sexta-feira, 8 de julho de 2016

40 ASDRÚBAL BRANCO

(de um conjunto de 45 contos/textos/fragmentos que formam o livro Escrever é dobrar e desdobrar palavras à procura de um sentido, deixo-vos este em que confluem vários elementos e características de contos anteriores, como facilmente o leitor perceberá no acto de leitura)

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Foi sempre muito curioso, mas nunca sentiu realmente necessidade de explicações e talvez esse facto ajude a derramar alguma luz sobre o que lhe aconteceu. Tinha tido ao longo dos anos breves vislumbres sobre a natureza e o funcionamento das coisas e das pessoas, clarões intensos que se apagavam tão depressa como surgiam, mas nunca pensou que poderiam passar disso.
Gostava de contemplar as coisas e as pessoas, de as admirar, mas sentia um intenso pudor em despi-las do mistério que as fazia verdadeiras e cobri-las com o falso manto da verdade. Por isso preferia o sonho ao raciocínio lógico. E desprezava as palavras. Cada vez mais. Limitava-se a contemplar, a ser aquilo que contemplava, e desta forma participava do mistério da vida, sem o corromper ou dissipar.

De certa forma é o que estou a fazer quando escrevo este texto, apesar de ser algo que ele tanto condenava e desprezava. Estou a usar as palavras para contemplá-lo, agora que se foi, e não estou a usá-las ao serviço do raciocínio lógico, mas do sonho. Deixo que a história se conte, esforçando-me por quase não respirar, enquanto a história se conta.

Asdrúbal Branco sentiu pela primeira vez a completa desnecessidade das palavras quando, muito novo, olhou o céu azul e sentiu em si esse céu, com tal intensidade que não falou durante uma semana. O seu olhar era vazio e não proferia uma palavra que fosse, ainda que sorrisse, e os pais pensaram que enlouquecera. Mas uma semana depois voltou a falar, e parecia o mesmo de sempre.

Foram os pais de Asdrúbal que me contaram esta história, mas garantiram-me que, a partir daí, o filho se comportou sempre de forma normal, ainda que tivesse sido sempre um pouco distraído, de tal forma que muitas pessoas pensavam que ele era um pouco tolo. Mas a verdade é que o seu percurso escolar foi contínuo e só não foi para a universidade por manifesta falta de vontade.

“O meu filho não era burro, não senhor, quando nos olhava nos olhos sentíamos que podia ler dentro de nós com toda a facilidade, e isso assustava as pessoas. Começaram a evitá-lo e falavam mal dele nas suas costas. Ele percebia tudo mas não dizia nada nem mostrava qualquer ressentimento, e isso ainda assustava mais as pessoas. Passou a andar sempre sozinho e quase nunca falava.”

Gostava de subir ao depósito de água e dali contemplar a aldeia, com o seu olhar de carneiro mal morto, como diziam as pessoas da aldeia, hora após hora. Conseguia perceber tudo o que se passava como se estivesse a lê-lo num livro, só não precisava era de palavras. As palavras, teve disso a certeza, sempre o tinham impedido de ver, como uns óculos mal graduados, e deixou completamente de falar com quem quer que fosse, nem sequer para um simples olá.

Com o correr dos anos a sua capacidade de ver a verdadeira natureza e funcionamento de tudo à sua volta, se o posso dizer assim, foi aumentando de tal forma que qualquer pequena coisa ou acontecimento o ocupavam por inteiro. Uma mera gota de água, um simples grão de areia eram suficientes para o manter concentrado durante meses, de tal forma que o julgaram em louco e o internaram num hospital psiquiátrico, com diagnóstico reservado.

“Achei sempre que não havia nada de errado com o meu filho, apenas estava num mundo que era só seu, mas os médicos garantiram-me que estava muito doente e que precisava de ajuda médica. Quando voltou para casa fiquei muito contente, mas no dia seguinte a polícia apareceu e levou-o de novo e nunca mais o vi.”

Um dia depois de ter sido levado de novo para o hospital, Asdrúbal Branco desapareceu e nunca mais foi encontrado, apesar dos esforços da polícia.
Ninguém acreditava que ele poderia ir muito longe, e convenceram-se que o encontrariam num raio de centenas de metros, a observar intensamente uma flor ou o desenho irregular de uma pequena pedra, mas tal nunca aconteceu.

Não vou dizer onde está Asdrúbal Branco, mas deixem-me que o mostre debruçado sobre um lago turvo, toda a sua atenção presa a um pequeno insecto rubro que parece também olhar para ele num linear jogo de espelhos.


Queria dizer-vos mais, podem disso ter a certeza, mas a escrita é um instrumento poderoso e frágil ao mesmo tempo, e temo que se insistir em contar esta história ela se quebre em mil pedaços impedindo-vos de ver o pouco que vos posso mostrar. Por isso fico por aqui.




Cruzeiro Seixas

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