quarta-feira, 24 de julho de 2013

Poesia a murro

Poesia a murro

Porque lhe pesava muito, começou a deixar a alma em casa. Sentiu-se melhor, mas passou a trabalhar e a comer desalmadamente.

A paixão deixava-o muito pouco seguro de si e morria sempre de amor. A verdade é que ressuscitou várias vezes, nunca percebeu se para amar de novo ou se para de novo se matar.

Gostava tanto do peito da mulher que passou a levá-lo consigo. A princípio a mulher não se importou, mas depois sentiu-se despeitada.

Quando recebeu uma carta dela a dizer que estava morta, ele não duvidou nem por um momento; acreditava piamente na morte.

Quando o escritor percebeu que era afinal a sua mão direita que escrevia, cortou-a e guardou-a no cofre, não fosse ela fugir.

Estava sempre maldisposto e a mulher aborrecia-se. Um dia não aguentou mais e pô-lo na ordem. Ele ficou tão bem-disposto que se foi embora para sempre.

Aguentou a dor durante muito tempo, até que a alegria acabou por invadi-lo, porém fê-lo tão intensamente que a dor se tornou insuportável.

Quando a necessidade de escrever o assaltava, saía e dava longos passeios a pé. Regressado, sentava-se e copiava tudo para a folha.

Sentiu-se bastante mal e pediu a demissão, todavia não a aceitaram. Depois sentiu-se ainda pior e matou-se, porém continuou vivo. No final conformou-se e nunca mais se sentiu.



quinta-feira, 18 de julho de 2013

Poemas Avulso

escreve
os teus poemas
na água

para os ler
será preciso
ter sede


Poema em construção

Entre o céu e a terra
escreve o teu poema
linha que se estende
perante o teu espanto
revelando ao teu olhar
a ordem e a desordem
do mundo pressentido
uma e outra vez
no mais íntimo de ti


Arqueiro zen

Nas tuas mãos
abertas
as pedras em brasa
queimam-te

e tu não sabes
se deves fechá-las
nos teus punhos
ou devolvê-las
a quem te as deu

pouca diferença
faz estares zangado
contigo ou
com os outros
se tu és sempre
o alvo.


Poema único

Queria estar só. Meteu-se ao caminho, solitário, e, quando confirmou que ninguém o seguia, mandou embora a sua sombra. Depois continuou, ainda mais só, à procura de si próprio.



Ainda que me fosse
possível
(e a minha mão direita
corresse livre pela folha)
eu nunca escreveria
tudo o que tenho
para dizer.
O poema não é
árvore nem fruto,
o poema é sempre
semente
(e no interstício
branco sobre branco
as suas raízes
estendem-se
ávidas).

domingo, 14 de julho de 2013

Poemas avulsos IV

A verdade do poema

Entre a verdade e a mentira
afirma divertido o poeta
venha o leitor e
escolha.

Na sua calculada inocência
o poema tem de mentir
para dizer a sua
verdade.

A verdade do poema
é a sua mentira
mais bem
guardada.


Poema emaranhado

Em nós existem
muitos e diversos
uns e outros nós

uns que nos prendem
ao melhor de nós mesmos
outros que nos afastam
de quem queremos ser

escolham então com cuidado
que nós devem manter
que nós devem desatar


Poema ingénuo

Talvez o centro
do poema
esteja em cada um
dos seus versos
em cada umas das
suas palavras
no exacto ponto
em que o poema
gira sobre si mesmo
como que movido
por uma irrequieta
corrente de ar

segunda-feira, 8 de julho de 2013

Poemas avulsos III

Ensaio sobre a alegria

A alegria e a tristeza têm
a mesma natureza.
Como poderias sentir-te triste
se não conhecesses a alegria?
Como poderias sentir alegre
se não conhecesses
a tristeza?
A alegria e a tristeza são caixas
que sobre si mesmas
se fecham.
Uma começa onde a outra
termina.
Tudo começa e acaba
em ti.




Demasiado eu

Não escrevo para aqueles
que sabem o que tenho
para lhes dizer.
Escrevo para mim e para
aqueles que procuram o que
não sei dizer.
De que outra forma poderia
ter vontade de escrever
e de ser lido?

segunda-feira, 1 de julho de 2013

Poemas avulsos II

Transcendente

Procuro a distância necessária
para me aproximar de mim próprio
e do mundo.
Procuro a rude serenidade
que me permita viver
o tumulto do ser.
Procuro as raízes ensombradas
que perseguem sem descanso
o negrume da luz.
Procuro um centro a partir do qual
possa desenhar um círculo
mais que perfeito.
Procuro o silêncio necessário
para despertar as palavras
que dormem no branco
da folha.

...

Em branco

No branco da folha
as palavras
agonizam

Puxo-as para cima
reanimo-as
a custo

e eis que elas
morrem
estropiadas

Não tenho medo
da folha
em branco

tenho medo é de
perturbar o seu
equilíbrio

...

O tempo

O tempo voa
mas não se move
almeja o futuro
mas está preso
ao passado

O tempo somos nós
mesmo quando não
temos espaço para ele.

...

Faltam-me muitas vezes palavras para dizer o que sinto; não porque me faltem palavras, mas porque sempre me sobram.

...

Não há respostas,
só há perguntas.

As respostas
são apenas
perguntas 
alimentadas.

Cruzeiro Seixas

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