segunda-feira, 17 de agosto de 2009

1. O princípio



No final do ano passado, mais precisamente na noite da passagem do ano, tentei suicidar-me, mas não fui bem conseguido, não tanto por inépcia minha, mas devido à intervenção de terceiros. Devo dizer que a princípio fiquei aborrecido, e o meu primeiro pensamento foi que voltaria a fazê-lo na primeira oportunidade, mas depois, nem sei bem porquê, desisti da ideia e disse para mim mesmo: “Que se lixe a taça, assim como assim, é como se já estivesse morto; já disse adeus à vida e parti, não existe uma verdadeira possibilidade de regresso”.

A pessoa que me salvou, um jovem bombeiro, visitou-me no hospital, e eu agradeci-lhe a coragem e generosidade que demonstrara. Não lhe disse que me estava nas tintas e que pouca diferença me fazia que me tivesse salvo, e quando ele me perguntou o que ia fazer agora, disse-lhe que ia estar uns tempos sem fazer nada, vaguear apenas por aí. Ele disse-me que eu fazia bem e que não devia preocupar-me em demasia.

Garanti-lhe que não, que não me sentia inclinado a preocupar-me com o que quer que fosse. Na verdade, há muito tempo que não me sentia tão calmo e despreocupado. O jovem bombeiro olhou para mim, e parecia ir dizer qualquer coisa, mas limitou-se a sorrir e a desejar que tudo me corresse bem, e eu sorri-lhe de volta e voltei a agradecer-lhe o que tinha feito por mim. E nesse momento, para minha surpresa, estava a ser sincero, pois sentia, de uma forma que não sabia explicar, que aquele homem me tinha realmente salvo, me tinha libertado do peso da vida da mesma forma que a morte o teria feito. Sentia-me vivo mas sem o peso da vida, foi o que disse a mim mesmo então, e essa constatação foi mais do que suficiente para mim.

Depois que o jovem bombeiro saiu, fiquei a pensar no que lhe tinha dito. A verdade é que lhe tinha dito a primeira coisa que me viera à cabeça, mas agora que pensava nisso, não tive a menor dúvida que era isso que ia fazer: estar uns tempos sem fazer nada, vaguear apenas por aí. Levantei-me da cama e sentei-me em frente à janela, a olhar o céu. Estava morto, disse a mim mesmo, morto e bem morto e, no entanto há muito tempo que não me sentia tão vivo. Voltei para a cama, deitei-me sobre o lado esquerdo e adormeci sem dificuldade.

[continua...]

Cruzeiro Seixas

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