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“Queridos ouvintes, no programa de hoje da Rua do Imaginário temos connosco um escritor, um jovem escritor que ganhou um importante prémio literário com o seu primeiro romance, arrecadando desta forma uma boa maquia em dinheiro e a possibilidade de ver a sua obra publicada. No entanto, esta história, que se adivinhava feliz, teve um final inesperado. O escritor exige que o romance seja retirado do mercado por não corresponder à obra original.”
“É outro romance. Outro romance!”
“Iremos já falar sobre isso, saliento que neste programa não se fazem entrevistas, conversa-se, e é isso que vamos fazer hoje, conversar com o escritor Ângelo Durão. E para começar, Ângelo Durão, o seu auto-retrato.”
“O meu auto-retrato?”
“Sim, fale-nos de si, em poucas palavras. Quem é o Ângelo Durão?”
“Sou um homem!”
“Só?”
“Como os outros!”
“Um homem que escreve.”
“Um homem que escreveu um livro.”
“E agora se opõe à sua publicação.”
“Sim.”
O autor do programa olhou Ângelo Durão, como que a deitar contas à vida, consultou rapidamente algumas notas, e prosseguiu.
“Fiquem então com um primeiro auto-retrato do escritor Ângelo Durão, hoje convidado da Rua do Imaginário, um homem como os outros, um homem que escreveu um livro vencedor de um importante prémio e agora se opõe à sua publicação, exigindo que o romance seja imediatamente retirado do mercado. Voltamos já, depois de um pouco de música.”
“É Chet Baker, não é? Adoro Chet Baker”, disse Ângelo Durão.
“Ouve muita música quando escreve?”
“Ouço quase sempre a mesma música, tenho meia dúzia de discos, e leio quase sempre os mesmos livros, também meia dúzia, todos de autores mortos.”
“Interessante, posso perguntar-lhe isso quando estivermos no ar?”
“Sem dúvida.”
Ângelo Durão nunca tinha falado na rádio, nem tinha alguma vez estado numa, muito menos nos estúdios, e olhava à sua volta com atenção. À sua frente tinha uma janela que se abria para outro estúdio, vazio naquele momento, que lhe parecia idêntico àquele onde se encontrava e que nada tinha de especial. De onde se encontrava Ângelo Durão, sentado na perpendicular do autor do programa, do lado de trás da mesa que concentrava a necessária aparelhagem, pouco via para além do rosto do outro e mal lhe adivinhava os gestos. Percebia quando ele colocava música no leitor, à moda antiga, como lhe disse e repetiu, e de vez em quando mexia numas alavancas que subiam e desciam. Tinha-lhe perguntado se queria auscultadores, única forma de ouvir o programa tal como estava a ser emitido, e ele aceitara, pelo que estavam os dois de auscultadores, que só retiravam quando paravam de falar e o outro colocava música.
“Ouvimos de novo Chet Baker, desta vez a cantar, um dos autores preferidos do escritor Ângelo Durão, como me confidenciou há pouco. Não é verdade, Ângelo Durão?”
“Sim, adoro Chet Baker, devo ter ouvido esse disco milhares de vezes.”
“Ouviu Chet Baker enquanto escrevia o seu romance?”
“Quando escrevo só ouço a música do que escrevo”, respondeu Ângelo Durão rapidamente, e o outro riu-se.
“Mas voltemos à vaca fria, por assim dizer. O Ângelo Durão opõe-se à publicação do seu romance, ou melhor, exige que ele seja retirado do mercado tal com está e seja substituído pela verdadeira versão do romance. Confesso que sinto dificuldade em explicar a situação, tão insólita é a sua pretensão.”
“Não sei se a minha pretensão é insólita, o que sei é que o livro que foi publicado não é o livro que quero partilhar com os leitores, pois é, na verdade, outro livro.”
“Tanto quanto sei, e espero não estar enganado, o livro agora publicado tem mais um capítulo, o final, que o Ângelo Durão eliminou.”
“Eliminei o então último capítulo e dei conhecimento desse facto à editora, antes da publicação, pelo que podiam, e deviam, ter procedido à alteração que solicitei.”
“Muitos escritores procedem a diversas alterações, mais ou menos profundas, nas edições posteriores. Não acha que podia fazer isso?”
“Não sei nada sobre os outros escritores, nem sei se sou escritor, mas o livro que queria partilhar com os leitores não é este livro que está aí para ser lido, e por isso eu quero que ele seja retirado.”
“Muito bem, a sua pretensão é clara, o livro deve ser retirado do mercado. O livro não deve ser lido tal como está!”
Ângelo Durão assentiu com a cabeça.
“Vamos então para mais um pouco de música e voltamos já. Fiquem com Shostakovich e The Jazz Album, que irão sem dúvida ouvir ainda muitas vezes neste programa.”
“Gosta de Shostakovich?”
“Julgo estar a ouvir pela primeira vez.”
“Não viu o último filme do Kubrick? Uma valsa deste álbum ouve-se aí insistentemente. Eu já lhe coloco, penso que é a faixa 13, se é que não foi alterada, porque é um tema que se ouve várias vezes. Tenho de procurar se existe a banda sonora desse filme.#
Ângelo Durão colocara os auscultadores para ouvir melhor a música e o outro fez-lhe sinal para que os retirasse.
“Vamos voltar daqui a muito pouco, deixe-me que lhe faça ainda uma pergunta. Ainda não falei no título do seu romance, porque você se opõe à sua venda, mas acho que o melhor é dizê-lo ou não se saberá do que estamos a falar.”
Ângelo Durão acenou ligeiramente com a cabeça em sinal de concordância e voltou a colocar os auscultadores.
“Estamos então de regresso para continuar à conversa com Ângelo Durão, autor de um romance premiado e que agora exige que seja retirado do mercado. O romance, que se encontra à venda, chama-se Uma Pergunta Desnecessária. Ângelo Durão, já teve algumas reacções dos leitores.”
“Dos leitores?”
“Sim, dos leitores, já falou com alguém que tivesse lido o livro?”
“O livro que as pessoas leram não é o livro que eu escrevi para eles. Um livro, qualquer livro, é sempre um ponto de encontro, escrevi este romance para mim próprio mas escrevi-o também para que fosse lido, mas não tal como está. O livro que se encontra à venda não é o livro que quero partilhar, e isso é o mais importante para mim. Isso é o mais importante para mim.”
E calou-se, e recostou-se na cadeira, afastando-se do microfone, e o seu rosto fechou-se de tal maneira que o outro pensou que ele não diria mais nada.
“Uma posição invulgar mas apaixonada. Ângelo Durão exige que o seu romance Uma Pergunta Desnecessária seja retirado do mercado e, enquanto isso não acontecer, arriscaria dizer, pede mesmo a quem pensar em ler o livro para não o fazer. Ângelo Durão pede que o livro que se encontra à venda e que lhe é atribuído não seja comprado nem lido, pois não é o livro que ele quer partilhar com os leitores.”
E o autor do programa olhou para Ângelo Durão, a pedir-lhe concordância, quem cala consente, e prosseguiu, cada vez mais enfático, fazendo apelo á sua voz bem modulada.
“Fica aqui o apelo de Ângelo Durão, autor do romance premiado Uma Pergunta Desnecessária, apelo que continuaremos a repetir enquanto ele quiser. Não comprem nem leiam o romance que se encontra no mercado e lhe é atribuído: não é o romance que ele quer partilhar com os leitores. Não comprem nem leiam a versão do seu romance Uma Pergunta Desnecessária existente no mercado. O seu autor desaconselha veementemente.”
“Já não estamos no ar. Está a ouvir, reconhece agora a música?”
“Sim, reconheço.”
“Não sei se correu como esperava. Estava aqui a pensar se o tiro não lhe sairá pela culatra. Fiquei com vontade de ler o seu livro. E o mesmo poderá acontecer aos ouvintes.”
Ângelo Durão olhou-o em silêncio e voltou a colocar os auscultadores.