Foi a última coisa que disse, mas ninguém o ouviu.
Ninguém o ouviu, e ele sabia que nenhum era surdo.
Nenhum era surdo, mas todos ouviam apenas o que queriam.
Ouviam apenas o que queriam mas viam ainda menos.
Viam ainda menos, mas estavam muito mais atentos.
Estavam muito mais atentos, mas não percebiam patavina.
Não percebiam patavina, mas também ninguém estava à esperava que percebessem
coisa alguma.
Ninguém estava à espera que percebessem coisa alguma, bastava que concordassem.
Bastava que concordassem, e foi isso que fizeram.
Foi isso que fizeram, e também isto e aquilo.
Isto e aquilo são a mesma coisa, afirmou, mas bem sabia que assim não era.
Assim não era possível, disseram-lhe, e era verdade, pois por mais que tentasse foi
sempre impossível.
Foi sempre impossível, ainda que às vezes quase parecesse possível.
Ainda que às vezes quase parecesse possível, ele gostava sempre de dizer que era
impossível.
Ele gostava sempre de dizer que era impossível, e às vezes até ele acreditava.
Às vezes até ele acreditava nas suas mentiras.
Nas suas mentiras encerravam-se muitas verdades.
Muitas verdades são esquecidas, outras apenas ignoradas.
Apenas ignoradas e nunca esquecidas estão muitas coisas que em nós fazem toda a
diferença.
Fazem toda a diferença, disse ele, sobretudo as pequenas coisas a que não damos
qualquer importância.
Não damos qualquer importância a quase tudo que é realmente importante.
Realmente importante é o amor, ele devia ser a nossa religião e a nossa fé.
A nossa fé, disse ele, consiste em não acreditar em nada.
Não acreditar em nada é ser capaz de acreditar em tudo.
Ser capaz de acreditar em tudo é estar aberto a tudo.
Estar aberto a tudo é estar completamente vivo.
Completamente vivo, disse ele, estou completamente vivo.
Estou completamente vivo, disse ele, mas estava quase morto.
Estava quase morto e ainda não o sabia.
Ainda não o sabia, mas ia sabê-lo não tardaria nada.
Não tardaria nada, já estava acontecer.
Já estava a acontecer, ainda que não o soubessem.
Ainda que não o soubessem, já pouco podiam fazer.
Já pouco podiam fazer, a não ser esperar.
A não ser esperar só lhes restava desesperar.
Só lhes restava desesperar: desesperaram.
Desesperaram e continuaram a desesperar.
Continuaram a desesperar porque nada mais lhes restava.
Porque nada mais lhes restava, começaram tudo de novo.
Começaram tudo de novo, uma e outra vez.
Uma e outra vez tentou ouvir, mas não conseguia.
Tentou ouvir, mas não conseguia, e quase desistia.
Quase desistia, não fosse ser teimoso.
Não fosse ser teimoso há muito que estaria vencido.
Há muito estaria vencido se não acreditasse na vitória.
Se não acreditasse na vitória só lhe restaria a derrota.
Só lhe restaria a derrota, se renunciasse ao sonho.
Se renunciasse ao sonho, teria de viver na realidade.
Teria de viver na realidade, estava a imaginar coisas.
Estava a imaginar coisas e não era a primeira vez.
Não era a primeira vez, nem seria a última.
Nem seria a última, rematou.
Rematou, falhou.
Falhou, voltou a tentar.
Voltou a tentar, voltou a falhar.
Voltou a falhar, pensou em desistir.
Pensou em desistir, seguiu em frente.
Seguiu em frente, seguiu o caminho.
Seguiu o caminho, passo após passo.
Passo após passo avançou.
Avançou e estava cada mais próximo.
Estava cada vez mais próximo, próximo de desistir.
Próximo de desistir, mas ainda longe.
Mas ainda longe já via a meta.
Já via a meta, dentro da sua cabeça.
Dentro da sua cabeça, era o vazio.
Era o vazio, um vazio construído.
Um vazio construído, feito de nadas.
Feito de nadas, assim sou eu.
Assim sou eu, disse ele, e calou-se.
Calou-se, mas não era o fim.
Não era o fim, mas já tinha acabado.
Tinha acabado, mas ninguém sabia.
Ninguém sabia até que ele disse: é o fim.
É o fim, disse ele, e foi a última coisa que disse.
[Escrever é continuamente dobrar e desdobrar palavras à procura de um sentido.]