[ Interrogava-me se era um pequeno conto ou o princípio de outro maior. Esta é a primeira parte da resposta, ainda à espera de evolução.]
ESPELHO MEU
I
Olhou para o alto da velha árvore
descarnada que se erguia gigantesca contra o céu cinzento, e viu-se a si mesmo
a olhar para baixo na sua direcção. Ficou perturbado e perplexo, o homem que o
olhava de cima era um perfeito reflexo de si próprio, quer nas suas
características físicas quer no seu vestuário. Até o ridículo chapéu alto que
ostentava era o mesmo. E o homem sentado na árvore parecia também espelhar a
mesma perturbação e perplexidade que ele sentia. Será que estava a pensar o mesmo
que ele? Dirigiu-lhe a palavra, quebrando o silêncio, “Olá, como está?” e a
frase soou ao mesmo tempo na boca do homem sentado no alto da árvore. E de novo
as mesmas emoções se espelharam no rosto de ambos. Rodeou o enorme tronco,
procurando forma de subir a árvore e, quando julgou ter encontrado um modo,
elevou-se, não sem dificuldade, até ao lugar onde o avistara o outro homem.
Para sua surpresa não estava ali ninguém. Sentou-se, olhou para baixo, e viu-se
a si mesmo a olhar para cima na sua direcção, como num labiríntico desenho
de Escher.
Nunca exigira do mundo que fizesse
sentido, ainda que muitas vezes se tivesse esforçado por encontrar um sentido
para aquilo que acontecia à sua volta; era mais um jogo do que uma necessidade;
não dava sentido à sua vida, antes o distraía e mantinha-o ocupado. O mundo não
tem um sentido, pensava, por isso é que tem tantos quantos quisermos e formos
capazes de lhe atribuir. Podemos explicar tudo o que acontece, tantas vezes
quantas quisermos, e fazê-lo sempre de forma diferente, impulsionados e
sustentados apenas pela nossa imaginação. Continuava sentado e, por um momento,
desviara os olhos do chão e erguera-os para o alto, como era seu hábito quanto
pensava, porém quando voltou a olhar para o local onde antes estava o outro
homem, constatou que ele já não estava ali. Olhou à sua volta, primeiro para
mais perto e depois para mais longe, mas ninguém se encontrava à vista. Ficou
tão perturbado e perplexo com o desaparecimento do outro como tinha ficado com
o seu aparecimento. Desceu da árvore com cuidado, e foi colocar-se no exacto
lugar de onde primeiro tinha avistado o outro. Olhou para cima, para o alto da
velha árvore descarnada, possuído por uma mistura de ansiedade e desilusão. Não
estava ninguém em cima da árvore.
Não se interrogou, nem por um instante,
se tinha visto ou não um homem em cima da árvore; assim como não questionou,
nem sequer por mera hipótese, que esse homem não se assemelhasse de tal forma a
si próprio que qualquer pessoa julgaria que era seu gémeo verdadeiro.
Concentrou-se, em exclusivo, em procurar sentidos possíveis para o aparecimento
e subsequente desaparecimento daquele gémeo improvável. O facto de o outro ter
desaparecido quase de imediato, parecia-lhe tão significativo como ter
aparecido, levando-o a questionar a ligação entre ambos; porque se ela fosse
bastante forte, especulou, era de esperar que o outro não fosse capaz de o
abandonar daquela forma depois de um breve encontro. O aparecimento de alguém
que tanto se assemelhava a ele não podia ser um mero acaso, e de alguma forma
devia estar relacionado consigo; pensou e, ao mesmo tempo, sentiu um arrepio
que era também um pensamento, porque lhe dizia que talvez pudesse ser ele
afinal o reflexo do outro. E quando ponderou se devia sair dali ou ficar ainda
mais algum tempo, não conseguiu deixar de pensar que, caso se fosse embora,
estaria afinal a imitar o outro, como se a sua acção fosse mero reflexo da
acção do outro. Por outro lado, talvez ele voltasse ali, ao ponto de origem.
Voltou a subir a árvore e a sentar-se no mesmo lugar onde tinha avistado o
outro.
As pernas balouçavam de leve como que
agitadas pela suave brisa que se levantara, e o homem sentado no topo da velha
árvore descarnada não parecia pensar em coisa alguma. O olhar estava caído no
chão, sem vida, e quem observasse o homem podia pensar que adormecera, ou até
que morrera, mantendo-se equilibrado apenas devido ao braço direito agarrado,
com a firmeza de um nó, a um ramo que se oferecia tal braço de cadeira. O
homem, como todos os homens, tinha as suas forças e as suas fraquezas, e uma
delas era ter medo das alturas. Por isso estava imóvel, os olhos semicerrados,
como se ele próprio fizesse parte da árvore, como se ele próprio fosse a
árvore. Sobressaltou-se quando abriu os olhos e agarrou-se ainda com mais força
à árvore. Não estava a mais de três metros do solo, e poderia até saltar para o
chão com facilidade, no entanto essa constatação não afastava a sua
perturbação. E se não conseguisse sair da árvore antes que alguém o viesse substituir,
interrogou-se, e essa pergunta era o seu medo a falar, mas era também um
retomar da procura de sentido para o aparecimento e desaparecimento do outro
homem, semelhante a um reflexo seu no espelho. Ele já descera da árvore e
voltara a subir, e agora voltaria a descer, se algum encantamento existia não
era certamente aquele. Deixou-se estar sentado, as pernas a balouçar de leve, o
olhar fixo num ponto à sua frente, a quarenta ou cinquenta metros, onde se
levantava outra árvore, em tudo idêntica àquela onde estava sentado, e foi
então que de novo se sobressaltou, a boca aberto num espanto mudo. Em cima da
outra árvore estava um homem, não tinha qualquer dúvida quanto a isso, apesar
de apenas o conseguir entrever, por se encontrar sentado quase de costas para
si. Se era o mesmo homem não sabia, mas o mais provável era que fosse. Desceu
da árvore com gestos cautelosos, sem pressa, e avançou em direcção ao outro,
aproximando-se pela direita, tentando não caminhar nem depressa nem devagar
demais. O outro parecia distraído, olhando a direito para o céu cinzento, e não
deu pela sua chegada. Era outro homem, concluiu com um misto de desapontamento
e alívio, em nada se parecia consigo; as diferenças eram tão óbvias que se
dispensou de as enunciar.
Ponderou se deveria ir-se embora antes
que o outro se apercebesse da sua presença, mas já era demasiado tarde; o homem
olhava-o e era visível o seu desapontamento. Não falou, mas era fácil adivinhar
que estava desiludido. “Olá, como está?”, disse o homem, no entanto o outro
continuou em silêncio e, pouco tempo depois, voltou a olhar o céu,
desinteressado de tudo o resto. “Olá”, insistiu, “o que faz aí em cima dessa
árvore? O outro nem se voltou, todavia a resposta não se fez tardar, “Estou à
espera de mim próprio.” “O quê?”, balbuciou o homem. “Estou à espera de mim
próprio”, repetiu o outro, olhando agora para ele, “e já vi que não é você, que
em nada se parece comigo”. Nisso estamos de acordo”, disse o homem, e por
momentos não soube o que mais dizer. “Porque não sai daí e vai à procura de si
próprio?”, perguntou ao mesmo tempo que se sentava no chão. O outro continuava
a olhá-lo, os lábios comprimidos numa linha que podia sublinhar aborrecimento
ou incredibilidade. “Não é assim que as coisas acontecem. Pode não haver um
sentido, pode não existir uma explicação, mas as coisas são como são. Tenho de
ficar à espera.” E depois?” disse o homem. “Depois não sei”, respondeu o outro,
“mas primeiro é preciso esperar; é isso que estou a fazer; e é óbvio que essa
espera ainda não acabou”. Disse isto e voltou-lhe ostensivamente as costas,
ajeitando-se à sua nova posição. O homem ainda ficou algum tempo sentado, a
olhar para as costas do outro, em silêncio, e depois levantou-se e caminhou de
volta para a árvore onde tinha visto o outro homem, aquele que era em tudo
semelhante a ele próprio. Sentou-se no chão, as costas apoiadas no tronco da
velha árvore descarnada, e olhou a outra árvore, em tudo idêntica aquela, onde
agora apenas pressentia o outro homem, aquele que em nada se parecia consigo. O
que quis ele dizer quando afirmou que estava à espera de si próprio? E estava à
espera de si próprio para quê?
Existiam, estava agora convencido, duas
possibilidades que eram mais fortes do que as restantes, e resolveu
concentrar-se nelas. Ou o outro estava agora em si, absorvido de alguma forma,
e por isso tinha desaparecido, ou não, e nesse caso o mais provável é que
tentasse ocupar o seu lugar, imitando-o nas suas acções, e por isso se tinha
ido embora. O homem na outra árvore dissera que estava à espera de si próprio,
o que podia indiciar que aquele que espera e aquele que chega são uma só
pessoa, apesar de serem dois, da mesma forma que uma pessoa pode ser várias ao
longo dos anos, sem deixar de ser ela mesma. Esta constatação, apesar de nada
explicar, pareceu-lhe, no entanto, um bom ponto de partida, apontando para a
existência de um laço forte entre os dois, afetando-se um e outro mutuamente.
Nesta linha de raciocínio, começou por tentar perceber se havia em si algo
diferente, alguma mudança, no entanto, apesar de ter persistido nesse esforço,
não sentia nada de diferente em
si. Na verdade, embora muitas vezes se tivesse sentido
dividido e outras tantas se tivesse sentido outro, nunca havia sentido em si
uma incompletude que pedisse a adição de um outro, condição que lhe pareceu
necessária para a tese em
causa. Restava assim a outra hipótese, que a sua chegada
tivesse libertado o outro, que andaria por aí a fazer sabe-se lá o quê. E
quanto mais pensava, mais forte lhe parecia essa possibilidade, de tal forma
que mais do que um ponto de partida lhe pareceu um ponto de chegada.
Espreguiçou-se, estendeu-se um pouco mais, alongando as pernas e as costas,
fechou os olhos e adormeceu pouco depois. Quando acordou, a noite deitava-se já
na linha do horizonte, e levantou-se ansioso. Tinha chegado ali quase por acaso
e, ainda que não se tivesse aventurado muito, temia enganar-se quanto ao
caminho de regresso, sobretudo se a noite caísse depressa. Levantou-se, apressado, e saiu dali, completamente compenetrado no regresso a casa.