terça-feira, 30 de abril de 2013

ESPELHO MEU (2.ª parte)


[O conto continua a contar-se. Se alguém quiser terminá-lo, fica aqui o convite/desafio.]

II


            Caminhava na escuridão, adivinhando a custo o caminho que se estendia a seus pés; não pensava, quase não sentia, esforçava-se apenas por andar em frente. Passeava todos os dias sem destino, levado pelo caminho que se abria a cada um dos seus passos. Caminhava quase sempre a direito, como se traçasse uma linha recta, do centro que é a sua casa para a periferia, tão a direito quanto a morfologia do terreno lhe permitisse, e depois retornava sobre os seus passos, como se recolhesse um fio que antes tivesse estendido à sua passagem. Há vários anos que não trabalha, e os seus dias medem-se pelos seus contínuos passeios sem destino, em que todavia sempre regressa ao ponto de partida, à casa onde ninguém o espera. E eis que chegou a um cruzamento que lhe é familiar, e sabe que está no caminho certo, só precisa de continuar a andar. Olhou por um momento o céu onde não brilham estrelas e de novo se concentra em caminhar; não pensa, quase não sente, o caminho cresce ao ritmo da sua passada. Caminhar ajuda-o a esquecer-se de si próprio, duvidoso consolo, e no entanto absolutamente necessário. Aperfeiçoou o seu método até não pensar, até quase não sentir, no entanto o pouco que sente, medo, inquietação, esperança, arrasta sempre consigo pensamentos difusos, que ele não sabe se são causa ou efeito daqueles. Sente uma ligeira inquietação, como o princípio de uma vertigem, e um pensamento cruza-lhe a mente, e se ou outro está em sua casa? Não pensa, quase não sente, e aquele pensamento inquieto desapareceu tão depressa como aparecera. Vive numa pequena casa térrea que um amigo lhe cedeu quatro ou cinco anos antes, e desde então nunca mais se viram ou contactaram. Continua a ter água e eletricidade, pelo que conclui que o amigo não deixou de pagar as contas. Vive sozinho, ignorando os raros vizinhos, a quem se limita a acenar de longe, num cumprimento distante que não convida a qualquer aproximação. Após uma curva acentuada, avistou finalmente a sua casa, para lá do irregular renque de árvores, e nem então o seu último pensamento encontrou eco em si, continuando apenas a caminhar. No entanto, a luz da sua casa estava acesa.

            Havia outras casas com luzes acesas, dispersas pela suave colina, e ele não teve qualquer dúvida que também havia luz em sua casa, a mais próxima da estrada. Aceitou a luz em sua casa, como se habituara a aceitar muitos outros factos e situações nos últimos anos, quase sem emoção e sem efetuar qualquer juízo de valor, no entanto, ainda que o seu passo não se tenha alterado, a pergunta foi ganhando espaço, até não conseguir fugir dela; o outro estaria em sua casa? Não se lembrava de alguma vez ter deixado a luz acesa e, mesmo que a tivesse deixado acesa pela primeira vez, ainda seria preciso explicar a janela que tinha a portada entreaberta, o que de certeza não era obra sua, porque ele mantinha essa portada sempre fechada, estivesse ou não em casa. Estava já a menos de 50 metros e continuava a avançar, numa passada elástica e regular. A porta encontrava-se fechada e estava tudo em silêncio. Espreitou pela portada entreaberta; apenas vislumbrou a pequena divisão que fazia ao mesmo tempo de sala, quarto e cozinha. Procurou a chave debaixo do vaso com o cacto que sempre lhe parecera morto. Não a encontrou. Perfilou-se em frente à porta, à escuta. Silêncio. Abriu a porta e olhou para dentro. Não estava ninguém à vista. Entrou e espreitou a porta da casa de banho, ao fundo à direita. Estava aberta. Dirigiu-se até lá. Não estava ninguém. Encontrava-se sozinho em casa, como sempre acontecia. Olhou à sua volta à procura de diferenças, qualquer coisa que faltasse ou que estivesse a mais. Em cima do sofá-cama, que ele nunca abre, está um chapéu em tudo semelhante ao chapéu ridículo que tem na cabeça. Compara-os, são em tudo semelhantes, até no brilho seboso que se espalha de forma irregular pela sua superfície. Aproximou-se da pequena mesa quadrada, com duas cadeiras ímpares, perscrutando o balcão da cozinha e as paredes quase vazias, onde duas pequenas gravuras idênticas estabelecem diálogos de silêncio de um lado ao outro da casa. Em cima da mesa estão dois livros, os mesmos desde que ali chegou, e um caderno de argolas, aberto e dobrado sobre si mesmo. Na página que se oferece ao olhar pode ler-se, com uma caligrafia em tudo igual à do homem, “Fui à procura de mim próprio”, frase que ele está certo de nunca ter escrito. Olhou para a porta fechada, sem saber que o fazia, e repetiu a frase em voz alta, “Fui à procura de mim próprio”. Não consegue vislumbrar qualquer sentido válido nessa frase. Não está de forma alguma interessado em se procurar a si próprio, assim como também não está a fugir de si próprio, o que lhe ocorre agora que talvez o outro esteja afinal a fazer. À procura de si próprio ou a fugir de si próprio, o sentido possível do desaparecimento do outro começa a desinteressá-lo, e a verdade é que nem por um momento pensou em ir atrás dele. Por outro lado, está convencido que o outro não voltará ali, no entanto tem a certeza de que ele existe, e esse facto transmite-lhe uma fugaz sensação de incompletude. Deitou-se no sofá, a cabeça sobre a mão direita fechada, e não demorou muito até que adormecesse.
            Acordou ainda era de noite. Espreguiçou-se. Fechou os olhos. Adormeceu de novo. A sua vida dividia-se entre os seus passeios e os seus períodos de sono, nada mais parecia ser mais importante do que caminhar e dormir. Não poderia dizer que era feliz, todavia a felicidade não era algo que ele procurasse. Queria viver despreocupado, por isso se treinara a não pensar, a quase não sentir, a não ser o fundamental para a sua sobrevivência. Vive sem dinheiro e, o que é mais importante, sem a necessidade de ter de arranjar dinheiro, fonte inesgotável de preocupações. Nos seus passeios encontra sempre alimentos, fruta e vegetais que apodreceriam se não os apanhasse. E às vezes encontra casas abandonadas, com despensas que ainda oferecem vários bens essenciais, como massas, azeite, sal e conservas. Ainda se admira como pode aguentar-se com tão pouco, sem ser atormentado pela fome. Uma vez encontrou uma garrafa de vinho tinto, em cima da mesa da cozinha de uma pequena casa de campo, como se os seus habitantes a tivessem colocado ali para a beber antes de saírem, e se tivessem esquecido. Abriu a garrafa e bebeu-a com lento deleite, como se lesse um livro querido. E depois, pela primeira vez em vários anos, chorou como um rio que procura o mar. Durante vários dias ficou deitado no sofá, de olhos fechados, imóvel, de tal forma que um observador duvidaria se estava vivo ou morto. Era capaz de estar imóvel durante longos períodos, assim como era capaz de caminhar durante várias horas, afinal duas formas diferentes de se esquecer de si próprio, de atingir a serenidade que impunha si mesmo.

            Quando acordou de novo já era de dia. Levantou-se e olhou à sua volta. Sentou-se à mesa e olhou o caderno de argolas aberto. Agarrou-o, fechou-o e voltou a colocá-lo no mesmo lugar. Um dos livros em cima da mesa era um livro de poemas. Agarrou-o, abriu ao caso e olhou o poema na página da direita. Entrou nele, lentamente, como num lago, com arrepios de frio e de prazer. Fechou os olhos, deixou que o poema se dissesse de novo. Era um pequeno poema ao estilo dos poemas breves japoneses, um poema que falava de si, que lhe recordava que a verdade é sempre paradoxal. Esteve muito tempo sentado, imóvel, como se fosse a estátua de um leitor. Sempre lhe agradara a imobilidade, sentia-a uma manifestação (ou seria emanação?) da calma e da serenidade que tanto admirava. Naquele dia não iria caminhar. Fechou o livro, devolveu-o ao seu lugar e deitou-se de novo no sofá, tranquilo, os olhos fechados. No dia seguinte, pouco depois de acordar, saiu de casa, sem destino, e caminhou várias horas, imperturbável, até que percebeu que tinha chegado a um cruzamento que lhe era familiar, o mesmo em que, dois dias antes, confirmara que estava no caminho certo para casa. Sentiu-se perturbado e perplexo. Como tinha chegado ali se não o tinha desejado? Deveria voltar ao lugar onde encontrara o outro? Colocava a si próprio estas questões, porém caminhava já de regresso a casa. E nos dias que se seguiram, voltou várias vezes àquele cruzamento, o que lhe acontecia sem que o procurasse, como se todos os caminhos fossem dar àquele lugar. Não era que não quisesse voltar ao lugar onde encontrara o outro, o que ele queria era apenas passear sem destino, e por isso se mostrou relutante quando o caminho parecia insistir em levá-lo a um ponto determinado. Todavia se queria passear-se sem destino, era importante que se deixasse ir, e se o caminho o queria levar àquele lugar, então era lá que ele iria. Do cruzamento até ao lugar onde encontrara o outro deveria ser fácil, no entanto, após várias tentativas infrutíferas, viu-se de novo no lugar de partida. Tinha chegado antes ao lugar por acaso, como todos os seus passeios se faziam sem destino, e agora, que o procurava, não conseguia encontrá-lo. Apesar de contrariado, não deixou de apreciar a ironia subjacente. A partir daí, e por mais que lamentasse, todos os seus passeios o levavam àquela encruzilhada, porém nunca ao lugar a que ele queria chegar. Numa das vezes que por ali andava, à procura, perdeu-se mesmo e só conseguiu voltar ao cruzamento quando já pensava que teria de pernoitar ali. Perdida essa segurança do retorno, começou a aventurar-se a medo, para lá do cruzamento, e um dia estava já quase a desistir da sua busca, quando viu uma árvore que, ainda que não fosse a mesma, em muito se assemelhava à outra, uma árvore velha e descarnada que se erguia gigantesca contra o céu cinzento. Subiu-a e sentou-se lá em cima, onde o tronco largo se multiplicava em finos ramos. Olhou à sua volta, à procura da outra árvore e da clareira que a fazia sobressair, e depois desinteressou-se, deixando-se apenas ficar ali sentado, nada fazendo, os olhos fechados, até que uma voz o despertou. “Olá, o que está aí a fazer?” Olhou para baixo e viu um homem que o olhava com uma expressão trocista. Pensou ignorá-lo, mas ouviu-se a si mesmo a responder-lhe, “Estou à espera de mim próprio”. O outro começou a rir e foi-se embora, acompanhada por gargalhadas sonoras que ficaram a ecoar no silêncio que se seguiu. O homem continuou em cima da árvore durante muito tempo e só desceu quando a noite já se adivinhava, regressando então a casa.

terça-feira, 23 de abril de 2013

ESPELHO MEU


[ Interrogava-me se era um pequeno conto ou o princípio de outro maior. Esta é a primeira parte da resposta, ainda à espera de evolução.]


ESPELHO MEU

I


Olhou para o alto da velha árvore descarnada que se erguia gigantesca contra o céu cinzento, e viu-se a si mesmo a olhar para baixo na sua direcção. Ficou perturbado e perplexo, o homem que o olhava de cima era um perfeito reflexo de si próprio, quer nas suas características físicas quer no seu vestuário. Até o ridículo chapéu alto que ostentava era o mesmo. E o homem sentado na árvore parecia também espelhar a mesma perturbação e perplexidade que ele sentia. Será que estava a pensar o mesmo que ele? Dirigiu-lhe a palavra, quebrando o silêncio, “Olá, como está?” e a frase soou ao mesmo tempo na boca do homem sentado no alto da árvore. E de novo as mesmas emoções se espelharam no rosto de ambos. Rodeou o enorme tronco, procurando forma de subir a árvore e, quando julgou ter encontrado um modo, elevou-se, não sem dificuldade, até ao lugar onde o avistara o outro homem. Para sua surpresa não estava ali ninguém. Sentou-se, olhou para baixo, e viu-se a si mesmo a olhar para cima na sua direcção, como num labiríntico desenho de Escher.

Nunca exigira do mundo que fizesse sentido, ainda que muitas vezes se tivesse esforçado por encontrar um sentido para aquilo que acontecia à sua volta; era mais um jogo do que uma necessidade; não dava sentido à sua vida, antes o distraía e mantinha-o ocupado. O mundo não tem um sentido, pensava, por isso é que tem tantos quantos quisermos e formos capazes de lhe atribuir. Podemos explicar tudo o que acontece, tantas vezes quantas quisermos, e fazê-lo sempre de forma diferente, impulsionados e sustentados apenas pela nossa imaginação. Continuava sentado e, por um momento, desviara os olhos do chão e erguera-os para o alto, como era seu hábito quanto pensava, porém quando voltou a olhar para o local onde antes estava o outro homem, constatou que ele já não estava ali. Olhou à sua volta, primeiro para mais perto e depois para mais longe, mas ninguém se encontrava à vista. Ficou tão perturbado e perplexo com o desaparecimento do outro como tinha ficado com o seu aparecimento. Desceu da árvore com cuidado, e foi colocar-se no exacto lugar de onde primeiro tinha avistado o outro. Olhou para cima, para o alto da velha árvore descarnada, possuído por uma mistura de ansiedade e desilusão. Não estava ninguém em cima da árvore.

Não se interrogou, nem por um instante, se tinha visto ou não um homem em cima da árvore; assim como não questionou, nem sequer por mera hipótese, que esse homem não se assemelhasse de tal forma a si próprio que qualquer pessoa julgaria que era seu gémeo verdadeiro. Concentrou-se, em exclusivo, em procurar sentidos possíveis para o aparecimento e subsequente desaparecimento daquele gémeo improvável. O facto de o outro ter desaparecido quase de imediato, parecia-lhe tão significativo como ter aparecido, levando-o a questionar a ligação entre ambos; porque se ela fosse bastante forte, especulou, era de esperar que o outro não fosse capaz de o abandonar daquela forma depois de um breve encontro. O aparecimento de alguém que tanto se assemelhava a ele não podia ser um mero acaso, e de alguma forma devia estar relacionado consigo; pensou e, ao mesmo tempo, sentiu um arrepio que era também um pensamento, porque lhe dizia que talvez pudesse ser ele afinal o reflexo do outro. E quando ponderou se devia sair dali ou ficar ainda mais algum tempo, não conseguiu deixar de pensar que, caso se fosse embora, estaria afinal a imitar o outro, como se a sua acção fosse mero reflexo da acção do outro. Por outro lado, talvez ele voltasse ali, ao ponto de origem. Voltou a subir a árvore e a sentar-se no mesmo lugar onde tinha avistado o outro.

As pernas balouçavam de leve como que agitadas pela suave brisa que se levantara, e o homem sentado no topo da velha árvore descarnada não parecia pensar em coisa alguma. O olhar estava caído no chão, sem vida, e quem observasse o homem podia pensar que adormecera, ou até que morrera, mantendo-se equilibrado apenas devido ao braço direito agarrado, com a firmeza de um nó, a um ramo que se oferecia tal braço de cadeira. O homem, como todos os homens, tinha as suas forças e as suas fraquezas, e uma delas era ter medo das alturas. Por isso estava imóvel, os olhos semicerrados, como se ele próprio fizesse parte da árvore, como se ele próprio fosse a árvore. Sobressaltou-se quando abriu os olhos e agarrou-se ainda com mais força à árvore. Não estava a mais de três metros do solo, e poderia até saltar para o chão com facilidade, no entanto essa constatação não afastava a sua perturbação. E se não conseguisse sair da árvore antes que alguém o viesse substituir, interrogou-se, e essa pergunta era o seu medo a falar, mas era também um retomar da procura de sentido para o aparecimento e desaparecimento do outro homem, semelhante a um reflexo seu no espelho. Ele já descera da árvore e voltara a subir, e agora voltaria a descer, se algum encantamento existia não era certamente aquele. Deixou-se estar sentado, as pernas a balouçar de leve, o olhar fixo num ponto à sua frente, a quarenta ou cinquenta metros, onde se levantava outra árvore, em tudo idêntica àquela onde estava sentado, e foi então que de novo se sobressaltou, a boca aberto num espanto mudo. Em cima da outra árvore estava um homem, não tinha qualquer dúvida quanto a isso, apesar de apenas o conseguir entrever, por se encontrar sentado quase de costas para si. Se era o mesmo homem não sabia, mas o mais provável era que fosse. Desceu da árvore com gestos cautelosos, sem pressa, e avançou em direcção ao outro, aproximando-se pela direita, tentando não caminhar nem depressa nem devagar demais. O outro parecia distraído, olhando a direito para o céu cinzento, e não deu pela sua chegada. Era outro homem, concluiu com um misto de desapontamento e alívio, em nada se parecia consigo; as diferenças eram tão óbvias que se dispensou de as enunciar.

Ponderou se deveria ir-se embora antes que o outro se apercebesse da sua presença, mas já era demasiado tarde; o homem olhava-o e era visível o seu desapontamento. Não falou, mas era fácil adivinhar que estava desiludido. “Olá, como está?”, disse o homem, no entanto o outro continuou em silêncio e, pouco tempo depois, voltou a olhar o céu, desinteressado de tudo o resto. “Olá”, insistiu, “o que faz aí em cima dessa árvore? O outro nem se voltou, todavia a resposta não se fez tardar, “Estou à espera de mim próprio.” “O quê?”, balbuciou o homem. “Estou à espera de mim próprio”, repetiu o outro, olhando agora para ele, “e já vi que não é você, que em nada se parece comigo”. Nisso estamos de acordo”, disse o homem, e por momentos não soube o que mais dizer. “Porque não sai daí e vai à procura de si próprio?”, perguntou ao mesmo tempo que se sentava no chão. O outro continuava a olhá-lo, os lábios comprimidos numa linha que podia sublinhar aborrecimento ou incredibilidade. “Não é assim que as coisas acontecem. Pode não haver um sentido, pode não existir uma explicação, mas as coisas são como são. Tenho de ficar à espera.” E depois?” disse o homem. “Depois não sei”, respondeu o outro, “mas primeiro é preciso esperar; é isso que estou a fazer; e é óbvio que essa espera ainda não acabou”. Disse isto e voltou-lhe ostensivamente as costas, ajeitando-se à sua nova posição. O homem ainda ficou algum tempo sentado, a olhar para as costas do outro, em silêncio, e depois levantou-se e caminhou de volta para a árvore onde tinha visto o outro homem, aquele que era em tudo semelhante a ele próprio. Sentou-se no chão, as costas apoiadas no tronco da velha árvore descarnada, e olhou a outra árvore, em tudo idêntica aquela, onde agora apenas pressentia o outro homem, aquele que em nada se parecia consigo. O que quis ele dizer quando afirmou que estava à espera de si próprio? E estava à espera de si próprio para quê?

Existiam, estava agora convencido, duas possibilidades que eram mais fortes do que as restantes, e resolveu concentrar-se nelas. Ou o outro estava agora em si, absorvido de alguma forma, e por isso tinha desaparecido, ou não, e nesse caso o mais provável é que tentasse ocupar o seu lugar, imitando-o nas suas acções, e por isso se tinha ido embora. O homem na outra árvore dissera que estava à espera de si próprio, o que podia indiciar que aquele que espera e aquele que chega são uma só pessoa, apesar de serem dois, da mesma forma que uma pessoa pode ser várias ao longo dos anos, sem deixar de ser ela mesma. Esta constatação, apesar de nada explicar, pareceu-lhe, no entanto, um bom ponto de partida, apontando para a existência de um laço forte entre os dois, afetando-se um e outro mutuamente. Nesta linha de raciocínio, começou por tentar perceber se havia em si algo diferente, alguma mudança, no entanto, apesar de ter persistido nesse esforço, não sentia nada de diferente em si. Na verdade, embora muitas vezes se tivesse sentido dividido e outras tantas se tivesse sentido outro, nunca havia sentido em si uma incompletude que pedisse a adição de um outro, condição que lhe pareceu necessária para a tese em causa. Restava assim a outra hipótese, que a sua chegada tivesse libertado o outro, que andaria por aí a fazer sabe-se lá o quê. E quanto mais pensava, mais forte lhe parecia essa possibilidade, de tal forma que mais do que um ponto de partida lhe pareceu um ponto de chegada. Espreguiçou-se, estendeu-se um pouco mais, alongando as pernas e as costas, fechou os olhos e adormeceu pouco depois. Quando acordou, a noite deitava-se já na linha do horizonte, e levantou-se ansioso. Tinha chegado ali quase por acaso e, ainda que não se tivesse aventurado muito, temia enganar-se quanto ao caminho de regresso, sobretudo se a noite caísse depressa. Levantou-se, apressado, e saiu dali, completamente compenetrado no regresso a casa.




quarta-feira, 17 de abril de 2013

Afinal o conto quis continuar a contar-se



ESPELHO MEU (CONTINUAÇÃO)



Nunca exigira do mundo que fizesse sentido, ainda que muitas vezes se esforçasse por encontrar um sentido para aquilo que acontecia à sua volta; era mais um jogo do que uma necessidade; não dava sentido à sua vida, antes o distraía e mantinha-o ocupado. O mundo não tem um sentido, pensava, por isso é que tem tantos quantos quisermos e formos capazes de lhe atribuir. Podemos explicar tudo o que acontece, tantas vezes quantas quisermos, impulsionados e sustentados apenas pela nossa imaginação. Continuava sentado e, por um momento, desviara os olhos do chão e erguera-os para o alto, como era seu hábito quanto pensava, e quando voltou a olhar para o local onde antes estava o outro homem, constatou que ele já não estava ali. Olhou à sua volta, primeiro para mais perto e depois para mais longe, mas ninguém se encontrava à vista. Ficou tão perturbado e perplexo com o desaparecimento do outro como tinha ficado com o seu aparecimento. Desceu da árvore com cuidado, e foi colocar-se no exacto lugar de onde primeiro tinha visto o outro. Olhou para cima, para o alto da velha árvore descarnada, possuído por uma mistura de ansiedade e desilusão. Não estava ninguém em cima da árvore.

(CONTINUA NA PRÓXIMA SEMANA)

[Pode ser um conto pequeno ou o princípio de outro maior, não sei]

ESPELHO MEU


Olhou para o alto da velha árvore descarnada que se erguia gigantesca contra um céu cinzento, e viu-se a si mesmo a olhar para baixo na sua direcção. Ficou perturbado e perplexo, o homem que o olhava de cima era um perfeito reflexo de si próprio, quer nas suas características físicas quer no seu vestuário. Até o ridículo chapéu alto que ostentava era o mesmo. E o homem sentado na árvore parecia também espelhar a mesma perturbação e perplexidade que ele sentia. Será que estava a pensar o mesmo que ele? Dirigiu-lhe a palavra, quebrando o silêncio, “Olá, como está?”, e a frase soou ao mesmo tempo na boca do homem sentado no alto da árvore. E de novo as mesmas emoções se espelharam no rosto de ambos. Rodeou o enorme tronco, procurando forma de subir a árvore e, quando a julgou ter encontrado, elevou-se, não sem dificuldade, até ao lugar onde o outro homem se encontrava. Para sua surpresa não estava ali ninguém. Sentou-se, olhou para baixo, e viu-se a si mesmo a olhar para cima na sua direcção, como num labiríntico desenho de Escher.



fotografia de Rodney Smith

Cruzeiro Seixas

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