A ler o excelente Histórias de Amor Rasgadas, de Marina Colasanti, deparo com duas releituras (ou reescritas), que me recordam a afirmação que a microficção pode distinguir-se em histórias originais e em releituras (ou reescritas) de histórias originais. Também já o tenho feito, e apeteceu-me também reescrever essas duas histórias.
A mulher dele
Quando ele ameaçava bater-lhe, ela ameaçava sair de casa, sem olhar para trás, e durante vários anos estas ameaças mútuas mantiveram-nos juntos, mas um dia ele deu-lhe sem mais uma estalada com as costas da mão direita, atingindo-a de surpresa na face esquerda.
Ela não gritou, nem mesmo de surpresa, nem mesmo de dor. Virou-lhe apenas as costas e saiu de casa, como tantas vezes ameaçara fazer se ele alguma vez lhe batesse.
Ele seguiu-a até à porta, parou à entrada e ficou por um instante em silêncio a vê-la ir embora, os olhos muito abertos. Depois começou a insultá-la.
“Grande vaca, ainda bem que te vais embora ou eu moía-te de pancada”, gritou.
Ela parou e lentamente voltou a cabeça para trás.
Nem por um momento pensou em voltar para trás, nem por um momento pensou em olhar para ele uma última vez, limitou-se a voltar a cabeça para trás e a fitá-lo, os olhos semicerrados.
Foi então que começou a empalidecer e ficou imóvel, a respiração suspensa.
À sua frente, de um momento para o outro, ele transformara-se numa estátua de sal.
A arte de beijar
A sua aparência geral era grosseira.
O rosto rugoso, com dois sinais enormes em destaque, ostentava um duvidoso tom esverdeado. As pernas eram muito curtas, e ao andar parecia dar saltos pequenos e desajeitados.
Era uma fraca figura, sobre isso ela não tinha dúvidas. Mas quando a tomava delicadamente nos braços e a beijava com paixão, ela fechava os olhos e quase acreditava beijar um príncipe.