O ESSENCIAL
1 - QUEM SOMOS? (sobre o eu e a sua relação com o mundo)
Não é verdade nem mentira que o dia esteja cinzento mas eu sei que está, ou talvez eu esteja. Sempre tive dificuldades em distinguir o interior do exterior, o côncavo do convexo, o dentro do fora, o eu dos outros. Este facto trouxe-me bastantes problemas ao longo da vida e vi-me forçado, inúmeras vezes, a explicar aos outros o que, no geral, chamavam as minhas distracções e, nalguns casos, as minhas bizarrias. As coisas são o que são e disso nunca tive dúvidas, embora saiba perfeitamente que não é verdade nem mentira que o sejam. A realidade e a ficção são duas faces da mesma moeda, por assim dizer. Foi nisto que sempre acreditei e toda a gente que me conhece sabe que é assim. Quando anunciei que me apaixonara por uma personagem de ficção e íamos casar, todos foram unânimes em dizer que o casamento não fazia sentido: eu vivia no mundo da lua, nunca iria resultar.
Ela tocou-lhe a mão sobre a mesa com as pontas dos dedos. Ele estremeceu interiormente. Não tinha sentido a suavidade de uma carícia ou a displicência de um choque ocasional; fora um toque intenso, profundo, interrogativo, a pôr em causa a sua própria existência — a mais extraordinária experiência metafísica que alguma vez tivera.
2 – COMO CHEGAMOS A SER QUEM SOMOS? (sobre o tempo e as metamorfoses)
Passeava pelo jardim municipal quando se sentiu diferente. Um quase nada. Uma fugidia sensação de mudança. Tentou desesperadamente capturá-la, mas em vão. Sentou-se num banco, desanimado, e ficou à espera.
Uma a uma, inexoravelmente, as suas possibilidades começaram a diminuir. O homem apercebeu-se disso mas, apesar de todos os seus esforços, não conseguia inverter a tendência. Não era muito esperto nem dispunha de qualquer talento, era um homem sem qualidades, como podia ele escapar da armadilha que é o mundo? Certo dia, tirou um romance da estante e começou a lê-lo. A páginas tantas, suspendeu a leitura, por coincidência, no exacto momento em que mais nenhuma hipótese do que ser quem era lhe restava. Não teve consciência desse facto, e durante anos ainda acreditou que a sua vida podia mudar.
3 – O QUE É O AMOR? (sobre as várias formas do amor)
Adormeceu a pensar nela e acordou a pensar nela. Vários dias depois continuava a pensar nela. Este sentimento era-lhe tão agradável que decidiu preservá-lo. Desapareceu sem deixar rasto e nunca mais a procurou. Foi bem sucedido. Ainda hoje, decorridos mais de vinte anos, continua loucamente apaixonado por ela.
No exacto dia em que fez dezoito anos, mais precisamente no final do almoço de aniversário, o pai desejou-lhe muitas felicidades e convidou-o a sair de casa, imediatamente, era tempo de viver a sua vida, já era um homem feito, com tudo o que isso implicava de direitos e deveres. Agradeceu ao pai, tudo o que tinha feito por ele, e saiu sem mais demoras nem bagagem. Não lhe guardou ódio ou rancor; vinte anos depois, quando o pai morreu, depois de lhe ter sido diagnosticada uma doença terminal, foi ele o único que esteve ao seu lado, mesmo até ao fim, ajustando-lhe a almofada, contra o rosto. Todos os anos, por altura do aniversário da sua morte, leva-lhe flores à campa rasa e sorri, mansamente.
4 – PORQUÊ LER E ESCREVER? (sobre os livros, a escrita e a leitura)
Sentiu, pela primeira vez, uma imensa vontade de escrever, mas não tinha a mínima ideia de como lhe podia dar forma. Talvez uma carta para um amigo, mas não os tinha, talvez uma poesia de amor, mas não estava apaixonado, talvez um pequeno conto, mas ninguém o leria, talvez o seu testamento, mas não tinha quaisquer bens. Acabou por nada escrever quando podia ter escrito alguma coisa de extraordinário e perene. Mais tarde, ultrapassado aquele momento, acabou por produzir uma obra extensa e bem recebida pela crítica, mas nunca mais sentiu aquela vontade imensa de escrever. São coisas que acontecem.
Abriu o livro ao acaso e leu uma linha, mais precisamente a quinta linha da página 145. Ficou muito perturbado, o rosto lívido e a voz embargada, parecia que ia começar a chorar mas conteve-se com esforço. Leu mais uma linha, desta vez a décima da página 31, e riu com gosto durante muito tempo. Depois foi a vez da linha trigésima da página 222: um autêntico convite à reflexão que lhe foi impossível declinar. Devolveu o livro ao seu lugar na estante e pensou emocionado, entre o choro e o riso, que só a literatura dá sentido à vida.
5 – PORQUÊ CONTAR HISTÓRIAS? (sobre a arte e a necessidade de contar histórias)
Todas as histórias têm de ter um fim, nem que seja, ou sobretudo por isso, para que outras comecem. Quantas histórias deixamos por acabar, histórias que precisavam de terminar para que outras pudessem começar. E só nós, cada um de nós, pode terminar essas histórias. Ele sentiu-se atraído por ela. Sentiu vontade de a conhecer e de se dar a conhecer. Tentou aproximar-se, estabelecer uma relação; mas, a partir de certo momento, o que deveria ser uma aproximação transformou-se numa despedida. Podíamos... — disse ele para si mesmo, e não era o início de uma frase, mas sim um ponto final numa história que, como todas as histórias, precisava de um fim.
Um homem que passeava o seu cão no jardim público desapareceu misteriosamente. Desapareceu de repente, à frente de várias testemunhas. Todas as pessoas interrogadas foram unânimes em afirmá-lo, não houve forma de demovê-los, o homem desaparecera no ar. Os jornais falaram em alucinação colectiva, chegando mesmo alguma imprensa a afirmar que o homem fora raptado por alienígenas. Nunca se soube quem era e, apesar das investigações realizadas, parecia nunca ter existido. Muitas pessoas foram ouvidas, muitas opiniões foram avançadas, mas ninguém deu atenção ao escritor que, em poucas palavras, explicou o sucedido: o homem caíra fora da sua história.
6 – O QUE SE PODE DIZER COM MEIA DÚZIA DE PALAVRAS? (sobre a brevidade)
Depois de muito tentar conseguiu. Conseguiu sabe-se lá o quê.
Mudou de carro. Mudou de nome. Mudou de aspecto. Mudou de profissão. Mudou de residência. Nunca ninguém conseguiu perceber porquê. Nem ele.
7 – A VIDA TEM UM SENTIDO? (sobre o que parece não ter explicação)
Levantou-se e permaneceu sentado, fechou o livro e continuou a leitura. Desde que se levantara da cama, manhã cedo, tudo lhe saíra ao contrário, sem que conseguisse, no final do dia, encontrar uma única explicação para tudo o que acontecera. Levantou-se e de novo permaneceu sentado, voltou a fechar o livro e leu-o até ao fim. Durante algum tempo pensou em tudo o que fizera nos últimos anos, a vida tinha-lhe corrido bem, a sorte nunca lhe tinha faltado, a sublinhar, é certo, opções correctas. Levantou-se e mais uma vez permaneceu sentado, fechou o livro e foi deitar-se, convencido de que amanhã seria outro dia e talvez tudo voltasse ao normal, afinal só a morte não tinha remédio. Nada disso, nada mas mesmo nada disso, adormeceu e nunca mais acordou, saiu-lhe tudo ao contrário, menos a morte, que é astuta e maliciosa e não gosta de contradições.
Ontem, cerca das 21 horas, um homem matou a mulher por causa de um iogurte. Ele queria comer iogurte mas a mulher queria que ele comesse sopa. Eram horas de jantar, disse-lhe ela, comer iogurte estava fora de questão. Discutiram durante muito tempo, em voz alta, quebrando copos e pratos. A dada altura o homem agarrou um garfo, avançou lentamente em direcção da mulher, e espetou-lho com força na jugular. Depois foi para a varanda comer o iogurte. Era um iogurte cremoso e com pedaços de pêssego amarelo. O homem adorava aqueles iogurtes e comeu-o com prazer. Interrogados os vizinhos, aqueles foram unânimes, todas as horas são boas para se comer iogurtes.
8 – A MORTE É UMA OPÇÃO? (sobre o suicídio e outras atitudes perante a morte)
Não queria morrer sem deixar rasto, ignorado, incompreendido, apenas mais uma breve notícia numa página interior de um jornal local. Não só o seu suicídio deveria estar carregado de um claro e grandioso simbolismo trágico, mas também o bilhete de despedida, inevitável, teria de ser brilhante, conciso e comovente. Começou pela tarefa que lhe pareceu mais fácil; terminou duzentos e cinquenta e sete bilhetes de despedida, que lhe consumiram seis meses de intensa actividade, mas, apesar da elevada qualidade de todos, nenhum lhe pareceu verdadeiramente ajustado ao seu sentir. Uma grande editora interessou-se pelo seu trabalho e publicou-o sem demoras, tendo atingido, em seis meses, seis edições e cem mil exemplares. Aceitou o sucesso com indiferença, um ano depois morreu, famoso, sem deixar qualquer bilhete de despedida; o seu suicídio continua por explicar.
Foi o último a saber que tinha morrido. Durante muitos dias frequentou os locais habituais sem se aperceber que estava morto. Claro que todos sabiam mas ninguém lhe disse nada. Não é uma coisa muito agradável para se dizer a quem quer que seja e ninguém o queria entristecer. Ele sentia-se bem, muito bem, e só quando se apercebeu que essa sensação não desaparecia é que soube que estava morto.
9 - O QUE PODEMOS SABER? (sobre lições de vida e sabedoria)
Era uma vez um homem a quem nada corria bem. Como era dado à reflexão, passava muito tempo a pensar na sua vida. Disciplina e persistência é tudo o que é preciso para obter o que desejamos: foi a esta conclusão que ele chegou finalmente. E se assim o pensou mais depressa o fez. Mas não havia nada a fazer. A disciplina e a persistência foram inúteis no seu caso. Escreveu um livro sobre o assunto, que se tornou um campeão de vendas, e foi feliz para sempre. Morreu, sem que se saiba porquê, num sete de Outubro.
O mestre zen tinha dois alunos que estavam sempre em desacordo. Se um afirmava alguma coisa logo o outro a negava e as discussões nunca tinham fim. Numa discussão mais acesa, um deles empurrou vigorosamente o outro, que caiu no chão desamparado. O mestre ia a passar e assistiu a tudo. Aproximou-se do aluno caído e ajudou-o a levantar-se. Depois, dirigindo-se aos dois, censurou-os com rudeza: quem não sabe dominar o seu discurso não sabe dominar as suas consequências. Os alunos olharam um para o outro, e depois para o mestre, e deram-lhe uma tremenda sova que o deixou prostrado.
10 – O QUE PODEMOS FAZER? (sobre as diversas atitudes perante a vida)
Esperou por ela uma hora. Já tinha bebido dois gins tónicos e comido quase uma cesta de pão variado com um queijo seco de cabra. Telefonara-lhe duas vezes, e das duas deixara mensagem. Pediu a ementa e a lista dos vinhos e, depois de uma leitura atenta e minuciosa, encomendou o jantar: rosbife, com puré de maça e batatinhas coradas, e uma garrafa de vinho tinto, reserva, do Douro. Comeu e bebeu com um prazer intenso, tonto de sabores e aromas. Não quis sobremesa, terminou com um café forte, da Etiópia. Quando ela chegou queixando-se do trânsito e da vida, ele sorriu-lhe, levantou-se e saiu, deixando-lhe a conta para pagar. Caminhou durante meia hora, aspirando voluptuosamente o ar frio da noite lunar; sentia-se feliz. Decidiu jantar mais vezes sozinho.
Subitamente, sentiu-se triste, mais do que isso, sentiu que nada mais era do que tristeza, como se todos os outros sentimentos o tivessem abandonado, deixando atrás de si apenas a tristeza, esmagadora e cruel. Olhou a chávena fumegante de café com leite, suspensa da imobilidade da sua mão direita, e riu. Riu sonoras gargalhadas que abriram espaços vazios na densa tristeza que ainda sentia e, pouco a pouco, se foram enchendo de memórias, ternas e doces, alegres e cómicas, até que a tristeza se dobrou sobre si mesma, voltando à sua condição de nó cego à espera de um desenlace.
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