudes. Tu não viste que aquilo não passa de uma forma de ele vender mais livros?”

Celestino olhou Francisco Aresta com surpresa. Mas como é que este gajo consegue estar sempre do contra?

“Tens de me explicar como é que ele vai vender mais livros se o que ele quer é retirar o romance do mercado.”

“Mas tu acreditaste? És mesmo anjinho.”

E Francisco Aresta lançou a sua gargalhada sardónica, que a todos irritava, e olhou Celestino com a única expressão que, segundo o próprio Celestino, o seu rosto conhecia.

“És mesmo anjinho!”, repetiu, e bebeu mais um gole de cerveja.

Já Celestino desistira de uma explicação e pensava voltar ao salão, onde ainda decorria a tertúlia, quando Francisco Aresta, agarrando-lhe no braço, apresentou a sua tese.

“Tu não disseste que ficaste com vontade de ler o romance do Ângelo Durão?”

“Sim”, disse Celestino, mas Francisco Aresta já continuara a falar.

“Pois bem, então vê lá se não tenho razão. O Ângelo Durão começa uma campanha contra a editora para retirar o livro do mercado e as pessoas interrogam-se porquê. O que terá o livro? Quem é que tem razão? E compram o livro, e lêem o livro. Não estás a ver? É um grande golpe! De mestre!”

Celestino não disse nada e dirigiu-se para o salão onde ainda decorria a tertúlia, com Francisco Aresta ainda agarrado ao seu braço. Saíram do bar, atravessaram o átrio na diagonal e só quando estavam já à porta do salão, é que Celestino picou Francisco Aresta, adivinhando-lhe a resposta.

“Vais comprar o livro do Ângelo Durão?”

“Antes beber um litro de azeite do que comprar essa merda. E muito menos lê-la!”

Entraram no salão e sentaram-se à frente, ao pé do palco estreito, onde alguém lia um poema. Nem um nem outro se interessaram pelo que se passava no palco. Francisco Aresta passeava o seu olhar miúdo pelas mesas, Celestino parecia pensativo. Será que o Francisco tem razão? Pode lá ser! O Ângelo Durão pareceu-me tão autêntico! Mas é preciso um oportunista para apanhar outro. Essa é que é essa! E olhou para o palco, onde um jovem se preparava para ler alto. E ficou a ouvir.

terça-feira, 14 de dezembro de 2010

gente comum


O incendiário

admirava-se sempre com a facilidade com que a gasolina entrava em COMBUSTÃO.


O oportunista

fugiu sempre ao confronto e à verdade. Chegou a ministro.


O homem vazio

falou durante horas. Quando se calou, percebeu finalmente que nada tinha para dizer.


O homem preocupado

andava sempre muito preocupado. Um dia deixou de se preocupar e ficou ainda mais preocupado.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Lídia Jorge

Esta semana na Rua FM, no Impressões (quarta-feira, 19h00/20h00), fala-se com Lidia Jorge. A escritora é homenageada com o DoutoramentoHonoris Causa, no dia em que se comemora mais um aniversário da Universidade de Algarve. (com repetição ao Sábado às 12h)

Eu vou estar presente e aceito perguntas para a Lídia Jorge, até amanhã às 10 horas.

domingo, 12 de dezembro de 2010

Destaque

5 comentários:

Carlos Tijolo disse...

Li este ensaio com interesse, mas pareceu-me que ele poderia beneficiar com uma justificação clara e um aprofundamento da perspectiva que é afinal o ponto de apoio do próprio texto, ou seja: a ideia de que uma aparente não-assunção selectiva da microficção como género em Portugal é má “para a microficção e para a literatura em geral”. Preto no branco, porquê? Ou amarelo no vermelho com bolinhas azuis, se for preciso... :)

luís ene disse...

Carlos, obrigado.
Acho que tal é mau para a microficção e para a literatura em geral. Talvez só não o tenho dito preto no branco porque gostaria de deixar a quem lê essa conclusão. Este ensaio foi uma aproximação, queria-se um ponto de partida mais do que um ponto de chegada.Estava a tentar ainda delimitar o problema, aprofundar poderia ser um segundo ponto. Mais uma vez obrigado.

Carlos Tijolo disse...

Obrigado pela resposta. E, já que sugeri o tal aprofundamento, é justo que também explique o que penso. O teu ensaio testa a hipótese de que existe uma relutância selectiva em assumir a microficção como género, analisando o que alguns autores publicados dizem em entrevistas. Não prova a hipótese, mas mostra que faz sentido formulá-la e pensá-la. A existir essa tal relutância, parece-me natural admitir que ela, pelo menos, não ajuda a que a designação “microficção” se generalize e entre no ouvido das pessoas. Claro, de uma forma ou de outra, o género acabará sempre por se ir estabelecendo, pela acção de editoras pequenas que o assumem e promovem; mas talvez mais lentamente do que seria possível. Isto é mau? Não sei, por isso formulo outra pergunta: se a dada altura se começasse a falar imenso de microficção, se começassem a aparecer artigos nos suplementos de fim-de-semana sobre “o novo género emergente”, se grandes editoras começassem a dedicar-lhe colecções e a querer autores, a tal relutância persistiria? Quero dizer, não acho que a questão se centre tanto no perigo de tertúlias herméticas ou de autores com aspas (para isso, já existem muitos géneros à escolha). O que me parece importante considerar é que os géneros - as tais temíveis etiquetas ou prateleiras - são importantes para o trabalho das editoras e, por sua vez, as editoras são necessárias a quem queira publicar. Por isso, talvez o estabelecimento de géneros não seja assim tão inimigo da criação literária. Até ver, ambos têm coexistido de uma forma mais ou menos pacífica.

Carlos Tijolo disse...

Já agora, digo que o ensaio não prova a hipótese simplesmente porque acho que, para isso, seria necessário analisar a posição de mais autores publicados. Sobretudo para determinar se a tal relutância é mesmo selectiva, o que, para mim, não ficou inteiramente claro.

luís ene disse...

Carlos, tens razão no que dizes quanto a apenas ter focado autores e apenas alguns deles.
Mas eu quis apenas focar os autores, alguns autores, que eu conheço e aprecio e dos quais tinha material para analisar. Para abranger mais autores teria de entrevistá-los, o que cheguei a pensar fazer. E posso ainda fazê-lo.
Editores, críticos, leitores é importante analisá-los. O enfoque na existência de apenas uma antologia de microficção foi intencional e falava por si.
O ser "mau" passava pela ideia, se já é um "género" marginal, o que tem as suas consequências, como será se os próprios autores o negarem...
Mas era um ponto de partida que permitiu entre outras coisas esta troca de ideias.

«A micro-narrativa é um género curto, que apresenta um desafio de escrita e criatividade, é também um género híbrido, que não é fácil de encaixar em nenhuma tradição literária», explicou José Mário Silva, autor de «Efeito Borboleta» e «Luz Indecisa».

Não me perguntem porquê [13]


[…]



“Queridos ouvintes, no programa de hoje da Rua do Imaginário temos connosco um escritor, um jovem escritor que ganhou um importante prémio literário com o seu primeiro romance, arrecadando desta forma uma boa maquia em dinheiro e a possibilidade de ver a sua obra publicada. No entanto, esta história, que se adivinhava feliz, teve um final inesperado. O escritor exige que o romance seja retirado do mercado por não corresponder à obra original.”

“É outro romance. Outro romance!”

“Iremos já falar sobre isso, saliento que neste programa não se fazem entrevistas, conversa-se, e é isso que vamos fazer hoje, conversar com o escritor Ângelo Durão. E para começar, Ângelo Durão, o seu auto-retrato.”

“O meu auto-retrato?”

“Sim, fale-nos de si, em poucas palavras. Quem é o Ângelo Durão?”

“Sou um homem!”

“Só?”

“Como os outros!”

“Um homem que escreve.”

“Um homem que escreveu um livro.”

“E agora se opõe à sua publicação.”

“Sim.”

O autor do programa olhou Ângelo Durão, como que a deitar contas à vida, consultou rapidamente algumas notas, e prosseguiu.

“Fiquem então com um primeiro auto-retrato do escritor Ângelo Durão, hoje convidado da Rua do Imaginário, um homem como os outros, um homem que escreveu um livro vencedor de um importante prémio e agora se opõe à sua publicação, exigindo que o romance seja imediatamente retirado do mercado. Voltamos já, depois de um pouco de música.”

“É Chet Baker, não é? Adoro Chet Baker”, disse Ângelo Durão.

“Ouve muita música quando escreve?”

“Ouço quase sempre a mesma música, tenho meia dúzia de discos, e leio quase sempre os mesmos livros, também meia dúzia, todos de autores mortos.”

“Interessante, posso perguntar-lhe isso quando estivermos no ar?”

“Sem dúvida.”

Ângelo Durão nunca tinha falado na rádio, nem tinha alguma vez estado numa, muito menos nos estúdios, e olhava à sua volta com atenção. À sua frente tinha uma janela que se abria para outro estúdio, vazio naquele momento, que lhe parecia idêntico àquele onde se encontrava e que nada tinha de especial. De onde se encontrava Ângelo Durão, sentado na perpendicular do autor do programa, do lado de trás da mesa que concentrava a necessária aparelhagem, pouco via para além do rosto do outro e mal lhe adivinhava os gestos. Percebia quando ele colocava música no leitor, à moda antiga, como lhe disse e repetiu, e de vez em quando mexia numas alavancas que subiam e desciam. Tinha-lhe perguntado se queria auscultadores, única forma de ouvir o programa tal como estava a ser emitido, e ele aceitara, pelo que estavam os dois de auscultadores, que só retiravam quando paravam de falar e o outro colocava música.

“Ouvimos de novo Chet Baker, desta vez a cantar, um dos autores preferidos do escritor Ângelo Durão, como me confidenciou há pouco. Não é verdade, Ângelo Durão?”

“Sim, adoro Chet Baker, devo ter ouvido esse disco milhares de vezes.”

“Ouviu Chet Baker enquanto escrevia o seu romance?”

“Quando escrevo só ouço a música do que escrevo”, respondeu Ângelo Durão rapidamente, e o outro riu-se.

“Mas voltemos à vaca fria, por assim dizer. O Ângelo Durão opõe-se à publicação do seu romance, ou melhor, exige que ele seja retirado do mercado tal com está e seja substituído pela verdadeira versão do romance. Confesso que sinto dificuldade em explicar a situação, tão insólita é a sua pretensão.”

“Não sei se a minha pretensão é insólita, o que sei é que o livro que foi publicado não é o livro que quero partilhar com os leitores, pois é, na verdade, outro livro.”

“Tanto quanto sei, e espero não estar enganado, o livro agora publicado tem mais um capítulo, o final, que o Ângelo Durão eliminou.”

“Eliminei o então último capítulo e dei conhecimento desse facto à editora, antes da publicação, pelo que podiam, e deviam, ter procedido à alteração que solicitei.”

“Muitos escritores procedem a diversas alterações, mais ou menos profundas, nas edições posteriores. Não acha que podia fazer isso?”

“Não sei nada sobre os outros escritores, nem sei se sou escritor, mas o livro que queria partilhar com os leitores não é este livro que está aí para ser lido, e por isso eu quero que ele seja retirado.”

“Muito bem, a sua pretensão é clara, o livro deve ser retirado do mercado. O livro não deve ser lido tal como está!”

Ângelo Durão assentiu com a cabeça.

“Vamos então para mais um pouco de música e voltamos já. Fiquem com Shostakovich e The Jazz Album, que irão sem dúvida ouvir ainda muitas vezes neste programa.”

“Gosta de Shostakovich?”

“Julgo estar a ouvir pela primeira vez.”

“Não viu o último filme do Kubrick? Uma valsa deste álbum ouve-se aí insistentemente. Eu já lhe coloco, penso que é a faixa 13, se é que não foi alterada, porque é um tema que se ouve várias vezes. Tenho de procurar se existe a banda sonora desse filme.#

Ângelo Durão colocara os auscultadores para ouvir melhor a música e o outro fez-lhe sinal para que os retirasse.

“Vamos voltar daqui a muito pouco, deixe-me que lhe faça ainda uma pergunta. Ainda não falei no título do seu romance, porque você se opõe à sua venda, mas acho que o melhor é dizê-lo ou não se saberá do que estamos a falar.”

Ângelo Durão acenou ligeiramente com a cabeça em sinal de concordância e voltou a colocar os auscultadores.

“Estamos então de regresso para continuar à conversa com Ângelo Durão, autor de um romance premiado e que agora exige que seja retirado do mercado. O romance, que se encontra à venda, chama-se Uma Pergunta Desnecessária. Ângelo Durão, já teve algumas reacções dos leitores.”

“Dos leitores?”

“Sim, dos leitores, já falou com alguém que tivesse lido o livro?”

“O livro que as pessoas leram não é o livro que eu escrevi para eles. Um livro, qualquer livro, é sempre um ponto de encontro, escrevi este romance para mim próprio mas escrevi-o também para que fosse lido, mas não tal como está. O livro que se encontra à venda não é o livro que quero partilhar, e isso é o mais importante para mim. Isso é o mais importante para mim.”

E calou-se, e recostou-se na cadeira, afastando-se do microfone, e o seu rosto fechou-se de tal maneira que o outro pensou que ele não diria mais nada.

“Uma posição invulgar mas apaixonada. Ângelo Durão exige que o seu romance Uma Pergunta Desnecessária seja retirado do mercado e, enquanto isso não acontecer, arriscaria dizer, pede mesmo a quem pensar em ler o livro para não o fazer. Ângelo Durão pede que o livro que se encontra à venda e que lhe é atribuído não seja comprado nem lido, pois não é o livro que ele quer partilhar com os leitores.”

E o autor do programa olhou para Ângelo Durão, a pedir-lhe concordância, quem cala consente, e prosseguiu, cada vez mais enfático, fazendo apelo á sua voz bem modulada.

“Fica aqui o apelo de Ângelo Durão, autor do romance premiado Uma Pergunta Desnecessária, apelo que continuaremos a repetir enquanto ele quiser. Não comprem nem leiam o romance que se encontra no mercado e lhe é atribuído: não é o romance que ele quer partilhar com os leitores. Não comprem nem leiam a versão do seu romance Uma Pergunta Desnecessária existente no mercado. O seu autor desaconselha veementemente.”

“Já não estamos no ar. Está a ouvir, reconhece agora a música?”

“Sim, reconheço.”

“Não sei se correu como esperava. Estava aqui a pensar se o tiro não lhe sairá pela culatra. Fiquei com vontade de ler o seu livro. E o mesmo poderá acontecer aos ouvintes.”

Ângelo Durão olhou-o em silêncio e voltou a colocar os auscultadores.

o que é a "microficção"

A "microficção" é "desafio ao mesmo tempo que brincadeira e experimentação".

Dari

sábado, 11 de dezembro de 2010

carta aberta

Só tem convicções aquele que não aprofundou nada.
Emile Cioran

*

O Paulo Ferreira respondeu-me e eu também lhe respondo.


*

Antes de mais, obrigado pela resposta. Em segundo lugar, do meu ponto de vista, confirmas o meu espanto, ao confirmares a necessidade que sentes, não de desprezar classificações (rótulos) para os teus textos, mas apenas o rótulo (classificação) de microficção. Até parece que o único "rótulo" limitativo em literatura é o de microficção.
Que fique claro que não tenho qualquer interesse em classificar o que quer que seja, apenas estranhei que entre todas as classificações, os autores (alguns) que escrevem textos breves logo se esforcem tanto por negar essa (e apenas essa).
Afirmas que uma das coisas que te faz recusar a catalogação do que escreves na microficção é a existência de vários “escritores” que se intitulam microficcionistas.
As aspas em escritores são tuas, o que parece indicar que esses que se intitulam microficcionistas não são, para ti, escritores.
Devo confessar que não sei quem são esses que se intitulam microficcionistas, só sei, porque tu o dizes, que não são escritores.
Tu, se bem percebi, escreves afinal microficção, mas não és microficcionista.
Tudo bem. Que uma coisa fique bem clara, eu não quero rotular o que quer que seja, nem frascos nem pessoas nem textos.
Talvez eu me tenha explicado mal, mas tentei escrever o mais claro possível, e o que escrevi está escrito.
Mais uma vez obrigado e tudo de bom para ti.


Cruzeiro Seixas

 Ouvir.