Da minha janela vê-se
o Algarve
Luís Ene
CRÓNICAS PUBLICADAS NO JORNAL BARLAVENTO DE JUNHO A OUTUBRO DE 2016
[publicado em 16/06/16]
Caro leitor
Fernando Cabrita, poeta que vive
em Olhão, a nove quilómetros de onde eu próprio vivo, costuma dizer que existe
uma genealogia na escrita (na verdade ele diz poesia) que leva a que na escrita
de um escritor sejam sempre acolhidos muitos outros escritores. Isto porque o
escritor escreve o que é, mas também o que lê. Assim, o que eu escrevo, o que
qualquer escritor escreve, tem sempre raízes numa literatura que lhe é anterior
e que lhe serve de estrume, porque o escritor é sempre e antes de mais um
leitor. Se chegaste até aqui, caro leitor, tem paciência e segue-me até ao
próximo parágrafo.
Ainda estás aí, leitor? Sim? Está
bem. Dá-me então mais um pouco de atenção, para que tente explicar-te porque te
considero tão importante. A língua define-nos como ser humanos, e o mesmo vale
para a arte, comum a todos nós, que é a arte de contar histórias. Eu sou
escritor, daí esta familiaridade contigo, leitor, daí a importância que te dou,
porque só em ti o que escrevo se lê e existe verdadeiramente. Um grande
escritor, Jorge Luís Borges, que cito de cor, correndo o risco de errar, disse
que as bibliotecas são cemitérios. Na verdade um livro que não é lido está
morto e só o leitor pode dar-lhe de novo vida. Daí a tua enorme importância,
leitor, daí a tua enorme responsabilidade. Permiti-me então que te convide para
um novo parágrafo.
Procuro ainda um ponto de partida
comum para estes textos, escrevo, mas na verdade já o tenho, ainda que só agora
me tenha apercebido. É assim a escrita, cheia de dúvidas e de revelações.
Escreve-se, escrevendo; e é assim que escreverei estas rubricas. Sei que o que
escreverei estará à sombra de uma verdade que é a de que da minha janela se vê
o Algarve, título e tema que afinal escolhi para estas conversas com o caro
leitor.
Qualquer mentira deve, já dizia
certeiro o poeta António Aleixo, trazer à mistura qualquer coisa de verdade. E
é o que acontece neste caso. Da janela (do meu quarto) vê-se realmente o mar,
vê-se o azul, e o Algarve é azul, disso não tenho eu dúvidas. Assim, da janela que será esta rubrica poderemos, eu
e tu, caro leitor, espero eu, ver sempre o Algarve, o Algarve em letras, porque
eu sou um escritor e estou no Algarve. Mas,
caro e paciente leitor, tal como agora me seguiste parágrafo a parágrafo; se me
quiseres continuar a ler, e ver o que escreverei, terás de me seguir até uma
próxima vez, que agora vou ficar por aqui.
Desculpa-me ter dito tão pouco, é
o que sinto, mas acredita que quanto mais eu me calar mais tu te dirás.
Até à próxima.
[publicado em 06/07/16]
Escritores Algarvios?
Resido em Faro, no
Algarve, e ainda que essa circunstância em nada influencie a minha escrita, é
muito provável que a mesma tenha mais reflexos em Faro e no Algarve do que em
qualquer outro lugar onde não resido e não intervenho. Assim, ainda que me afirme,
acima de tudo e tão só escritor, a circunstância (desejada) de viver em Faro
não é certamente de desprezar e, nesse sentido, não rejeito nem desprezo a
designação de escritor algarvio, exatamente porque aqui resido e intervenho com
mais frequência.
Não pretendo aqui, longe
de mim, discutir ou defender a existência de uma literatura algarvia ou mesmo a
sul. Outros já o fizeram muito melhor do que eu o faria! Leia-se por exemplo “A
criação literária e o Algarve, no Algarve ou do Algarve? – Reflexões sobre
literatura regional(ista), de Adriana Nogueira.
Mas aqui estou eu, em
Faro, no Algarve, e relaciono-me e agrupo-me com outros escritores e editores
que como eu aqui residem, como Fernando Esteves Pinto ou Pedro Jubilot, ambos
escritores e editores algarvios, ambos olhanenses, atrevo-me a dizer, o
primeiro por escolha e o segundo por nascimento.
Por mim, ainda que
nascido na Damaia, e algarvio apenas por circunstância e escolha, aceito e
agrada-me ser descrito como um escritor farense, como o diretor deste jornal em
que escrevo me designou, e a verdade é que aqui e ali Faro entra na minha
escrita. Deixa-me, caro leitor, que traga para aqui um texto que é exemplo disso,
retirado de um pequeno livro inédito, com o titulo genérico de “O meu café”.
“Na
cidade onde vivo é tão fácil encontrar o seu café como é fácil encontrar o meu
café, e não é que eu queira dizer com isto que na cidade onde vivo qualquer um
pode encontrar um café que seja seu.
A
verdade é que na cidade onde vivo existe um café que se chama O Seu Café, e,
embora O Seu Café não seja o meu café, ficam os dois no mesmo largo, um
opondo-se ao outro.
Assim,
posso dizer que o meu café fica no largo em questão e é aquele que não é o seu
café, não só localizando-o assim na perfeição, como fazendo-o ainda mais meu.”
Claro
que só quem conheça o café em questão sabe do que falo, mas quem não souber não
fica em nada prejudicado na sua leitura.
O
leitor que me desculpe pelo facto de me citar e também de trazer aqui a questão
(sem dúvida inócua) da existência de escritores e editores algarvios, porque
pode ou não acreditar-se nisso, mas que existem, existem, e estão por aqui, pelo
Algarve, e querem (e devem) ser levados em conta.
Até
à próxima leitor, e toma atenção aos escritores perto de ti.
[publicado em 21/07/2016]
Oh meu Algarve
Oh meu ardente Algarve
impressionista e mole, canta João Lúcio, com palavras que muitos conhecerão de
cor, no seu poema O Meu Algarve, de 1905. O Algarve visto pelo poeta é um
Algarve belo, um Algarve vibrante, um Algarve em que os seus contemporâneos se
teriam certamente revisto (ou admirado) mas que hoje (quase) já não existe.
Numa altura em que se
discute o petróleo no Algarve e em que parece renascer a discussão sobre o impacto
ambiental do turismo na região, as palavras de João Lúcio já não nos servem, a
não ser pela sua beleza intrínseca, porque pouco se vê nelas do Algarve de
hoje.
Os tempos mudam, é
verdade, porém, para nossa felicidade, arrisco-me a dizer que existem
escritores (e aqui incluo os poetas) que continuam a olhar o mundo (e o
Algarve) e a abrir-nos os olhos. A verdade é que Portugal sempre foi um tema
privilegiado dos escritores portugueses, como facilmente concluímos quando
olhamos a literatura portuguesa. Se os portugueses (nós todos) os temos
escutado essa é outra história, como se costuma dizer.
João Bentes, nascido na
ilha de Faro, recupera um século depois
o verso de João Lúcio, e diz (acusa) por exemplo, “oh meu algarve
impressionista e trágico”. O Algarve, ainda impressionista, já não é agora
mole, mas trágico. O tom adivinha-se outro e é realmente outro; o Algarve (ou o
algarve) que este outro João nos dá a ver é outro Algarve e vale a pena o
confronto com essa visão que nos escancara os olhos para uma nova realidade que
teimamos em ignorar. Mas felizmente o poema está aí para ser lido com olhos de
ver.
De um texto de Henrique
Manuel Bento Fialho sobre o livro que contém o poema, reproduzo um pequeno
excerto que não dispensa a leitura do todo: “Distante
da comunidade lisboeta, (João Bentes) coloca no centro das suas atenções a
paisagem algarvia. É muito pertinente esta opção, não só pela ligação às
origens geográficas, mas por poder ser hoje o Allgarve um símbolo da
degenerescência portuguesa que nos trouxe ao estado de histeria nacional em que
vamos andando, paradoxalmente, cada vez mais conformados com a miséria alheia.”
Gostaria de reproduzir
aqui todo o poema, mas não o farei, não só porque não pedi autorização ao
poeta, mas sobretudo porque gostava, caro leitor, que o procurasses e o lesses
com a atenção que merece. O livro
chama-se Odes e foi publicado por uma editora algarvia, a 4 águas, em 2012.
Deixo aqui, a terminar, uma das suas estrofes, a inicial, porque o poema é tão
bom que hesito escolher uma.
oh meu algarve cimentado
em prol
da luxúria verde dos
“resorts”
deu-te deus um mar azul e
tépido
onde lavas a cara à
sombra das concessões
nos três meses que te
salvam da fome
Convido-te pois, caro
leitor, a olhares para o Algarve (ou algarve) com os olhos do poema. E até à
próxima.
Deixa-te intrigar, o que nos intriga é bom!
publicado em 04/08/2016
Espreito o novo livro de Adão
Contreiras e confesso-me intrigado. Se o titulo já era intrigante – Mostruário
de Títulos para Poemas – o conteúdo não lhe fica atrás. Adão Contreiras
realizou inúmeras exposições de pintura e escultura e publica agora o seu
terceiro livro em três anos. O livro em causa encontra-se publicado na coleção
4águas da editora com o mesmo nome e é provável que passe despercebido, o que
também me intriga.
A qualidade referida é uma das
que mais aprecio. Ser intrigante é o contrário de ser mais do mesmo, de não ser
aquilo que com mais facilidade encontramos no dia a dia. Algo intrigante é algo
que nos interpela, que nos deixa curiosos, que desperta a nossa a nossa
inteligência e a nossa criatividade. No meu caso particular, algo sobre o qual,
caro leitor, me apetece escrever e escrever-te.
Em Faro, onde vivo, tenho
conhecido nos últimos anos alguns novos
locais/estabelecimentos comerciais que me têm intrigado e que me
continuam a intrigar. Uma cidade sem locais de encontro é uma cidade morta e
Faro estava e ainda está numa desagradável letargia de que o longo encerramento
do Café Aliança é um sinal evidente. Destaco alguns desses locais, sem prejuízo
de outros, que deixo ao teu cuidado lembrar, caro leitor.
Ocorre-me assim, sem pensar
muito, a “Sardinha de Papel”, nome que sugerirá talvez uma peixaria ou uma
livraria, mas que é uma organização comunitária e um espaço muito agradável de
exposição e venda de artesanato. A seguir, para dar mais dois exemplos, agora
na restauração, aponto “A Venda” e a “Mavala Osteria Italiana”, cada uma delas
com características singulares, que te convido, caro o leitor, a descobrir. São
espaços tão intrigantes e estimulantes como o livro inicialmente referido, um
livro de poemas que (aparentemente) não contém poemas.
Atrevo-me a dizer que Faro (e
quem diz Faro diz o Algarve) é cada vez mais um intrigante lugar de cultura e
os exemplos que apontei são disso uma pequena prova. O leitor que se deixe
intrigar, que deixe levar pela curiosidade, livros e locais intrigantes não
faltam.
Adão Contreiras vive nos Gorjões (no
campo, num Algarve diferente mas igual a si mesmo, em que em dois bancos
corridos junto à estrada se põem as notícias em dia), lugar onde vive também o
músico de jazz Zé Eduardo e, caro leitor, se tiver a sorte de ir a uma das
festas que ali ocasionalmente se realizam, perceberá que a cultura (seja qual
for o significado que se der à palavra) está viva a sul e recomenda-se.
Termino com um dos títulos/versos
do livro, mais precisamente o da página 79: “nada tem peso a não ser a minha
imaginação”.
Até à próxima, caro leitor, e
deixa-te intrigar.
OS MELHORES AFRODISÍACOS
Ambicionamos o reconhecimento da
qualidade do nosso produto e da nossa marca, isto poderiam dizer os escritores
residentes no Algarve, para os que tenho tentado chamar a atenção, nesta
rubrica que tem por guia o título “Da minha janela vê-se o Algarve” e por mote este
desejo manifesto de destacar os muitos livros de qualidade editados no Algarve,
que constituem por assim dizer um produto e uma marca locais.
Com as limitações que me são
próprias e as da rubrica em si, desde logo o número de caracteres disponíveis
(dois mil e quinhentos a três mil, incluindo espaços) tenho-me esforçado por
levar o meu propósito avante. Mas voltando ao princípio, digo-vos que a frase
com que comecei este artigo pertence à presidente da associação de produtores
de ostras da Culatra, Sílvia Padinha, devendo no entanto ler-se “das nossas
ostras” onde escrevi “do nosso produto”.
Não sei se gostam de ostras,
caros leitores, mas, em caso afirmativo, creio que preferirão as melhores e
(talvez, porque não?) as que são de produção local, como as certificadas
“Ostras da Culatra” de que se falava numa das últimas edições deste jornal,
ideia que me pareceu bastante boa.
Quanto aos livros as coisas não
me parecem muito diferentes (e eu sei que me vão criticar por esta afirmação!),
porque se queremos literatura de qualidade no Algarve não me parece nada uma má
ideia (aliás parece-me a única razoável) privilegiar a produção local, dando
preferência aos livros de qualidade aqui editados. E isto implicaria desde logo
uma política efetiva de apoio por parte das entidades locais e não vagas
declarações de intenções.
Sei que esta conversa daria (e
tem dado) pano para mangas e que é eivada de escolhos (para não lhes chamar
preconceitos), mas não tenho espaço para muito mais, que os caracteres já
começam a escassear para o tanto que haveria a dizer e que tem de ser dito e
discutido. E eu, verdade seja dita, não sou dado a falar sozinho e ainda quero
trazer aqui um poeta (e advogado) que vive em Faro mas nasceu em Tavira, como o
poeta Álvaro de Campos.
Tiago Nené, é este o poeta, foi
publicado, além do mais, numa edição bilingue, pelo Ajuntamento de Punta
Umbria, Andaluzia, Espanha, nunca tendo recebido idêntica atenção em Portugal.
E o mesmo aconteceu a outros autores algarvios e portugueses que integraram a
coleção em causa. Não vou comentar, acho que neste casos os fatos falam por si.
Tire o leitor as suas conclusões.
Mas vamos ao poema, retirado de
Polishop, edição de 2010. Como comecei com ostras escolhi um poema de amor,
pelas notórias características afrodisíacas comuns às ostras e aos poemas.
SINFONIA DAS NUVENS
eu acho que te amo, disse.
como se o amor,
o verdadeiro amor,
admitisse
algum tipo de dúvida
Até à próxima, caros leitores, e
sejam felizes no amor, na gastronomia e nas leituras.
PS para ser honesto, e eu tento
sê-lo, ainda me sobraram alguns caracteres, mas a verdade é que já disse o que
planeei dizer e fico por aqui.
01 de setembro
Nova Fábula Antiga
Era uma vez, há muitos, muitos anos, um mouro velho que vivia feliz no amor da sua
filha e da sua religião, assim dizia ele, e, ainda que falasse verdade, era
óbvio que o amor mais forte era o que nutria por sua filha. E quis o destino,
ou Alá, que Ali Abdul Ali, assim se chamava o mouro, viesse a ser colocado
perante o dilema de ter de escolher entre a sua filha e a sua religião. Mas não
nos adiantemos, leitor.
Por essa altura planeavam os cristãos um cerco ou ataque
surpresa ao castelo, que a imaginação dos guerreiros é limitada e prática e,
para o efeito, tinham sido enviados alguns batedores, entre eles um belo jovem
de cabelos louros, órfão de pai e mãe, criado na doce adoração pela irmã mais
velha, mulher muito devota e intransigente. Este jovem vai ter um papel
importante. Mas não nos adiantemos, leitor.
A mulher do mouro morrera por ocasião do nascimento da filha,
momento em que ele decidiu nunca mais
amar alguém que não fosse a filha, jovem alegre e um pouco fútil que tardava em
casar. Indignava-se o mouro e censurava a filha, mas em segredo dava graças a
Alá por ter o amor da sua filha só para si. E por esta altura já o leitor
percebeu que rumo esta história vai tomar, mas não nos adiantemos.
Esta história que conto já foi contada antes e eu não me
desviarei muito, apenas a contarei à minha maneira, como se fosse contada pela
primeira vez. Mas recolha-se o narrador e deixe que a história se conte.
Quis o destino (e quer a história) que o cristão encontrasse
a moura e ambos se apaixonassem, perante o horror e o desespero daqueles que
mais os amavam. E as religiões de ambos, pai e irmã, ainda que diferentes e
mesmo antagónicas, diziam a ambos o mesmo, que a moura e o cristão deviam
renegar o seu amor. Por isso eles decidiram fugir juntos, mas tal nunca viria a
acontecer e acho que ninguém se
surpreenderá se o disser já, sem mais delongas.
Foi o cristão encarregado de liderar um ataque surpresa, pela
calada da noite e veio a ser morto pelo pai da sua amada que, ao contrário do
que eu próprio antecipara, deixou que o amor pela sua filha ficasse em segundo
plano. Tivesse a jovem moura se matado também e a história terminaria aqui, mas
a história que se quer contar é outra história. Vejamos então!
Na fuga, porque a vitória lhe fugia, tropeçou o mouro velho,
bateu com a cabeça e morreu logo ali. Conquistado o Castelo, veio a irmã do
cristão enterrá-lo e, perante a visão do irmão que tão amado lhe fora,
enlouqueceu e perdeu para sempre a razão. A jovem moura, que se sabia grávida,
partiu para longe e, ainda que não o possa confirmar, sei que foi feliz, porque
assim o escrevo. E o mesmo para o filho, que a felicidade é sempre generosa,
até numa fábula tão desgraçada como esta.
E assim, querendo apenas contar uma pequena história, ou que
ela se contasse, não resisti a meter o bedelho, por assim dizer, com as minhas
considerações de autor sempre interessado em discutir a própria escrita, que
afinal nada mais é do que a minha forma de contar.
15 de setembro
SER ALGARVIO!
Não nasci no Algarve mas sinto-me
e digo-me algarvio; é pois natural que me pergunte o que é ser algarvio,
partindo do princípio que ser algarvio é muito mais um estado de espírito do
que a simples consequência geográfica de aqui ter nascido.
Não nasci no Algarve, repito, e o
mesmo aconteceu aos meus pais. No entanto, se quisesse alegar raízes ancestrais
a ligar-me a esta região, é certo que poderia fazê-lo, invocando os meus avós
maternos, algarvios da serra alentejana, bem como os seus pais e os pais dos
seus pais. Porém, a questão em causa é outra.
A serra é uma fronteira natural
que criou e acentuou durante muito tempo um Algarve que se fez diferente,
destino turístico de muitos no Verão, destino maldito dos que aqui vivem o
resto do ano.
Mas, retomando a ideia de que ser
algarvio é um estado de espírito, ideia inicial aqui avançada, em que
consistirá então esse estado? Será ter
o olhar sempre pousado no azul? Será falar a cantar? Será gostar de xarém e de
berbigão? Será ser avaro e comer na gaveta? Ser irreverente? Ser aquele
rabugento alegre que reclama de tudo e que com pouco se alegra? Ser doce como o
figo e intenso como o medronho? Estar sempre de férias? Gostar de peixe
grelhado?
Muitas perguntas e nenhuma
resposta, pode o leitor dizer e terá razão, mas a verdade é que perguntei a
muitos como eu o que é ser algarvio e as respostas raramente coincidiram. A luz
e o azul apareciam em muitas respostas, no entanto referiam-se mais ao ser
Algarve do que ao ser algarvio, apesar de se sentirem todos algarvios.
Ou será que ser que ser algarvio
é apenas estar aqui e querer e gostar de estar aqui. Mas o melhor é deixar que
um escritor nos fale dessa sensação de sentir o Algarve na sua plenitude. E que
melhor escritor do que um escritor algarvio que nasceu em Mar del Plata
(Argentina) e tão bem diz o Algarve.
Penetro no azul
quero misturar-me com a paisagem
fundir-me com este lugar
fazer parte das salinas das
ilhas
dos pinheiros dos cheiros
vegetais
da vista da varanda da casa abandonada
estar nesta luz e neste vento
neste aroma no monte próximo
na nora da casa destruída
Quero devorar a erva com estes cavalos
devorar
a paisagem voar com estas aves
ser este moinho ser o comboio
que passa
Este fragmento do poema Marim, de
António Ventura, diz bem, na minha opinião, este sentir-se algarvio, ou
sentir-se a sul, que também assim se poderia dizer, este devaneio que nos leva
a desejar a fusão com este lugar.
A terminar, e de passagem,
gostaria de manifestar o meu sentido desejo de ver nova edição de as Visões de
Marim, um livro decididamente a Sul, de António Ventura e Fernando Cabrita,
onde está o citado poema Marim.
29 de setembro
O ALIANÇA ESTÁ MORTO! LONGA VIDA
AO ALIANÇA!
Estou no
Aliança e a porta giratória está a funcionar, o que nunca acontecia no Verão,
se a memória não me falha. O salão continua espaçoso, os painéis de madeira
continuam a ostentar fotografias de um Algarve a preto e branco, os tetos
continuam altos e com estuques perfeitos e eu continuo a sentir-me bem aqui.
Claro que há
diferenças, mas elas não me interessam agora. Estou no Aliança, repito, são
14:45 de um Domingo de Verão e tenho o Aliança quase só para mim. Escrevo à mão
um rascunho desta crónica, sobre o tampo de mármore da minha memória e sinto-me
bem neste café que, não sendo o mesmo que foi, é um café (ainda que insistam em
chamar-lhe cervejaria) como já quase não existe, como dizemos às vezes dos
homens e das mulheres a que reconhecemos valor (e às vezes exatamente o contrário).
Já não existem homens como tu, dizem-me às vezes, e eu fico a pensar se é um
elogio ou exatamente o contrário. No entanto, mudam-se os tempos e com os
tempos mudam-se (ou morrem) as tradições e os lugares. Sempre foi assim e
sempre assim será. Não tenho nada contra, no geral, e muito menos no caso do
Aliança.
O Aliança que
eu conheci está morto, já não existe, a não ser na minha memória. Levanto-me e
vou à casa de banho, que já não é onde era, e sinto a falta do corredor à
esquerda que já não existe e levava ao quiosque, ao corredor onde se jogava
xadrez e, recordo-me ainda, à sala dos bilhares. E, no entanto, o Aliança está
vivo, está mudado mas está vivo, se para melhor ou pior, sinceramente não sei,
acho que depende do ponto de vista e acho que erra quem tomar partido, assim,
sem mais nem menos, preto no branco. Confesso que se fosse a minha primeira vez
no Aliança, este local me agradaria sem sombra de dúvida, mas tenho memórias do
Aliança e tinha (e tenho) expectativas sobre este local e elas influenciam
necessariamente a minha opinião.
Logo à
partida, pela carga histórica que o café carrega, gostava de ver de alguma
forma acentuada essa característica com, por exemplo, um folheto que
descrevesse o passado do local ou um conjunto de livros e outros materiais
disponíveis que o documentassem (podiam passar no ecrã existente utilizado para
televisão) preservando/documentando esse mesmo passado. Dada a carga cultural
do mesmo também me pareceria bem a existência no lugar de lançamentos de
livros, recitais, espetáculos, mas este é apenas um ponto de vista, o meu ponto
de vista, fruto do meu passado, do meu relacionamento com o lugar e da minha
visão de um futuro presente.
Numa entrevista publicada antes
da reabertura do Aliança o responsável por este espaço, Mário Nogueira,
afirmava, parecendo concordar comigo que, entre outras coisas, “Queremos que
volte a ser um espaço popular com um bom peso na área da divulgação da poesia,
música, jazz, música popular, (no próximo ano quero charolas no Aliança). Como dizemos
no slogan, que já começámos a divulgar, queremos que seja o Coração
de Faro.”
Nestas
crónicas pretendo apenas levantar questões, expor mais dúvidas do que certezas.
Não pretendo ter razão, disso estou certo, pelo menos aquela razão que exclui
todas as outras razões.
O Aliança está
morto! Longa vida ao Aliança!
Ah, já me esquecia, a cerveja é
boa e pode pedir-se um traçado de cerveja branca e preta.
13 de Outubro de 2016
É MELHOR VIVER DO QUE
ESTAR MORTO
Se disser que sou velho
muitos o negarão, pelo menos aqueles que têm a minha idade ou mais, porque a
verdade é que se gosta cada vez menos de ser velho. Não penso muito se sou ou
não velho, se estou ou não velho, mas a verdade é que já fui mais novo, já fui
várias décadas mais novo, o que me enche normalmente de orgulho. Ter vivido é
bom, faz-me sentir um verdadeiro viajante do tempo, e poder ainda viver é
igualmente bom.
É claro que envelhecer é
também estar mais perto da morte, ainda que a morte corra sempre a par da vida.
É claro que envelhecer é conhecer a degradação e sucessivas limitações
implícitas, mas não é isso que a vida sempre é, um sucessivo ultrapassar de
limitações ?
A esta altura o leitor
interroga-se sem dúvida que idade terei eu e porque falo de velhice e de morte.
Respondo de imediato, afirmando que tenho 59 anos de idade, ou pelo menos terei
59 anos quando este artigo for publicado, se ainda estiver vivo (lagarto,
lagarto, lagarto). Não sofro de qualquer doença terminal nem de qualquer achaque
para além dos normais nesta idade, mas a morte sempre me fascinou, nem que seja
apenas para lhe contrapor a vida. E também as limitações com que sempre
deparamos, porque na vida nunca importa tanto o que somos e o que nos acontece,
quanto o que fazemos com o que somos e o que nos acontece.
Por outro lado,
convencido que estive que morreria cerca dos trinta anos, só posso estar grato
pelo que vivi, recebi e realizei depois. Por pouco que tenha sido, foi de
certeza muito, disso não tenho qualquer dúvida e o mesmo quanto ao que ainda
viverei.
Mas o que pensaria eu se
tivesse oitenta e cinco e anos, que é a idade que a minha mãe tem? Gostaria de
pensar que me sentiria grato, gostaria de pensar que ainda quereria viver,
ainda gostaria de amar, de escrever, mas o que sei eu? Penso que foi Camus que
disse que as razões para viver são também as razões para morrer, mas gosto de
pensar que é melhor viver do que estar morto.
Há poucos anos atrás recordo-me de estar com
um amigo na presença do centenário Manoel de Oliveira, que nos batia por um ano
na soma das nossas idades, e nos admirámos com a energia que se desprendia
daquele corpo debilitado. Quem me dera a mim, repito o que então senti e disse
a mim mesmo, estar sempre tão vivo quanto ele estava, quem me dera a mim nunca
chegar a dizer que o que quero mesmo é morrer.
Oliver Sacks pouco dias antes de fazer oitenta anos e poucos
anos antes de morrer, escreveu: Aos
oitenta paira o espectro da demência ou do derrame. Um terço dos meus
contemporâneos está morto, e vários outros, com graves problemas mentais ou
físicos, vivem presos numa existência trágica e mínima. Aos oitenta as marcas
da decadência são demasiado visíveis. Nossas reações são um tanto mais lentas,
os nomes nos fogem mais amiúde, e cumpre administrar melhor as energias, mas
ainda assim é possível nos sentirmos muitas vezes cheios de vigor e nem um
pouco “velhos”.
30 de Outubro de 2016
LEIA
E GANHE PRÉMIOS!
O
prémio Nobel da literatura foi este ano atribuído a Bob Dylan. Alguns
concordam, outros discordam. Não vou discutir se o prémio foi merecido ou não,
não vou discutir se fo prémio foi ou não bem atribuído, mas quero deixar claro
que são duas coisas diferentes.
Um
prémio, qualquer prémio, é sempre o reconhecimento do premiado e também o
reconhecimento da área em que se distingue. Quero dizer com isto que um prémio
literário, qualquer prémio literário, e o Nobel, por mais importância que se
lhe conceda, é um entre muitos, aponta em primeiro lugar para a literatura,
para o seu valor, dando-lhe destaque, e só depois para o premiado.
Gosto
de pensar que estes prémios, ao afirmarem a literatura e os seus autores,
são um convite à leitura, não só para os
leitores habituais mas também para aqueles que habitualmente não leem. E é
claro que ao distinguir um autor, quer seja um dos seus livros ou a sua obra,
se está a sugerir a sua leitura e o Nobel é exemplo disso, como facilmente se
pode constatar nos escaparates das livrarias e demais postos de vendas depois
da sua atribuição.
O
que me causa alguma confusão é que os prémios literários, e o Nobel é exemplo,
muitas vezes chamem mais a atenção para o autor do que para a sua obra, que
muitos desconhecem e continuarão a desconhecer. O que me causa alguma confusão
é que alguns prémios chamem mais a atenção para si mesmos do que para o
premiado. Mas o que me causa mesmo confusão é que o interesse pela literatura,
e não esta, esteja pela hora da morte, desculpem-me a expressão vulgar.
É
claro que os prémios são importantes, sem dúvida, mas gostaria de pensar que o
mais importante é a literatura e o prémio que pode ser a sua leitura para
qualquer pessoa que a encontre, atraída ou não por prémios literários. Confesso
que eu próprio às vezes me interrogo quanto ao valor da literatura, mas não é
menos verdade que continuo a ler, se escritores e obras premiadas ou não, tanto me faz, desde que me permita
viver e sonhar. Mas se os prémios não são tudo, ignora-los também não me parece
a melhor atitude, porque ignorar os prémios literários é, no fundo, ignorar a
própria literatura.
Fernando
Esteves Pinto ganhou este ano o prémio literário Cidade de Almada, na categoria
de romance, e Carlos Campaniço ganhou o mesmo prémio em 2012. É um prémio
importante e com prestígio no panorama literário nacional. Aponta para a
literatura nacional e para os seus autores.
Assim,
a minha sugestão é que se deixe tentar, caro leitor. “O que não mata, engorda”,
diz o povo, por isso procure os livros destes dois escritores e leia-os. Pode
compra-los, trazê-los da biblioteca ou pedi-los a um amigo, pouco importa! E
depois diga-me coisas.
PS-
Pouca importância tem, caro leitor, mas ambos os escritores residem no Algarve.