terça-feira, 13 de outubro de 2009

Queda Livre (cont.)

12

No dia seguinte, ao congresso, ao dia de sexo, como um eco de tudo o que aconteceu nos últimos dias, nas últimas páginas, a cidade amanheceu cheia de cartazes, colados nos postes de iluminação, nas portas das garagens da baixa, por todo o lado, fotocópias cinzentas que ostentam a foto de uma mulher e um pedido: se virem esta mulher telefonem-me, e um número de telemóvel, e um título, a encimar o cartaz, história de amor. Um homem procura uma mulher, uma história de amor; mas o amor tem muitas formas e muitos nomes. O amor pode ser sempre o amor, mas se não sabemos o que é o amor, ele pode ser muitas coisas. O que nos diz então o cartaz? Aquele homem que procura aquela mulher, será que ele a ama? Mas ainda que possamos responder que sim, que a ama, o que diz tal afirmação do amor que ele tem por ela? Espalhou pela cidade, aquela cidade onde vem pela primeira vez, o retrato da mulher que ama e aquele apelo que só a ela se dirige. Amo-te, não fujas de mim, sempre te amarei. Porque é apenas a ela que o cartaz se dirige. Podia ter feito como os adolescentes e escrito o seu amor em letras de forma numa parede em branco da cidade velha. Na verdade foi isso que fez, é isso que o seu cartaz é, uma declaração de amor. Mas será amor? Sim, mais uma vez se responde, é amor. Mas o que é o amor?

Sabes o que me contaram ainda há pouco? Uma história incrível.
O que foi?
Falei com a colega de Évora, do lar de mulheres maltratadas. Aquilo são só histórias, nem me passava pela cabeça as coisas que ali acontecem. As mulheres são todas doidas. Refugiam-se ali mas estão mortinhas para voltar para os maridos.
Pode parecer-te estranho, mas o amor é estranho, tem dessas coisas, é liberdade e submissão ao mesmo tempo.
Virgínia olha-a, bem que gostava de saber o que se passara em Évora com Cecília, mas ela fechou-se em copas e nada dissera. Ando a ser fodida, a ser bem fodida, tinha ela dito, e não fosse o tom em que o disse, e poderia ter sido outra coisa bem diferente. Ando a ser fodida, podia ela ter tido, e ter ficado Virgínia preocupada, como aliás ficou, mas de uma forma bem diferente. Mas Cecília parece a mesma de sempre, determinada, convencida que o amor existe, mesmo que não saiba muito bem o que é; mas isto diz Virgínia e não Cecília.

A mulher nunca viu os cartazes, nem então nem depois, mas nem por um momento duvidou do amor dele, sabia muito bem que ele a amava, era desse amor que fugia, desse amor cego e doentio que a assustava de morte. E, no entanto, não se imaginava a viver sem aquele amor. Ele moveria céus e terra, é assim que ela diz a si mesma, moveria céus e terra para estar com ela, e algo assim não pode ser senão amor, não pode ser senão belo. E ela pensa nisso e chora. E ele pensa nisso e ri.

Joana voltou para casa. Joaquim sabe e está feliz, mas continua a vaguear pela cidade, não consegue voltar para casa. Lembra-se do vagabundo, daquele que não dizia uma palavra e sente-se como ele, sente que é ele, sente que o amor o sufoca, que o enche de felicidade ao mesmo tempo que o embrutece. Pensa em ligar ao Mário, pensa em ir ter com ele, os seus passos levam-no em direcção a casa, onde está Joana, onde ele quer estar. A Joana voltou. Foda-se.

Isso não é amor, é dependência!
Mas não é todo o amor uma dependência?

Chico olha Calado. Olha-o muitas vezes. Como se olha um mistério, como se olha alguém que se ama, porque o amor é sempre um mistério, poderia dizer-se, ou apenas, como se começou, dizer-se que Chico olha Calado, olha-o muitas vezes. Tirar daí conclusões, tecer considerações sobre esse facto, é já o narrador que o faz, tentando assim que o leitor o faça também e não se fique pelo óbvio, que, mais uma vez, como o faz com frequência, Chico olha para Calado. Interrogar-se-á se o ama? Ou dirá apenas que o ama? Porque ele ama-o, disso não tenho dúvidas e não as tenha o leitor, mas o que é o amor, essa dúvida primeira, para isso continuamos sem resposta. Talvez a resposta seja o próprio amor. O amor é pergunta que se responde a si mesma. Mas está outra vez o narrador a tropeçar nas palavras, o que sabe que ser próprio das palavras, e por isso continuará a fazê-lo.

Durante uma semana dormiu num carro abandonado, mesmo em frente à casa onde ela está. Deixou-se ficar por ali, olhando, olhando, esquecido da vida de todos os dias. Não tem comido, tem dormido muito pouco, tem vestida a mesma roupa com que chegou à cidade, com que saiu de casa. Não arreda pé dali. Foi essa a sua expressão quando lhe vieram dizer que se fosse embora. Não arredo pé. Só saio daqui com a minha mulher. É louco, dizem uns. É o amor, dizem outros. E uns e outros têm razão, que se enlouquece de amor, que o amor é louco, diga-se o que se disser.

O polícia fala com ele, pausadamente, com um olhar firme mas não isento de doçura. É capitão, razão pela qual uma das suas apaixonadas lhe chama carinhosamente, mas não sem malícia, capitão romance. Não tem grande simpatia pelos homens que batem nas mulheres, nem pelos homens que alguma forma se acham superiores às mulheres, mas tem um grande respeito pelo amor, um enorme respeito pelas mulheres. Queria amar todas as mulheres, queria perder-se no seu amor por elas. Mas ainda outra vez é o narrador que tece considerações, que tira conclusões, sem que o leitor tenha elementos para o fazer, o que pode parecer desonestidade, mas o leitor possui uma experiência de vida, a sua e a de outros, e entrando o narrador em dissertações poderá sempre o leitor segui-lo, concordando ou negando o que ele diz.

Quer que a sua mulher volte para si, é isso que me está a dizer?
Sim, preciso dela.
E fará tudo para que ela volte?
Sim, diz o homem, mas sabe o que o capitão dirá a seguir, já o disse antes, e ele sabe que não o fará, já o disse antes, já o fez antes. E chora. E chora. E acompanha o capitão. Mas ele sabe, sabe-o o capitão, sabemo-los todos, que mais tarde voltará ali, talvez ainda nesse dia, talvez no dia seguinte, um dia voltará.

Este polícia, de que agora se falou, o capitão, não é, como é óbvio, o mesmo polícia de que antes se falou, uns capítulos acima, escusa o narrador de dizer exactamente em qual deles, podendo o leitor, se quiser, procurar com facilidade onde afinal se escreveu sobre o primeiro polícia. Se este a que chamei Capitão Romance, por que assim o designou uma apaixonada, acredita no amor, já o outro, o João Oliveira, acha o amor uma enorme xaropada e é-lhe imune, por assim dizer. Mas isso não quer dizer que não se apaixone. Quisesse o narrador complicar as coisas e talvez dissesse, com a sua queda para as dissertações, que mais facilmente se apaixonaria João Oliveira que o Capitão Romance, porque enquanto o primeiro não acredita no amor o segundo é todo ele amor. Mas não leve o leitor a sério o narrador, raras vezes ele sabe o que diz, ainda que isso não queira dizer que ele não sabe do que fala.

Se está disposto a fazer tudo para que ela volte, então deixe que seja ela a decidir.
(…)
Volte para casa e espere por ela.
(…)
O amor não se impõe, diz para si mesmo. O amor não se impõe, cala. O amor, diz, sei lá o que é o amor.
E diz apenas, Venha comigo, e o outro segue-o, lentamente.

Não é por acaso que te chamam Gelo, diz João Oliveira, e o outro sorri.
Não, não é por acaso, nada acontece por acaso, mas também não tem nada a ver com o que estás a sugerir.
E que estou eu a sugerir?
Tu sabes bem o que estás a sugerir.

E assim se passou, sem esforço, de um polícia para outro, colocando-os em relação, polícias e homens, diferentes e iguais, todos eles em queda, mais livre do que pensam, menos livre do que julgam. E assim se termina o capítulo.

Cruzeiro Seixas

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