segunda-feira, 31 de agosto de 2009

5. A garrafa de vinho tinto



Comprei uma garrafa de vinho tinto e sentei-me no jardim. Tirei-a do saco de plástico, pousei-a no banco a meu lado e fiquei a olhá-la. Tinha-a comprado apenas pelo seu aspecto e só agora que me apetecia bebê-la é que me interroguei como o faria.

“Quer abri-la?”, ouvi como resposta aos meus pensamentos. “Sim”, disse, quero abri-la, e fiquei a olhá-lo enquanto ele a abria e, sem esperar que eu dissesse coisa alguma, fez aparecer dois copos de plástico transparentes que encheu até meio, primeiro um, que me estendeu, e depois outro, que guardou para si.

Olhou o vinho com verdadeira gula, mas não o bebeu de imediato; espreitou-lhe a cor, cheirou-o e sorriu-me com todos os dentes antes de dar um primeiro gole. “Excelente”, disse, “só é pena estar um pouco quente. “Importa-se?”, disse-me ao mesmo tempo que pegava na garrafa de vinho e se afastava com ela em direcção a uma torneira que havia ao fundo do jardim. Abriu a torneira, colocou a garrafa debaixo dela, com cuidado, com a nítida intenção de a refrescar e deixou-se estar ali um pouco, rodando a garrafa de vez em quando. Depois voltou, bebeu de um trago o vinho que lhe restava no copo e deitou mais um pouco que logo levou à boca. “Um pouco melhor, um pouco melhor”, disse, e sorriu de novo aquele seu sorriso intenso. Bebi também de um trago o que me restava e estendi-lhe o copo para que me deitasse mais vinho, o que ele fez.

Nenhum de nós voltou a falar e ficámos por ali a beberricar com satisfação o vinho, até que acabou e ele se despediu com uma vénia e um sorriso.

[ continua...]

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

O último poema de amor



Longe vai o tempo em que os homens se dedicavam à poesia ou, pela mesma razão, procuravam a companhia das mulheres. Hoje, tudo é diferente: as mulheres ainda são (todas elas) poema, mas os homens abandonaram há muito a poesia.

quinta-feira, 27 de agosto de 2009

O labirinto



Este é o labirinto de Creta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro, que Dante imaginou como um touro com cabeça de homem e em cuja rede de pedra se perderam tantas gerações como Maria Kodama e eu nos perdemos naquela manhã e continuamos perdidos no tempo, esse outro labirinto.

Jorge Luis Borges

terça-feira, 25 de agosto de 2009

rua do imaginário

Nas últimas emissões de Rua do Imaginário tem sido seguido um modelo simples: um conto (uma vez um excerto de um romance) e um álbum. A leitura em voz alta sobrepondo-se mas também deixando-se influenciar pela música. No próximo programa não será muito diferente.
Entretanto, aceitam-se sugestões quanto aos contos a serem lidos e aos álbuns que poderão ser usados.
No próximo programa, em princípio, depois de algumas hesitações, um conto (ou dois) de Jorge Luis Borges e Amnesiac (Radiohead).

segunda-feira, 24 de agosto de 2009



4. Em voz alta




Ao lado do contentor do lixo, no chão, um saco de plástico deixava transparecer o seu conteúdo: uma pilha de livros. Aproximei-me e retirei o livro que estava no topo: um livro de poemas. Folhei-o e li com agrado dois ou três poemas. Depois afastei-me, com o livro ainda aberto à minha frente e fui-me sentar num dos bancos do jardim defronte.

Li em silêncio, durante muito tempo, mas os poemas pareciam pedir-me para serem ditos em voz alta e, sem me aperceber, comecei a dizê-los, primeiro quase num sussurro e depois já em vozalta, tão alta quanto os poemas me exigiam. Olhava o poema, fechava os olhos, e ia dizendo-o pouco a pouco, lendo-o, ouvindo-o, até quase o saber de cor.

Quando me apercebi, havia pessoas que tinham parado para me escutar, e continuei a ler ainda com mais entusiasmo. Quanto terminava a leitura de um poema, fazia uma pequena vénia. As pessoas pareciam gostar e batiam-me palmas. Algumas deram-me dinheiro. Quando me cansei de ler, agradeci ainda mais uma vez e fui-me embora.
Contei o dinheiro, tinha quatro euros e cinquenta e cinco cêntimos. Sorri e guardei o dinheiro no bolso direito das calças.

[continua...]

sábado, 22 de agosto de 2009

3. Quarenta cêntimos



“Vizinho, arranja-me 40 cêntimos? É o que me falta para uma sandes!”
Procuro dinheiro no bolso e estendo-lhe uma nota de cinco euros. Olha-me surpreendido e pergunta-me: “Quer que eu vá trocar?”
Encolho os ombros e ele olha-me sem saber o que fazer, mas eu desvio o olhar e ignoro-o.
“Vizinho, vizinho… não preciso de tanto. Tome.”
E estende-me a mão onde repousam várias moedas. Aceito as moedas e guardo-as no bolso sem contar. Ele olha-me ainda, como se me quisesse dizer mais alguma coisa, mas acaba por se ir embora sem dizer nada, nem mesmo o seu habitual obrigado, “Obrigado, vizinho.”

Sigo-o com o olhar e vejo-o oferecer estacionamento a um carro que segue sem parar, despertando nele a sua habitual ladainha gritada, misto de protesto e de lamento.
“Um lugar tão bom, à sombra, como se pode não querer?”
“Um lugar tão bom, à sombra, como se pode não querer?”, repeti eu para mim mesmo, encontrando um estranho e profundo sentido àquela frase, e deixei-me ficar ainda por ali naquele lugar tão bom, à sombra... como podia não querer estar ali!

[continua...]

quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Faits-divers IV



Leio um poema em voz alta: mandam-me calar. Continuo a ler o poema, os lábios a moverem-se em silêncio: olham-me desconfiados. Acabo de ler o poema e fecho o livro: riem-se muito. Não me enganaram nem por um momento: sabia que seriam um excelente público.

terça-feira, 18 de agosto de 2009

2. Sentado



Quando saí do hospital, andei sem destino pela cidade, até me sentar numa esplanada de um café, à entrada de um dos muitos pequenos jardins espalhados pela cidade. Estava um dia bonito, ensolarado, ainda que frio, e as três ou quatro mesas estiveram quase sempre ocupadas enquanto ali estive. Sempre gostei de cafés e de esplanadas, por motivos idênticos e no entanto diferentes. Um motivo comum é o gostar de ouvir as conversas das pessoas e observá-las discretamente, e isso tanto é possível num café como numa esplanada, ainda que numa esplanada a atenção não se concentre tantos nos clientes como nas pessoas que passam. Outro motivo comum é que quer num café quer numa esplanada é fácil passar despercebido e não fazer realmente nada a não ser estar ali e, no entanto, parecer que estamos a fazer alguma coisa, que há um propósito em todos os nossos actos, mesmo os mais comezinhos e desprovidos de significado. Fiquei pela esplanada até começar a ter frio e depois apanhei um táxi para casa. Durante o trajecto mantive os olhos fechados e quase adormeci.

Sentei-me no escritório, no sofá voltado para a janela, onde habitualmente lia, e deixei-me ficar por ali sem pensar em nada.

Tinha de sair do apartamento até ao fim do mês, o que me dava ainda bastante tempo e, fosse como fosse, não me apetecia pensar em coisa alguma. No dia seguinte não tinha de me apresentar no emprego, nem em qualquer outro dia, pois tinha-me despedido em tempo e todas as minhas anteriores obrigações tinham cessado. Mas não me apetecia pensar em nada de particular e muito menos tomar decisões, fossem elas quais fossem. Por isso deixei-me estar por ali sentado, sem mesmo pensar que me estava nas tintas para pensar no que quer que fosse.

Sentei-me na esplanada e pedi um café. Olhei o largo, beberriquei o café, e nem estranhei aquela sensação, nova em mim, de estar apenas ali, que nunca antes tinha sentido com aquela intensidade e que passara, sem que nada fizesse por isso, a ser a minha forma de estar no mundo. Olhei em volta, apenas olhando, e isso parecia-me mais do que suficiente. Estava quente e, por momentos, quase atribui ao calor o modo como me sentia, mas logo afastei essa ideia e deixei de pensar nisso ou em qualquer outra coisa, e fiquei a olhar o céu, o verde das árvores, as pessoas que iam e vinham, até que uma voz me despertou.

“Então, o que é feito de ti?”
Sorri, apenas, mas já ele se sentava à mesa, e repetia a pergunta, que novamente ficou sem resposta, e então pareceu inquietar-se.
“Oh pá, o que se passa?”
Sorri de novo e esforcei-me por lhe responder, mas não me apetecia dizer nada, e continuei em silêncio.
“Oh pá, já me tinham dito que andavas esquisito, mas não pensei que fosse assim tanto.” E dito isto, foi-se embora sem olhar para trás, resmungando.

Eu continuei sentado. Voltei a olhar o céu, o verde das árvores, as pessoas que iam e vinham. Não me apetecia conversar.


[continua...]

segunda-feira, 17 de agosto de 2009

1. O princípio



No final do ano passado, mais precisamente na noite da passagem do ano, tentei suicidar-me, mas não fui bem conseguido, não tanto por inépcia minha, mas devido à intervenção de terceiros. Devo dizer que a princípio fiquei aborrecido, e o meu primeiro pensamento foi que voltaria a fazê-lo na primeira oportunidade, mas depois, nem sei bem porquê, desisti da ideia e disse para mim mesmo: “Que se lixe a taça, assim como assim, é como se já estivesse morto; já disse adeus à vida e parti, não existe uma verdadeira possibilidade de regresso”.

A pessoa que me salvou, um jovem bombeiro, visitou-me no hospital, e eu agradeci-lhe a coragem e generosidade que demonstrara. Não lhe disse que me estava nas tintas e que pouca diferença me fazia que me tivesse salvo, e quando ele me perguntou o que ia fazer agora, disse-lhe que ia estar uns tempos sem fazer nada, vaguear apenas por aí. Ele disse-me que eu fazia bem e que não devia preocupar-me em demasia.

Garanti-lhe que não, que não me sentia inclinado a preocupar-me com o que quer que fosse. Na verdade, há muito tempo que não me sentia tão calmo e despreocupado. O jovem bombeiro olhou para mim, e parecia ir dizer qualquer coisa, mas limitou-se a sorrir e a desejar que tudo me corresse bem, e eu sorri-lhe de volta e voltei a agradecer-lhe o que tinha feito por mim. E nesse momento, para minha surpresa, estava a ser sincero, pois sentia, de uma forma que não sabia explicar, que aquele homem me tinha realmente salvo, me tinha libertado do peso da vida da mesma forma que a morte o teria feito. Sentia-me vivo mas sem o peso da vida, foi o que disse a mim mesmo então, e essa constatação foi mais do que suficiente para mim.

Depois que o jovem bombeiro saiu, fiquei a pensar no que lhe tinha dito. A verdade é que lhe tinha dito a primeira coisa que me viera à cabeça, mas agora que pensava nisso, não tive a menor dúvida que era isso que ia fazer: estar uns tempos sem fazer nada, vaguear apenas por aí. Levantei-me da cama e sentei-me em frente à janela, a olhar o céu. Estava morto, disse a mim mesmo, morto e bem morto e, no entanto há muito tempo que não me sentia tão vivo. Voltei para a cama, deitei-me sobre o lado esquerdo e adormeci sem dificuldade.

[continua...]

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

faits-divers II



Dizes-me que se pode ganhar dinheiro mentindo e que se pode ganhar dinheiro dizendo a verdade, e eu concordo, e acrescento que também se pode mentir dizendo a verdade e dizer a verdade mentido. Tu ficas aborrecido e dizes que eu não levo nada a sério, mas, seja como for, a verdade é que é sempre difícil ver claro, sobretudo quanto mais se insiste.

quinta-feira, 13 de agosto de 2009

faits-divers



Pedes-me uma opinião sobre o que escreves, respondo-te que é uma grande merda, e tu vais-te embora, ofendido. Poderia ter respondido que era excelente, mas não terias ido embora tão rapidamente, e eu queria estar só.

quarta-feira, 12 de agosto de 2009



EM VOZ ALTA


experimente começar por aqui
ou por aqui

4.º E ÚLTIMO AVISO



Quinta-feira dia 13 de Agosto pelas 23:00, SOM COM TOM no Pátio das Letras - org.OPatio@Bar.

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... a voz dá vida às palavras escritas, desperta sons... e sons e palavras influenciam-se, multiplicam-se...

terça-feira, 11 de agosto de 2009



Conta-se que certo homem pediu uma cassete e deram-lhe, afinal, (com) um cassetete, o que nem seria invulgar, não fosse ele um linguista.

Little Wheel
Play This Game


... pois é, confesso... gostava de ser criador de jogos!


Conta-se que um homem procurou toda a sua vida saber quem era, sem nunca perceber que se limitava a ser.



Conta-se que um homem era bastante poupado nas palavras, guardava-as em si com pudor e só as deixava sair em pequenos grupos.

segunda-feira, 10 de agosto de 2009



Conta-se que um homem trabalhou toda a sua vida sem parar: era tão cobarde que nem tinha coragem para descansar.



Conta-se que um homem se remeteu ao mais absoluto silêncio durante vários anos e depois, da mesma forma súbita e misteriosa que se calara, voltou a falar, como se nada fosse.



“Não sou profeta, não sou sociólogo, não sou analista político, sou apenas um modesto escritor. Meu trabalho é escrever da melhor maneira possível”, diz Philip Roth.



Conta-se que um homem se esgotou tanto que nem tinha forças para ser fraco, de tal forma que todos o julgavam forte.

sábado, 8 de agosto de 2009



Conta-se que certo homem nunca dormia mas, esperançado que tal viesse a acontecer, passava todo o dia na cama, onde fez tudo o que havia para fazer, excepto dormir.

sexta-feira, 7 de agosto de 2009

[sentido]



escuta estas palavras
sem procurares um sentido:
som e sentido são a mesma coisa.

escuta estas palavras
ao som da tua própria voz:
só assim elas farão sentido.



Conta-se que dez mil homens e mulheres se dirigiram ao palácio imperial carregando dez mil presentes para o imperador, que os fez esperar dez mil minutos antes de lhes agradecer uma única vez.

quinta-feira, 6 de agosto de 2009



Conta-se que um livro esperou muito tempo que alguém o lesse, até que, finalmente, se fechou sobre si mesmo para sempre.

[Para ti]

A vida devia
ser fácil
o amor
também
mas não é
assim

somos imperfeitos
cada coisa tem
sempre um contrário
a vida e a morte
o amor e o ódio
eu e tu

a vida cultural do Algarve

Uma boa entrevista, uma boa análise da vida cultural de Faro. Obrigado Nuno Lorena e Pedro Bartilotti.


Conta-se que uma mulher traía o marido, até que percebeu que o fazia por amor a ele, e desde então nunca mais se traiu a si própria.

quarta-feira, 5 de agosto de 2009

AO MEU AMIGO

um e-book a sul


Conta-se que um homem tinha a invulgar capacidade de contagiar todos os que com ele se relacionavam. Só é pena que fosse tão aborrecido (e que todos bocejassem só de o ver).

terça-feira, 4 de agosto de 2009



Conta-se que um homem esforçou-se tanto por esquecer a mulher que o abandonara que, quando ela voltou, não a reconheceu (e apaixonou-se outra vez).



Conta-se que dois homens chegaram ao mesmo fim por caminhos opostos: enquanto um se esvaziou tanto que nada dele restou, outro encheu-se tanto que nada dele sobrou.

Cruzeiro Seixas

 Ouvir.