terça-feira, 29 de setembro de 2009

Queda Livre (cont.)

[Aqui fica o segundo capítulo de Queda Livre.]

2


Já passavam bem mais de quinze minutos da hora de entrada quando Cecília chegou ao trabalho. Cumprimentou a chefe, sempre à espreita de algum deslize, desculpou-se com os transportes, e refugiou-se no gabinete que partilhava com mais uma colega. Não tinha pensado mais no Calado. Mesmo que o tivesse feito não recordaria o seu nome, pronunciado apenas uma vez. Esquecera-se por completo do vagabundo triste. Sentou-se à secretária e acendeu o computador. Confirmou na agenda que a reunião marcada para essa manhã fora adiada à última hora. Na parede à sua frente, uma reprodução da Alegria de Viver, de Matisse. Gostava sempre de a contemplar. A harmonia do conjunto tinha sobre ela um efeito calmante.
Era preciso tempo para observar a pintura, não pensar e deixar a emoção dominar. Levantou-se e avançou lentamente, concentrando-se nas cores, na pequena roda que animava todo o quadro, como se todas as cores girassem na sua imobilidade. Como para a amizade, como para o amor, era preciso tempo. Tempo e disponibilidade. Esquecimento e despertar. Esta ideia ocorreu-lhe de repente e pareceu-lhe que nunca a tinha pensado antes. Esquecimento e despertar. Interior e Exterior. Agradam-lhe os contrastes. Acredita que as coisas só existem umas em relação às outras, que só assim ganham novos significados. Juntemos duas coisas e teremos sempre duas coisas novas, ou mesmo uma terceira. Cecília divaga. Acontece-lhe com muita frequência. Mas dificilmente os que a conhecem a considerariam uma sonhadora. Acham-na uma pessoa de ideias fixas, com uma visão simples da vida, uma mulher e uma profissional determinada embora um pouco limitada. Cecília gosta do quadro também pelo seu nome. Acredita na alegria de viver. Acredita na felicidade. Vai ser feliz. Não tem dúvidas. Assim como gosta do quadro de Matisse, gosta mesmo!, também as suas outras certezas se perfilam rígidas, incontestáveis. É preciso ajudar os que precisam... só o amor dá sentido à vida... vou casar... vou ser feliz. Quando uma certeza derrui, logo a substitui por outra, e nem dá conta.

Mais tarde tinha de telefonar ao Mário, combinar o almoço, lembrou-se.
Mário Branco estava a pensar em Cecília. Pensa muitas vezes nela. Não será pois de espantar que ao mesmo tempo aqui pensem um no outro. Não o faz por mera exigência do dia-a-dia: a que horas nos vamos encontrar? onde estará agora? será que lhe disse que... Recorda-a por puro prazer. Sem qualquer motivo a não ser o amor que tem por ela. Nunca amou outra mulher, a não ser sua mãe, mas essa não conta, que é de outro amor que aqui se fala. Ama-a sem dúvidas, incondicionalmente. É assim Mário, é assim o amor de Mário e de Cecília: ele ama-a, logo amam-se. Vão casar um com o outro, vão ser felizes.
Cecília marca o número de Mário, ele responde de imediato.
“Está.”
“Sou eu.”
“Olá amor, estava a pensar em ti.”
“Vens buscar-me para almoçar?”
“Vamos aí perto, que achas? Podes ser tu a escolher. Muito trabalho?”
“Nem por isso. E tu?”
“O costume.”
“Então até logo. Beijinhos.”
“Beijinhos.”
Mário virou-se para o amigo que estava parado à frente da sua secretária, à espera que ele lhe desse atenção.
“Desculpa, queres vir beber um café?”
“Tenho coisas para fazer. Não pode ficar para mais tarde?”
“Preciso de desabafar!”
“Vamos lá ouvir essa história”— disse agora Mário, ao mesmo tempo que se levanta. Veste o casaco, ajeita a gravata, e empurra o outro, a mão firme nas suas costas, dando-lhe o sinal de partida.

Mário sabe o que Joaquim lhe vai dizer e sabe também que mais nada poderá fazer senão ouvir o amigo. Há anos que lhe escuta sempre a mesma história. A história do seu casamento com Joana. A história da sua vida.
“Estamos casados há dez anos. A Marta tem nove. Conhecemo-nos desde sempre. Eu amo a Joana, tu sabes. Sempre amei. Sempre amarei. Desapareceu outra vez. Não sei onde está. Eu sei que volta sempre. Mas estou preocupado. Com quem terá fugido desta vez? Porque é que tem sempre de o fazer? Porque é que eu espero sempre por ela?” — dirá Joaquim e Mário escutará.
Uma vez, há dois ou três anos, Joana telefonou a Cecília. Estava triste, desesperada, não sabia o que fazer. Cecília temeu que ela se suicidasse. Tinha voltado a acontecer e mais uma vez Joana sentia-se culpada, derrotada. Cecília perguntou-lhe onde estava, como se sentia, que lhe contasse tudo, tintim por tintim, deixou-a contar a sua história, encorajou-a a falar de si. Entretanto, telefonou a Mário e pediu-lhe que fosse ao encontro de Joana, ela estava a pouco mais de cinquenta quilómetros numa pousada onde tinha passado o fim-de-semana. Joana é a mulher que trai compulsivamente o homem que ama e que a ama — é esta a sua história e não consegue sair dela. Mário trouxe Joana consigo, telefonou a Joaquim, que a veio buscar, e essa tinha sido a última vez antes de voltar a acontecer.
“Tu ou a Cecília sabem onde ela está? Estou preocupado. Tu sabes como ela fica. Estou desesperado. E se faz algum disparate?” Mário gostaria de lhe dizer qualquer coisa mas limita-se a escutar. Talvez devesse convidar o amigo para almoçar? E Cecília? Levá-lo consigo. Desmarcar o almoço. Não, não lhe parecia boa ideia!
Joaquim olha fixamente o interior da chávena vazia ao mesmo tempo que fala sem parar. Mário não consegue deixar de pensar que o outro procura nas marcas deixadas na chávena um qualquer presságio.


Joana estava só. Ele tinha ido comprar tabaco.
Já não tens cigarros? — perguntara ele.
Não — respondera ela.
Durante o fim-de-semana amaram-se longamente, assim pensou Joana, por estranho pudor, pois melhor seria dizer foderam longamente, que foi isso que fizeram, e ela sabe-o. Amar não o ama, então, mesmo que ele a amasse, como se poderiam ter amado. Acendeu um cigarro que retirou de um maço quase cheio e soprou o fumo para o tecto, seguindo-lhe o rasto difuso. Não sabe o que está ali a fazer. Não sabe porque veio. Não sabe porque vai voltar. Para casa. Para o Joaquim. Para a filha. Para o amor. Olha o seu corpo nu e sente-se bela. Abandonada e bela.


Mário não compreende Joaquim e ainda menos Joana. Gosta de ambos mas gosta sobretudo de os ver juntos, de os saber juntos, um casal, um casal que se ama, porque apesar de tudo eles amam-se. É isto que Mário acredita. É isto que diz a si mesmo. Joaquim ama Joana. Joana ama Joaquim. Mas então porque o trai? Isso é que ele não percebe. Trair é uma estranha palavra. Amor e traição, um estranho par. Estranho, muito estranho, quase murmurou Mário, esquecido por momentos de Joaquim que continuava a falar, e teria vindo a preceito, tal era o teor e o rumo da conversa. Traição. Infidelidade. Trair é enganar. Mas Joana não engana Joaquim. Ele sabe. Não engana o seu amor, pois ela ama-o e continua a amá-lo. Sexo? Será uma questão de sexo? Mário nunca perguntou ao amigo e não é agora que o vai fazer. Diz-me lá, ó Joaquim, mas tu satisfazes sexualmente a Joana? — isto é pergunta que nunca lhe fez e nunca lhe fará.
— Não sei o que pensar! Há tanto tempo que não acontecia isto. Na sexta-feira telefonou-me e comunicou-me que ia estar fora o fim-de-semana. Depois desligou. Ela diz-me sempre. Não percebo. Depois não falamos sobre o que aconteceu. Eu sei que tudo voltará ao normal. Nem sei porque me preocupo. É claro que ela se sente culpada. Não o pode evitar mas culpa-se, e às vezes tem medo que não aguente essa dor. Afinal o que é que sabemos do que se passa no nosso íntimo. Quantas vezes conhecemos os verdadeiros motivos dos nossos actos? Que me importa! Põe-me os cornos, é verdade, mas não me engana, não me deixa de amar, nem chega a amar esses gajos, esses cabrões, esses filhos da puta...
Às vezes chorava, outras gritava. Já estavam a olhar para eles. Mas quem nunca foi enganado, sim, enganado, encornado, porque é assim que ele se sente, que lhe atire a primeira pedra, poderia dizer Mário se alguém se metesse na conversa, que em conversa de cornos todos têm sempre alguma coisa a dizer.
“Não ligue amigo, mulheres há muitas” — poderia dizer aquele velho que está ao canto do balcão a beber um bagaço.
“Se fosse a si dava-lhe uma sova” — diria o careca franzino que lê o jornal.
“Cá por mim, se ela o engana é porque você não a fode como deve ser” — pensa o dono do café que tem estado furtivamente à escuta.
No café não estão mulheres, por isso e só por isso, elas não dão aqui a sua opinião.
— Tem calma — disse Mário ao mesmo tempo que lhe passava o braço por cima do ombro e o empurrava para fora do café. — Tem calma. A vida é assim, tem destas coisas. As coisas vão voltar ao normal. Não te preocupes. Ela vai voltar. Não posso estar contigo mais tempo. Vão-me chatear. Depois passo por tua casa. Se souber de alguma coisa telefono-te.
Subiram a rua e separaram-se à entrada do banco. Um e outro pensam em Joana.


Joana levantou-se e olhou o dia lá fora. Desde sexta quase não tinha saído do quarto. Ele tinha sido gentil, meigo. Possuíra-a com doce ardor. Falara com ela. Contara-lhe em voz baixa, quase num sussurro, como a desejava há tanto tempo. Queria-a muito. Foderam? Amaram-se? Joana hesita. O que contar a si mesma fará qualquer diferença?
Na sexta-feira tinham-se encontrado por acaso.
“Há tanto tempo que não te via”, disse ele, olhando-a com atenção, a tentar notar-lhe diferenças. Era mais velho que ela. Tinha sido seu professor. Falava-lhe sempre com uma familiaridade cortês.
“E estás contente?”, disse ela com um sorriso maroto.
Beijaram-se.
Ele correu-lhe a mão pelo cabelo ondulado, afastando-o do rosto, num gesto terno — Deixa-me olhar para ti. Pareces mais nova.
Ele era sempre carinhoso com ela. Ela sabia que ele a desejava.
Tinham se encontrado algumas vezes depois que ela terminara o curso e nunca haviam perdido o contacto. As amigas diziam-lhe que ele tinha um fraco por ela. Joana sabia. Sempre o soubera.
Ele — o seu nome é Artur Portela, mas aqui pouco importa —, ele não sabe, mas aqui será o outro, apenas o outro. Só Joana verdadeiramente interessa, e se dela se fala é porque Joaquim entrou nesta história, puxado por Mário, e este por Cecília.
“Quando fugimos os dois?”, disse ele, numa piada que se pretendia privada.
“Vamos embora mesmo agora, se quiseres”
Por momentos ele ficou a pensar se ouvira bem. Sim, ouvira, concluiu. Mas as alucinações também são bem reais e os sonhos há muito tempo acalentados não lhes ficam atrás e às vezes pregam partidas. Fosse como fosse, ouvira o que queria ouvir. Ela parecia séria, mas podia estar apenas a estender o riso, a gargalhada trocista podia soltar-se a qualquer instante — Não me digas que acreditaste?
Ele abraçou-a pela cintura e conduziu-a rua abaixo.
“Tenho o carro estacionado aqui perto.”
Ela abraçou-o também e depositou-lhe um beijo furtivo no pescoço.
Quando vai acabar a brincadeira?, pensou ele, mas nada disse, que estava demasiado feliz para falar.
Mais à frente perguntaria a si mesmo: Estou a sonhar? O carro atravessou a ponte em direcção ao Sul. Joana encostou a cabeça no seu ombro e assim se deixa estar apesar da posição que ele acredita incómoda. Ele acaricia-lhe o joelho ossudo. Estou a sonhar? Afastam-se da grande cidade. A noite cai sobre eles. Estão perto do mar. Estou a sonhar? Param o carro no parque de estacionamento da pousada. Ele corre a abrir-lhe a porta. Ela sorri-lhe. Estou a sonhar? Ele acaricia-lhe o rosto num gesto cego. Joana segreda-lhe ao ouvido, “Queres-me”, e mordisca-lhe a orelha. Estou a sonhar?
Custou-lhe separar-se dela. Pediu-lhe para ir com ele comprar cigarros mas ela recusou-se. Já ia desistir quando ela insistiu, “Vai, que eu também me apetece fumar um cigarro mas estou cheia de preguiça.” Ele vestiu-se sem olhar para ela. Ainda a desejava. Ainda perguntava a si mesmo: “Estou a sonhar”.
Não estava a sonhar, mas daqui a pouco iria ter de acordar. Joana ia contar-lhe que amava o marido e que o encontro entre eles não podia passar dali. Quando ele voltasse amar-se-iam ainda, ou foderiam ainda., pouca diferença faz neste caso ainda que a haja, porque ela lhe pedirá para se ir embora e a deixar ali. Ele obedeceu-lhe. “Terei sonhado?”, pensava ele sempre que se recordava desse fim-de-semana.


Joaquim percorreu a cidade sem destino.
Os dois homens desciam abraçados a Avenida. Um conduzia e o outro deixava-se levar. Não era difícil ver quem conduzia e quem se deixava levar. Um parecia estar doente, ou embriagado, tal era a lentidão dos seus movimentos arrastados. O outro amparava-o com firme ternura, proferindo palavras que deviam ser de encorajamento, ao mesmo tempo que ora o puxava ora o empurrava, conseguindo um movimento prodigioso que os levava em direcção ao pequeno jardim fronteiro à Sé. Pela idade poder-se-ia acreditar que eram pai e filho, mas pela aparência ninguém duvida que são irmãos, companheiros de vagabundagem. Não iludem aqui as aparências ainda que haja neles mais do que os olhos vêem. Um é o Calado, o outro é o Chico.
Joaquim não os viu.
Eles não o viram.
“A minha vida nem sempre foi esta, Calado”, ia dizendo Chico, “Deixa-me contar-te a minha história.

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Queda Livre

[Terminado há já algum tempo, este romancece breve, tem estado esquecido na gaveta. Hoje, constatando que tenho escrito muito pouco neste blog, lembrei-me de o ir aqui deixando.]

1


Antes da primeira bica nunca acordo, dizia sempre Cecília ao empregado, como uma senha, uma promessa ou um talismã, nem ela o sabia e muito menos ele, a frase pontuada com um sorriso reflexo. Com a bica curta vem o jornal da casa, quando está disponível, é claro. Privilégios de cliente habitual. Nenhuma aldeia é mais provinciana do que a grande cidade, pensa Cecília, olhando o trânsito intenso da Avenida através das amplas vidraças do pequeno café de bairro. Neste dia tinham-lhe trazido o jornal, e ela folheou-o sem grandes demoras. Gosta de ler o jornal de trás para a frente. Os destaques da última página, as tiras cómicas, um relance céptico mas interessado ao horóscopo, as páginas dedicadas à cultura e por adiante, se assim se pode dizer, quando como se disse, a leitura avançaria de trás para a frente. Ao mesmo tempo observa as pessoas à sua volta, com atenção, como se fosse possível ler-lhes a vida, os anseios e as desilusões. Ouve-lhes as conversas, adivinha-lhes os pensamentos, segue-lhes os gestos. Sorri a alguns, a outros diz bom dia. Muitos só os conhece do café, e com a maior parte nunca trocou mais que duas ou três palavras de conveniência.

“Olhe que se vai atrasar”, avisou Artur, o empregado novo, o rosto contorcido num esgar matreiro. Cecília sorriu-lhe. Bem lhe apeteceu responder, “Mas o que é que tem com isso?”, nem que fosse apenas para o chocar, o atrevido armado em galã, o cabelo muito curto e um bronzeado permanente, cópia mais que perfeita de um qualquer famoso do momento. O telemóvel tocou, interrompendo-lhe o devaneio.
“Estou.”
“Sou eu amor, onde estás?”
“No café. Vou sair agora.”
“Olha que te atrasas. Vamos almoçar juntos?”
“ Sim. Depois telefono para combinar.”
“Beijinhos.”
“Beijinhos.”
Olha que te atrasas, resmungou Cecília num murmúrio.
Levantou-se e saiu.

Os homens são todos iguais, repetiu para si mesma enquanto descia a Avenida para apanhar o Metro.
Lojas de móveis e de electrodomésticos sucediam-se nas arcadas dos prédios. Cecília foi andando devagar, parando aqui e ali, atenta aos preços. “Quem casa quer casa”, pareceu-lhe ouvir a voz da mãe. “E quem quer casa tem de querer mobília e electrodomésticos”, apetecia-lhe completar. E tudo isso custava dinheiro. Muito dinheiro. Andava irritada. A mãe, mais uma vez ela, já lhe tinha dito “Até parece que não te queres casar”, e ela respondera a brincar, “Mãe, não agoures”, mas para si mesma dissera, “Será?”, pergunta esquecida ainda mal fora formulada.
Olhava as montras e revia a lista, tentando classificar os produtos segundo a prioridade de aquisição, o que não era fácil, concluiu. Esquentador. Imprescindível! Fogão. Fogão? Podiam optar por um micro ondas, seria suficiente! E se prescindissem do esquentador, reflectiu, o fogão podia ser fundamental, isto se quisessem aquecer água para o banho. Máquina de lavar, sim, sem dúvida, mas melhor seria mandar para a lavandaria. E casa, ainda era preciso comprar casa. O que gostaria mesmo era de ir viver para um hotel. Isso sim é que seria boa vida. Não ter de se preocupar com a lavagem, secagem e passagem a ferro da roupa, enfim, tratamento completo da roupa. E não ter de fazer camas e fazer limpeza e fazer qualquer coisa que fosse daquelas coisas que temos de fazer a não ser que tenhamos dinheiro para pagar a outros para que o façam. Para quê uma casa, quem casa quer casa? ou quem quer casa, casa? ao preço que as casas estão. Parou a interrogar uma cama, será que é preciso? Talvez um colchão fosse suficiente, ou um daqueles não sei quê japonês, que se abrem de noite e de dia se guardam.
Ia retomar a marcha quando reparou no homem sentado no chão. Demorou nele o olhar, surpreendida pelo contraste entre os seus pensamentos e a visão que se lhe oferecia. Se não fosse isso talvez tivesse seguido caminho sem mais.

O homem estava imóvel e silencioso.
Parecia suspenso entre dois momentos. Os olhos estavam caídos no chão, imóveis.
Agora que Cecília olhava melhor, parecia-lhe que o homem estava mais deitado que sentado. Por momentos pensou que estava morto.
Sim, foi isso que lhe chamara a atenção, disse a si mesma, o homem devia estar morto. Acercou-se dele e chamou-o, “Desculpe!”, primeiro a medo, depois com mais vivacidade, “Desculpe! Está a ouvir-me?” Estendeu a mão e tocou-lhe no ombro repetindo as mesmas palavras, “Desculpe! Desculpe! Está a ouvir-me?” Procurou à volta alguém a quem pedir ajuda mas todas as pessoas passavam apressadamente.
Que fazer? Ir embora? Afinal não era problema seu.
Examinou o homem com atenção e pareceu-lhe que o tronco ondulava num movimento suave, quase imperceptível.
Respirava. Não estava morto! Ainda estava vivo. Era preciso fazer alguma coisa! Não devia estar bem.
“A senhora precisa de alguma coisa?”
Sim, respondeu Cecília ainda antes de olhar para o dono da voz que vinha em seu auxílio.
“Este homem precisa de ajuda.”.
“O Calado está bem! Deixe-o estar sossegado. Não é da sua conta. Vá mas é à sua vidinha!”, respondeu-lhe o homem moreno, virando-lhe as costas.
Afastou-se desconfiado e retomou a sua ocupação, espreitando de vez em quando sobre o ombro, a ver se ela já se tinha ido embora. Isto há gajas que não podem ver um pobre sem entrarem em histeria, pensou. Se calhar quer chamar a polícia, ou a assistência, se não é uma coisa é outra. Vigiava o Calado com cuidado, nunca se sabia o que aquele ia fazer. Podia estar um dia parado mas também podia pisgar-se de um momento para o outro. Era como uma criança. Recebeu um euro, gesticulou para um carro que passava, olhou outra vez para trás a ver se a gaja ainda lá estava. Tinha-a topado logo que parou perto do Calado.

Cecília afastou-se alguns metros olhando ora para um ora para outro dos homens. Hesitava. Olhou o relógio. Estava atrasada. Era óbvio que o velho estava bem. Pelo menos nada podia fazer por ele naquele momento. Amanhã passo por aqui outra vez, deve aqui estar de novo, amanhã vejo o que posso fazer, convenceu-se a si mesma.

Correu para a entrada do Metro sem olhar para trás.

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

PENSAMENTOS NO TEMPO FRIO
Li Shang-Yin

Partiste. O rio subiu até ao meu portão.
As cigarras calaram-se nos ramos cobertos de geada.
Agora regresso ao portão, mas o tempo mudou.
Como sempre os meus pensamentos são-te dirigidos.
Estás tão longe como a Estrela Polar e a Primavera,
Notícias tuas nunca se dirigem para sul.
Quantas vezes, nos meus sonhos, vejo terras distantes
- Encontraste outro amigo? Espero que não.

[daqui]



[daqui]

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

agradecimento

Queria agradecer ao Daniel Silva e ao Clipsdevidro a atenção que dispensaram a este blog. A partilha é para mim a razão de ser deste blog.

sexta-feira, 18 de setembro de 2009

A Rua do Imaginário de hoje com (leitura de) textos de Daniil Harms e Rui Manuel Amaral e música de Gerry Mulligan.

CADERNO AZUL Nº 10
por Daniil Harms

Era uma vez um homem ruivo, sem olhos nem orelhas. Também não tinha cabelos, e só por convenção lhe chamávamos ruivo.
Não podia falar porque não tinha boca. E nariz também não.
Nem sequer tinha braços e pernas. Também não tinha barriga, nem coluna vertebral, nem mesmo entranhas. Não tinha coisa nenhuma! Por isso pergunto de quem estamos nós a falar.
Desta forma é preferível nada acrescentarmos a seu respeito.


HISTÓRIA DO DITO CUJO
por Rui Manuel Amaral

Se eu quisesse, podia contar muitas histórias sobre o dito cujo. Mas basta esta, a primeira que me vem à cabeça. Um belo dia, após uma bela noite de sono, o dito cujo abriu os olhos, levantou-se da cama, dirigiu-se ainda meio ensonado ao quarto de banho, olhou para o espelho e, oh!, fez uma careta terrível! Caramba, a terrível careta que ele fez! E depois disse: “Xanto Deux, o gue agontexeu à minha gara? Parexo o Gregor Xamxa.” O que significa: “Santo Deus, o que aconteceu à minha cara? Pareço o Gregor Samsa”, mas ele pronunciava mal as palavras, por causa daquilo que acontecera à sua cara durante a noite. E é tudo.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO QUE NÃO ESCREVI
Luís Ene

*

Dizem que todos os escritores são tristes e atormentados. Não é verdade, é que não é mesmo verdade. Mas eu sou, triste e atormentado. E além disso escrevo: textos tristes e atormentados como eu. Não escrevo para me aliviar, nem mesmo para me equilibrar, escrevo para sustentar a dor.

*

Caminho; caminho e escrevo. As palavras e as frases confundem-se com os meus passos, a minha respiração, os olhares em redor, as paragens e os recomeços. Escrevo; escrevo e caminho. Textos pequenos e intensos que escrevo e esqueço e de novo escrevo, uma e outra vez. Escrevo com o corpo.

*

É fácil dizer que naquele dia chovia, chovia muito, e me senti triste, muito triste como se fosse eu que chorasse. É fácil, é muito fácil, escrever um texto e ficar surpreendido com a beleza e o mistério que afinal só em nós existe. É fácil, tão fácil, dizer e escrever o que sabemos que sabemos.


*

Num fim de tarde cinzento, ergo os olhos aos céus e sou surpreendido por um enorme arco-íris, quase por cima de mim. Parei a olhá-lo. Senti então… mas como é que eu explico isto… como se aquele enorme arco-íris, mesmo ali à minha frente, não fosse um arco-íris, mas um presságio. Continuei a olhá-lo. Senti então… mas como é que eu explico isto… como se através dele, o meu olhar conseguisse chegar até mim, ao mais oculto de mim. Olhei-o ainda, até quase desaparecer. Senti-me então… como me sinto agora, incapaz de explicar o que senti. Por isso decidi escrevê-lo.

*

Atravesso a avenida num domingo de manhã. Acordei há pouco. Apetece-me um café. Paro a meio, na divisória, e espreito os carros que se aproximam pela direita. Depois olho para o passeio do outro lado, a duas faixas de distância. Um instante. Um carro passa, dois pequenos pássaros voam, junto ao asfalto, como que brincando. Um instante. Um dos pássaros desaparece debaixo da roda traseira, ali mesmo à minha frente. Um instante. Uma pequena mancha de sangue. Um farrapo de penas. Um instante. Vida. Morte. Antes. Depois. Um instante. Aqui, onde termina a escrita, começa o que não consigo dizer.

quinta-feira, 3 de setembro de 2009



Mário-Henrique Leiria

6. Pescador



Sentia-me, é o que agora vejo, como um daqueles pescadores que surpreendia muitas vezes no paredão e que me pareciam ter como único objectivo estar apenas ali, apesar de tudo neles evidenciar que estavam ali a fazer alguma coisa. Mas estavam apenas ali, à espera, e estou convencido de que tanto lhes fazia que acontecesse alguma coisa ou não. Os seus gestos eram exactos, estavam atentos, mas aquela era certamente a sua forma de estarem fora do mundo. Era assim que eu me sentia, à espera, atento, mas à espera de coisa nenhuma, aberto a tudo o que pudesse acontecer mas despreocupado, desinteressado. Sentia-me um centro, mas apenas mais um centro, e não atribuía a mim mesmo qualquer importância.

[continua...]

quarta-feira, 2 de setembro de 2009

viciante



Porque concordo que os blogues ganham força quando comunicam uns com os outros, e só por isso, direi que para mim blogue "viciante" é, desde logo, aquele em que o próprio autor é "viciado" - vício revelado pela elevada frequência com que edita o blogue - e, nesta categoria, de entre os blogs que visito habitualmente (na coluna da direita), terei que referir três, em que ao vício se alia a elevada qualidade: OO:04; antologia do esquecimento; dias felizes.

Cruzeiro Seixas

 Ouvir.