A MICROFICÇÃO EM PORTUGAL, UM GÉNERO BASTARDO?

A MICROFICÇÃO EM PORTUGAL, UM GÉNERO BASTARDO?
Um quase ensaio em formato de folhetim


I

Rui Costa, co-organizador da Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa, afirmava-se “surpreso com o facto de esta ter sido a primeira antologia de micro–ficção portuguesa, sabendo nós como ela vem sendo praticada há alguns anos em Portugal e noutros países”. Editada em 2008, ela foi na verdade a primeira e mantém-se ainda a única antologia de microficção portuguesa.

Por outro lado, no “Esboço para um ensaio sobre micronarrativa”, prefácio da Primeira Antologia, Henrique Manuel Bento Fialho afirma que “ninguém pode negar que, sob a capa de poema, poema em prosa, aforismo, ou o que quer que seja, a micronarrativa vai marcando presença na literatura portuguesa.”

Apesar do termo utilizado por Rui Costa e Henrique Manuel Bento Fialho ser diferente, quer um quer outro afirmam o mesmo, reconhecendo a presença crescente na literatura portuguesa de um conjunto de textos literários breves que parecem não caber exlusivamente em qualquer dos géneros consagrados.

Rui Costa afirma que aquilo que mais o “atrai na micro-ficção é a sua extrema aptidão para a promiscuidade. A micro-ficção não é um género literário, é a riqueza da impossibilidade de o ser. Confunde os géneros e deixa-nos (bem) perdidos no caminho para qualquer definição.” (http://luis-ene.blogspot.com/2010/11/sobre-micro-ficcao.html)

A expressão “micronarrativa” foi usada pela Minguante, publicação digital dedicada exclusivamente ao que definia como narrativas breves que não deveriam exceder duzentas palavras e poderiam apresentar-se em prosa ou em verso. A Minguante, com uma participação de centenas de autores, confirmou, se necessário fosse, a presença forte da microficção em Portugal.

Qualquer que seja o termo utilizado, pode assim concluir-se com facilidade que existe a realidade que qualquer um desses termos pretende abarcar: textos literários breves (ficções ou narrativas) que parecem fintar todos os géneros. Pode também concluir-se sem grandes considerandos que a prática desses textos breves vem marcando presença na literatura portuguesa já há alguns anos.

No entanto, Henrique Manuel Bento Fialho, no prefácio à Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa, sinaliza a não assunção em Portugal da micronarrativa enquanto tal, afirmando no entanto que não caberia averiguar ali os factores que a determinam.

A brevidade e a seu carácter ficcional (ou narrativo) não serão as únicas características destes textos literários, que designarei a partir de agora por microficção, expressão que parece ganhar alguma projecção internacional, e que uso não para afirmar a existência de um novo género ou a escolha definitiva desta monenclatura, mas apenas de forma prática para abranger todos esses textos breves que parecem escapar a todos os géneros, participando muitas vezes em vários deles, e que vêm a ser cada vez mais praticados na literatura portuguesa.

Tal como o Rui Costa, também eu fico surpreendido, não só pelo aparecimento tardio e isolado de uma antologia de microficcção portuguesa, mas também pela desconfiança com que a microficção vem sendo recebida em Portugal, como se de um filho bastardo se tratasse, por parte da crítica, das editoras, e até por parte de alguns daqueles que as escrevem.

Existirão sem dúvida factores que condicionam e determinam que assim seja, e gostaria de os tentar perceber, mas de momento apenas quero dar conta de alguma desconfiança e receio relativamente à microficção que tenho sentido por parte dos próprios autores, mesmo dos que a escrevem hoje em dia em Portugal.

Para tanto, não como ponto de chegada mas como ponto de partida, pretendendo ser provocador mas não ofensivo, passarei em revista de forma sumária algumas posições e declaraçãos de autores que em Portugal têm escrito microficção e participaram na primeira (e única) antologia de microficção bem como na Minguante, publicação exclusivamente dirigida à microficção. São eles, para além do Rui Costa e do Henrique Manuel Bento Fialho já referidos, o Rui Manuel Amaral, o Paulo Rodrigues Ferreira e o Paulo Kellerman. Poderiam ser outros, muitos ficam sem dúvida de fora, mas eram os que estavam mais à mão, por assim dizer. Foram utilizadas sobretudo as suas declarações em entrevistas à Minguante.

Vejamos então algumas das posições destes autores que escrevem microficções relativamente à própria microficção. Mas antes, que fique claro que escrevo não como um estudioso da microficção, que não sou, mas apenas como um praticante que sou, já de longa data..


II

Rui Manuel Amaral, por exemplo, quando lhe é pedido que classifique os seus textos, (http://minguante.com/?entrevista=rui_manuel_amaral) responde habitualmente que não gosta das expressões "microconto" ou "micronarrativa" porque estão demasiado conotadas com um conjunto de regras que não segue, e o mesmo quanto à expressão microficção, aplicada cada vez mais aos seus textos, inclusive na publicidade dos seus livros, sendo mesmo designado pela sua editora como “o nosso grande microficcionista”.(http://www.angelus-novus.com/livros/detalhe.php?id=291)

Não gostando assim dos termos micro-narrativa, micro-conto ou micro-ficção (http://orgialiteraria.com/?p=1725) Rui Manuel Amaral afirma que os seus contos são geralmente breves, de facto, mas porque essa é a forma que mais lhe convém para contar uma história. Prefere, refere ainda, dizer que escreve histórias ou ficções.
Rui Manuel Amaral escreve pois ficção, mas não microficção.

Confesso que não vejo a razão para Rui Manuel Amaral negar que escreve microficção, pelo menos se pensarmos a microficção como o conjunto dos textos breves de ficção que escapam actualmente a qualquer classificação. Até porque o Rui Manuel Amaral não se importa de dizer que escreve contos, ou histórias ou ficções.

A verdade é que os textos de Rui Manuel Amaral escapam na minha opinião à designação de contos, não porque sejam menos, mas porque são algo mais. E não é só, nem de longe, a brevidade que lhes confere essa diferença.Curioso é que o seu editor e muitos dos que comentam os seus textos os considerem microficções, enquanto o seu autor se tem afadigado a negá-lo.

Se há um preconceito em relação à microficção, nomeadamente por parte da crítica e dos editores, não posso deixar de estranhar que seja um autor de microficção ele próprio a alimentá-lo. O Rui Manuel Amaral ou qualquer outro autor que escreva microficção não precisa assumi-lo, mas também não me parece que precise negá-lo, o que de certa forma já não o faz quando diz, numa entrevista recente, lembrando que tem sido sistematicamente associado à microficção, (http://orgialiteraria.com/?p=1725 ) que é uma espécie de rótulo com o qual não se identifica, mas que também não o incomoda.
Seja como for, Rui Manuel Amaral parece revelar, face à microficção uma desconfiança que não se percebe, ainda que se aceite como opção do autor. Temo no entanto que os leitores e os estudiosos não lhe deêm razão.
Mas passemos à frente.

III

A Prisão do Ético, livro de estreia de Paulo Rodrigues Ferreira contém um conjunto de textos breves que podem ser facilmente classificados como microficções e o mesmo autor tem uma pratica digital já longa de produção de outros tantos textos que dificilmente receberiam outra classificação. No entanto, é o próprio autor que se esquiva a essa classificação, afirmando que “Acho que não me encaixo na micronarrativa. Sou demasiado eclético para ser apenas cento e quarenta caracteres de texto, uma página ou o que quer que seja. Muitas vezes, digo micronarrativa para usar um código que seja facilmente entendido por quem me ouve ou lê. A Prisão do Ético, por exemplo, se tem uma segunda parte mais directa, com textos mais curtos, mais facilmente identificáveis com a «micronarrativa», a primeira não tem nada de micronarrativa.” (http://minguante.com/?entrevista=paulo_rodrigues_ferreira)
Mais uma vez deparo com um autor de microficções que se esforça por negá-lo, como se escrever microficções fosse um estigma, e mais uma vez me surpreendo.
Paulo Rodrigues Ferreira e Rui Amaral, ainda que com nuances, recusam-se assim não só a ser classificados como microficcionistas, mas também a admitir que as escrevem. Não pretendendo fazer qualquer juízo de valor sobre essa atitude comum e sendo que ambos escrevem com regularidade textos de ficção breves que podem muito bem ser classificados como microficções, não posso deixar de interrogar porquê esta sua atitude de negação da microficção.
Quererão afinal negá-la apenas como género, mas aceitando a existência isolada de textos breves de ficção que não se incluem nos géneros tradicionais?
Eles não negam a literariedade dos seus próprios textos, apenas parecem recear que eles sejam classificados como microficções. O que quererá isso dizer?

IV

A assunção da microficcção como género em Portugal parece, desta forma, ser desde logo dificultada pelos próprios autores que a escrevem, partilhando sem dúvida algum preconceito comum a outros escritores, um pouco como se quem a escreve se sinta, apesar de o fazer, incomodado com o facto. Não quero aqui ponderar as causas de tal atitude mas apenas trazê-la à luz para que seja, espero eu, seja pensada e progresivamente se dissipe.

Recordo que não defendo aqui a microficção como género, mais próximo que estou, como seu praticante e não seu estudioso, de considerar, como Rui Costa, que ela “não é um género literário, é a riqueza da impossibilidade de o ser.” Mas por outro lado acredito que, mesmo que a microficção não seja um novo género literário, existem sem dúvida microficções, orfãs de género literário, mutantes – como diz ainda Rui Costa - que vão acumulando formas, interacções, desequilíbrios.

Esses textos literários breves que confundem os géneros existem, e são provocadores e vanguardistas, pelo que negar a existência da microficção é de certa forma negá-los e renegá-los, o que me parece mau para a microficção. Pelo menos esse é o meu medo.
Mas continuemos.

V

“Quanto à micronarrativa” – afirma Paulo Kellerman - “interessa-me, enquanto escritor, quando vista como uma forma de estória condensada, em que se procura restringir um texto ao essencial e, desse modo, torná-lo mais pujante e eficaz; parece-me um exercício muito aliciante e recompensador, mas também tremendamente exigente. Mas quando micronarrativa significa uma espécie de jogo de palavras ou mesmo uma forma pobre e inábil de aforismo, já me interessa menos.“ (http://minguante.com/?entrevista=paulo_kellerman)

Paulo Kellerman aceita a microficção mas também parece desconfiar dela, ainda que essa atitude surja apenas em termos de interesse pessoal, o que me parece perfeitamente legítimo. Esta posição surge com bastante clareza quando ele fala de “Miniaturas”, o seu livro de microficções, vencedor de um prémio literário: “de um lado tinha os meus contos longos, de temática existencialista, pesados e tensos, deprimidos e deprimentes, sobre morte e sexo e solidão; por outro lado, por vezes entretinha-me a escrever uns mini-contos meio palermas, muito breves e secos, uns irónicos e outros com pretensões humorísticas, sobre coisas absurdas e inesperadas como torneiras que se apaixonam e árvores que querem viajar. Os primeiros eram os que me interessam verdadeiramente enquanto “projecto literário”, os segundos não passavam de um entretenimento inconsequente. Acontece que fiz uma compilação de uns e outra compilação dos outros e enviei tudo para um concurso literário; ganhou o entretenimento inconsequente e o resultado foi a publicação do «Miniaturas».”

Chamar a microficção de entretenimento inconsequente, o que Paulo Kellerman não faz, talvez não desagradasse a Rui Costa, tal como muitos poetas gostam de dizer que a poesia é inútil. Já o referi antes, a microficção é provocadora, mas isso não a faz menos literária, antes pelo contrário. No entanto, parece-me que muitos autores pensam que a microficção é algo menor, até menor do que um entretenimento inconsequente. Preconceito ou medo, esta é uma atitude que – a par de algum desconhecimento do género – tenho muitas vezes sentido, mesmo da parte de quem escreve microficção, como já aqui referi e agora reafirmo. E isso preocupa-me.


VI

Rui Zink, a propósito da brevidade na escrita e do seu valor referiu que “o tamanho conta, sim. Mas o que se faz com o que se tem também conta. Fazer um texto muito bom em forma breve é mais difícil do que um romance. Mas fazer um micro “apenas bom” é mais fácil.” (http://minguante.com/?entrevista=rui_zink)
É facil concordar com Rui Zink, e eu poderia concordar, mas já não concordo com aqueles que desvalorizam a microficção afirmando que a maior parte das microficções não tem qualidade, como já ouvi muitas vezes dizer e já vi escrito, até, desculpem-se se sou repetivo mas é propositado, por aqueles que a escrevem.
Desde quando é que a qualidade é parte integrante de um género? Os poemas maus não são poemas? Porque há romances maus nega-se a existência do romance enquanto género?
Mas então porquê essa desconfiança face à microficção, até por parte dos seus próprios autores?
Henrique Manuel Bento Fialho, no prefácio à Primeira Antologia de Micro-Ficção Portuguesa, sinaliza a não assunção em Portugal da micronarrativa enquanto tal, como já referi, afirmando no entanto que não caberia averiguar ali os factores que a determinam. Não me cabe também aqui, nem me parece que o conseguisse fazer, confesso, averiguar os factores que conduzem em Portugal à desconfiança existente face à microficção. Quero tão só chamar a atenção para esse facto, e talvez sensibilizar os autores para lançarem um olhar renovado e sem preconceitos à microficção, sobretudo à microficção que se vem fazendo em Portugal.

VII


As microficções vêm marcando presença na literatura portuguesa, como bem refere Henrique Manuel Bento Fialho, “sob a capa de poema, poema em prosa, aforismo, ou o quer que seja”, não se assumindo como microficções. O próprio Henrique Manuel Bento Fialho, um dos primeiros entre nós a praticar e a reflectir sobre a micro-ficção, parece não ter escapado a essa prática de ocultamento de microficções.

Estórias Domésticas, publicada em 2006, contém uma série de microficções que dão título ao livro que, no seu conjunto, se parece apresentar como um livro de poemas, ainda que o seu autor sugira, a quem o quiser arrumar numa estante, um lugar entre as prosas e os poemas.

Não acredito que o autor negue àqueles textos, verdadeiras microficções, a sua qualidade de microficções, apenas não o assumiu explicitamente, nem tem de o fazer. Não será alheio a esse facto a sua opinião expressa no prefácio da Primeira Antologia que “é no poema em prosa que a micronarrativa melhor se consubstancia”, bem como o referido imbróglio que a mesma suscita, ou seja, no dizer do mesmo autor, “a confusão que instala entre poesia e prosa. Esta ambiguidade da microficção é sem duvida a mesma que o autor atribui ao seu livro, sugerindo um lugar entre as prosas e os poemas, um lugar de problemas.

O lugar da microficção, ou das microficções, é sem duvida um lugar de problemas, um lugar de ambiguidades, um lugar de provocações. Antes de se afirmar pelo que é, a microficção afirma-se pelo que não é, ou pelo que não é ao mesmo tempo que parece ser várias coisas. É assim que se pode falar da sua diferença, bem como da sua semelhança, relativamente ao poema em prosa ou ao poema beve em geral, à anedota, ao aforismo, ao fragmento, ao apontamento e por aí adiante. Mas, não sendo igual a mais nada e parecida a muita coisa, o que é afinal a microficção?

VIII

Curiosamente, é um autor que não parece escrever com regularidade microficções, que assume a posição mais favorável e mais abertamente de agrado pela microficção, sendo também o co-responsável pela primeira e única antologia de microficção portuguesa.

O interesse de Rui Costa pela microficção tem a ver, como ele próprio refere, com a sua extrema aptidão para a promiscuidade. A “forma leve da micro-ficção permite-lhe circular melhor: como se fosse possível estar em vários sítios ao mesmo tempo. A sua plasticidade nómada fá-la experimentar a banda desenhada ou a eficácia do spot publicitário; a poesia, se o ritmo deixar; o aforismo, havendo universo que se deixe comprimir. A micro-ficção é um mutante que vai acumulando formas, interacções, desequilíbrios.”

Sem se comprometer com a questão da microficção ser ou não um género literário, afirmando que“a micro-ficção é mais do que um género, é um peixinho amarelo de barbatanas peitorais”, Rui Costa não só aceita a sua existência como reconhece a sua importância. (http://minguante.com/?entrevista=rui_costa) E é isso afinal que me parece importante e tarda a acontecer em Portugal, que se reconheça a microficção, a sua importância e a sua actualidade. É claro que ao autor se reconhece sempre o direito de não classificar a sua obra, de se mover entre géneros, de preferir a hibridez, características que a microficção bem partilha.

Atente-se na resposta de Gonçalo M. Tavares, que há muito vem escrevendo microficções, a uma pergunta sobre a sua última obra:
- É difícil falar de “Uma Viagem à Índia”: não é um romance, não é um poema épico. Como é que o descreve?
- Tenho o mesmo problema. No prefácio fala-se em “anti-epopeia” e há ainda outras definições. Eu não sei e não consigo dizer exactamente o que é este livro. E isso agrada-me. Quando sei classificar um livro acho-o muito desinteressante. (http://www.ionline.pt/conteudo/85122-goncalo-m-tavares-se-passo-um-dia-sem-escrever-sinto-que-nao-estou-cumprir-minha-obrigacao)

A terminar, talvez possa dizer, parafraseando Gonçalo M. Tavares, que não consigo dizer o que é a microficção. E isso agrada-me. Mas que existe, existe. E recomenda-se.

[ver também aqui:

Cruzeiro Seixas

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