quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

Pôs-se bonita e morreu

 A frase de uma amiga desperta-me a vontade de escrever. É uma frase pequena, um verdadeiro micro conto, que se basta a si mesma, se a aceitarmos na sua brevidade e penetrarmos as portas que se abrem. A pensar em quem seria essa mulher e qual seria a sua história, escrevi três pequenos textos que me surgiram de repente. Fico à espera que a pequena e promissora frase me continue a seduzir e, quem sabe, escreva um romance com esse título.


PÔS-SE BONITA E MORREU

(Não há duas sem três)

 

Primeira tentativa

 

Vestiu-se de vermelho vivo,

ergueu-se em direção ao sol

num passo de dança e

caiu indefesa no chão.

 

Segunda tentativa

 

Pôs-se bonita e morreu, assim, sem mais menos,

ninguém compreendeu porquê.

Muitos se interrogaram porque morrera, assim,

de repente, sem mais nem menos,

mas ninguém se interrogou porque se

pusera bonita, porque se penteara

demoradamente, porque arranjara as sobrancelhas,

porque pintara os olhos e os lábios com extremo

cuidado. Esperaria um amante, esperaria a morte?

Todos sabemos que a morte é um amante exigente.

 

Terceira tentativa

 

A autópsia foi clara, a morte tivera causas naturais. O investigador encarregado do caso, pasmou de mistério e de paixão e a sombra funesta daquela morte nunca mais o abandonou. Guardou, na carteira, até ele próprio morrer, de velhice e de tédio, a fotografia daquela mulher meticulosamente arranjada, que a morte tornara ainda mais bela, e contemplava-a muitas vezes. “Pôs-se bonita e morreu.”, dizia sempre, em jeito de oração, e às vezes acrescentava, como num eco, “Já não queria saber do amor”.

Cruzeiro Seixas

 Ouvir.