sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

A MICROFICÇÃO EM PORTUGAL, UM GÉNERO BASTARDO? [FIM]

[Acelerando, um processo tão literário como o seu oposto, termino hoje a publicação do quase ensaio que tenho trazido aqui nos últimos dias.]

V


“Quanto à micronarrativa” – afirma Paulo Kellerman - “interessa-me, enquanto escritor, quando vista como uma forma de estória condensada, em que se procura restringir um texto ao essencial e, desse modo, torná-lo mais pujante e eficaz; parece-me um exercício muito aliciante e recompensador, mas também tremendamente exigente. Mas quando micronarrativa significa uma espécie de jogo de palavras ou mesmo uma forma pobre e inábil de aforismo, já me interessa menos.“


Paulo Kellerman aceita a microficção mas também parece desconfiar dela, ainda que essa atitude surja apenas em termos de interesse pessoal, o que me parece perfeitamente legítimo. Esta posição surge com bastante clareza quando ele fala de “Miniaturas”, o seu livro de microficções, vencedor de um prémio literário: “de um lado tinha os meus contos longos, de temática existencialista, pesados e tensos, deprimidos e deprimentes, sobre morte e sexo e solidão; por outro lado, por vezes entretinha-me a escrever uns mini-contos meio palermas, muito breves e secos, uns irónicos e outros com pretensões humorísticas, sobre coisas absurdas e inesperadas como torneiras que se apaixonam e árvores que querem viajar. Os primeiros eram os que me interessam verdadeiramente enquanto “projecto literário”, os segundos não passavam de um entretenimento inconsequente. Acontece que fiz uma compilação de uns e outra compilação dos outros e enviei tudo para um concurso literário; ganhou o entretenimento inconsequente e o resultado foi a publicação do «Miniaturas».”


Chamar a microficção de entretenimento inconsequente, o que Paulo Kellerman não faz, talvez não desagradasse a Rui Costa, tal como muitos poetas gostam de dizer que a poesia é inútil. Já o referi antes, a microficção é provocadora, mas isso não a faz menos literária, antes pelo contrário. No entanto, parece-me que muitos autores pensam que a microficção é algo menor, até menor do que um entretenimento inconsequente. Preconceito ou medo, esta é uma atitude que – a par de algum desconhecimento do género – tenho muitas vezes sentido, mesmo da parte de quem escreve microficção, como já aqui referi e agora reafirmo. E isso preocupa-me.



VI


Rui Zink, a propósito da brevidade na escrita e do seu valor referiu que “o tamanho conta, sim. Mas o que se faz com o que se tem também conta. Fazer um texto muito bom em forma breve é mais difícil do que um romance. Mas fazer um micro “apenas bom” é mais fácil.”

É facil concordar com Rui Zink, e eu poderia concordar, mas já não concordo com aqueles que desvalorizam a microficção afirmando que a maior parte das microficções não tem qualidade, como já ouvi muitas vezes dizer e já vi escrito, até, desculpem-se se sou repetivo mas é propositado, por aqueles que a escrevem.

Desde quando é que a qualidade é parte integrante de um género? Os poemas maus não são poemas? Porque há romances maus nega-se a existência do romance enquanto género?

Mas então porquê essa desconfiança face à microficção, até por parte dos seus próprios autores?

Henrique Manuel Bento Fialho, no prefácio à Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa, sinaliza a não assunção em Portugal da micronarrativa enquanto tal, como já referi, afirmando no entanto que não caberia averiguar ali os factores que a determinam. Não me cabe também aqui, nem me parece que o conseguisse fazer, confesso, averiguar os factores que conduzem em Portugal à desconfiança existente face à microficção. Quero tão só chamar a atenção para esse facto, e talvez sensibilizar os autores para lançarem um olhar renovado e sem preconceitos à microficção, sobretudo à microficção que se vem fazendo em Portugal.


VII



As microficções vêm marcando presença na literatura portuguesa, como bem refere Henrique Manuel Bento Fialho, “sob a capa de poema, poema em prosa, aforismo, ou o quer que seja”, não se assumindo como microficções. O próprio Henrique Manuel Bento Fialho, um dos primeiros entre nós a praticar e a reflectir sobre a micro-ficção, parece não ter escapado a essa prática de ocultamento de microficções.


Estórias Domésticas, publicada em 2006, contém uma série de microficções que dão título ao livro que, no seu conjunto, se parece apresentar como um livro de poemas, ainda que o seu autor sugira, a quem o quiser arrumar numa estante, um lugar entre as prosas e os poemas.


Não acredito que o autor negue àqueles textos, verdadeiras microficções, a sua qualidade de microficções, apenas não o assumiu explicitamente, nem tem de o fazer. Não será alheio a esse facto a sua opinião expressa no prefácio da Primeira Antologia que “é no poema em prosa que a micronarrativa melhor se consubstancia”, bem como o referido imbróglio que a mesma suscita, ou seja, no dizer do mesmo autor, “a confusão que instala entre poesia e prosa. Esta ambiguidade da microficção é sem duvida a mesma que o autor atribui ao seu livro, sugerindo um lugar entre as prosas e os poemas, um lugar de problemas.


O lugar da microficção, ou das microficções, é sem duvida um lugar de problemas, um lugar de ambiguidades, um lugar de provocações. Antes de se afirmar pelo que é, a microficção afirma-se pelo que não é, ou pelo que não é ao mesmo tempo que parece ser várias coisas. É assim que se pode falar da sua diferença, bem como da sua semelhança, relativamente ao poema em prosa ou ao poema beve em geral, à anedota, ao aforismo, ao fragmento, ao apontamento e por aí adiante. Mas, não sendo igual a mais nada e parecida a muita coisa, o que é afinal a microficção?


VIII


Curiosamente, é um autor que não parece escrever com regularidade microficções, que assume a posição mais favorável e mais abertamente de agrado pela microficção, sendo também o co-responsável pela primeira e única antologia de microficção portuguesa.


O interesse de Rui Costa pela microficção tem a ver, como ele próprio refere, com a sua extrema aptidão para a promiscuidade. A “forma leve da micro-ficção permite-lhe circular melhor: como se fosse possível estar em vários sítios ao mesmo tempo. A sua plasticidade nómada fá-la experimentar a banda desenhada ou a eficácia do spot publicitário; a poesia, se o ritmo deixar; o aforismo, havendo universo que se deixe comprimir. A micro-ficção é um mutante que vai acumulando formas, interacções, desequilíbrios.”


Sem se comprometer com a questão da microficção ser ou não um género literário, afirmando que“a micro-ficção é mais do que um género, é um peixinho amarelo de barbatanas peitorais”, Rui Costa não só aceita a sua existência como reconhece a sua importância. E é isso afinal que me parece importante e tarda a acontecer em Portugal, que se reconheça a microficção, a sua importância e a sua actualidade. É claro que ao autor se reconhece sempre o direito de não classificar a sua obra, de se mover entre géneros, de preferir a hibridez, características que a microficção bem partilha.


Atente-se na resposta de Gonçalo M. Tavares, que há muito vem escrevendo microficções, a uma pergunta sobre a sua última obra:

- É difícil falar de “Uma Viagem à Índia”: não é um romance, não é um poema épico. Como é que o descreve?
- Tenho o mesmo problema. No prefácio fala-se em “anti-epopeia” e há ainda outras definições. Eu não sei e não consigo dizer exactamente o que é este livro. E isso agrada-me. Quando sei classificar um livro acho-o muito desinteressante.


A terminar, talvez possa dizer, parafraseando Gonçalo M. Tavares, que não consigo dizer o que é a microficção. E isso agrada-me. Mas que existe, existe. E recomenda-se

Cruzeiro Seixas

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