A OLIVEIRA DO CENTRO COMERCIAL
Eu precisava de ajuda, precisava mesmo. Pela primeira vez
na minha longa vida precisava de ajuda e precisava dela com urgência, com
extrema urgência. Porém depressa descobri que não ia ser fácil. Para obter
ajuda é preciso pedir ajuda e para pedir ajuda é preciso primeiro que nos
ouçam, e eu não conseguia que me ouvissem ou, melhor dizendo, às vezes até
conseguia que me ouvissem, mas não conseguia que ouvissem o meu pedido. Estava
ali, atenta, à espera que alguém passasse, e quando tal acontecia, dizia com
suavidade, “Olá, desculpe incomodar, posso falar consigo só um bocadinho?”, mas
a maior parte da pessoas nem parecia ouvir, continuavam o seu caminho como se
nada fosse, sem qualquer sinal de terem ouvido o meu pedido. É verdade que
alguns olhavam à volta desconfiados, como se estivessem a ouvir, mas penso que
eram mesmo assim, desconfiados, e muitas vezes olhavam à sua volta como se
tivessem medo de ser surpreendidos por alguma coisa. Só as crianças pareciam
ouvir-me, mas não tinha a certeza, porque algumas paravam e chegavam a olhar e
até apontar para mim, no entanto os pais logo as puxavam sem cerimónia e levavam-nas
com eles. As mais pequenas pareciam ouvir-me melhor e entre elas mais as
meninas do que os meninos, vá-se lá saber porquê. Por isso passei a dar-lhes
mais atenção, mas nem por isso conseguia melhores resultados, porque ainda que
tivesse a certeza que algumas meninas me ouviam, não conseguia que parassem
para me ouvir, porque os adultos, e elas estavam sempre acompanhadas de
adultos, adultos que não me ouviam nem ouviam as meninas quando estas lhe
diziam que eu estava a falar com elas. A maior parte zangava-se com elas,
alguns riam-se, outros pareciam ficar intrigados, mas todos sem exceção, apenas
variando o pouco tempo que demorava, se apressaram a puxar pelas meninas e a
ir-se embora. Já estava tão desesperada que um dia, um homem parou mesmo à
minha frente, a olhar-me, e eu concentrei-me tanto e fiz tanta força que quase
gritei: “Olá, desculpe incomodar, posso falar consigo só um bocadinho?” Qual
não foi o meu espanto quando percebi que o homem me ouvira, era um homem velho,
pois abriu muito os olhos, resmungou entredentes alguma coisa que não percebi,
mas antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, já ele se afastava, resmungando
e deixando-me ali a falar sozinha. Bem que me apeteceu ir atrás dele, mas não
podia e por ali fiquei, dizendo a mim mesma que alguns adultos até me conseguiam
ouvir, talvez os mais velhos, talvez aqueles que ainda mantinham viva em si a
criança que um dia tinham sido. Tentei outras vezes, com os mais velhos, alguns
tão velhos que tinham grande dificuldade em andar, mas os resultados foram os
mesmos, ficar a falar sozinha, coisa que há muito estava habituada, mas que se
torna desagradável quando precisamos de ajuda e ninguém nos ouve. Então um dia,
quando estava quase a desistir, e já há muito que estava quase a desistir,
ainda que muito faltasse para eu deveras desistir, uma menina parou à minha
frente, de costas para mim. Estava sozinha. Não lhe conseguia ver o rosto mas
parecia perturbada. Dava murros e pontapés à sua volta, como se estivesse a
defender-se, mas não estava ali mais ninguém a não ser ela e eu. E depois ficou
quieta e pareceu soluçar, estava a chorar.
“Olá”, disse eu, quase num sussurro, como uma brisa suave
a agitar mansamente as folhas. A menina passou as mãos pela cara e deixou-se
ficar onde estava, mas eu sabia que me tinha ouvido, tinha sentido a sua
curiosidade e até o seu medo, ainda que este fosse bem menor que a sua
curiosidade. “Olá”, repeti ainda com maior suavidade, “estás bem?” E então a
menina voltou-se e olhou na minha direção e senti a sua curiosidade aumentar
ainda mais, de tal forma que o seu medo quase desapareceu. “Olá”, disse eu mais
uma vez, “estás a ouvir-me bem?”
“Sim”, disse a menina,” mas…”, e levantou muito as
sobrancelhas, mais uma do que outra, e eu senti de imediato que tinha de
explicar-me.
“Preciso de ajuda, preciso mesmo de ajuda e não tenho
ninguém a quem recorrer. É que eu não posso sair daqui, sou uma oliveira, tenho
muitos recursos mas nenhum que me possa ajudar na situação em que me encontro.
Preciso de ajuda e ainda que consiga falar com outras árvores e até com
animais, eles não me podem ajudar, tem de ser um humano, estou convencida, mas
os humanos não me ouvem e se não me ouvem como podem ajudar-me?”
A menina olhava para mim e sorria e o seu sorriso era
como a primeira luz do dia.
“Estou a ouvir-te”, disse a menina, os pequenos braços
cruzados sobre o peito. E por instantes eu não soube o que dizer-lhe, mas o
melhor era começar pelo princípio e foi o que fiz.
“ Eu sou uma oliveira, como tu bem sabes, e a minha
família, por assim dizer, é há muito tempo
conhecida dos humanos. Somos apreciadas pelo óleo que o homem aprendeu a
extrair dos nossos frutos e que utilizou como unguento, combustível e também na
alimentação. Por isso fomos veneradas desde a antiguidade por diversos povos.
Fomos sempre associadas à força e à vida e por esses facto respeitadas e
louvadas. Mas tu deves saber isto, tu andas na escola, não andas?”
A menina abanou a cabeça numa clara afirmativa, mas
continuou calada. Estava muito atenta e concentrada e senti sem qualquer sombra
de dúvida que queria que eu continuasse.
“Vim do Alqueva, com as outras árvores que aqui estão no
parque de estacionamento, fomos realojadas por altura da construção da
barragem, antes que morrêssemos todas afogadas.”
“Espera só um pouco, se faz favor”, interrompeu a menina,
colocando educadamente a mão no ar.
“Tu também vieste do Alentejo, não é?”, afirmei, e a
menina voltou a abanar a cabeça numa clara afirmativa. Esperei um pouco e como
ela nada mais disse, continuei.
“Vim para a cidade contra a minha vontade e contra a
minha natureza. Fui trazida do campo, onde sempre vivi e cumpria as minhas
funções, e colocada neste centro comercial para mero embelezamento do espaço e
recreio dos visitantes que mal me olham. A mim e às minhas companheiras, claro
está, que quando falo de mim falo afinal de todas, apesar de eu ser a mais
velha.”
A menina tinha de novo levantado o braço.
“ Eu sei que, ao contrário de nós, tu vieste porque
quiseste, não é? Os teus pais separaram-se e tu ficaste a viver com a tua mãe,
não é? Mas agora vives com o teu pai e...”
“Sim, é tudo verdade, mas conta lá porque precisas de
ajuda, estou curiosa. E sobretudo como é que eu te posso ajudar”, interrompeu a
menina, desta vez sem levantar a mão.
“Tal comos humanos, ainda que de forma diferente, também
nós estamos em rede...”, interrompi-me ao ver a menina sorrir mas senti que não
era nada importante e continuei, “ou seja, dependemos muito umas das outras,
pois estamos de alguma forma ligadas como se fossemos uma só oliveira. Não te consigo
explicar melhor, porque com os humanos é muito diferente, mas estamos todas
ligadas umas às outras e perdida essa ligação não conseguimos sobreviver
durante muito tempo, pois como que uma grande tristeza toma conta de nós e já
não queremos viver. Sinto que me estás a perceber, apesar das nossas
diferenças, e isso é a primeira coisa que eu queria, que me acreditasses e que
confiasses em mim.”
“Mas como te posso ajudar?”, interrompeu-me a menina, que
estava a ficar impaciente.
“As oliveiras estão sempre ligadas em rede a partir da
oliveira mais velha e por aí abaixo, como uma pirâmide, até às oliveiras mais
novas, e quando essa ligação se perde, por exemplo com a morte de uma de nós,
que até as mais velhas de nós morrem, essa rede restabelece-se por si mesma, e
tudo volta ao normal, ainda que aqui e ali já tenham existido casos em que
demorou mais tempo para que a rede se reconstruísse, mas neste caso parece ser
diferente, talvez porque fomos mudadas de lugar e isso não é frequente, não
sei. Só uma oliveira muito antiga, uma oliveira de topo da pirâmide poderá
restaurar a ligação e eu, como é evidente, não consigo contactá-la e não tenho
meios de a procurar.”
Estava a sentir-me um pouco desanimada e não queria que a
menina percebesse, mas também eu estava a pensar como poderia ela ajudar-me,
tão pequenina e frágil, por isso calei-me um pouco a pensar o que devia dizer,
mas a menina já ia um passo à minha frente.
“Olha, estou aqui a ver que perto da cidade de Tavira, no
aldeamento turístico de Pedras d’el Rei existe uma oliveira que tem mais de
2000 anos e julga-se que foram os fenícios que a teriam trazido da Mesopotâmia.
É contemporânea da civilização romana e para abraçar o seu tronco são
necessários cinco homens.” Fez uma pequena pausa dramática e concluiu, antes de
eu dizer fosse o que fosse. “Esta oliveira pode resolver a tua situação! O que
é preciso fazer?”
A menina parecia muito admirada por poder contribuir para
uma solução e eu ainda estava ainda mais admirada, que se pode ser muito velha,
como eu sou, e ainda nos surpreendermos. A verdade é que eu não sabia bem o que
era preciso fazer e não estava habituada a tomar decisões. A minha recente
autonomia, que me levara a pedir ajuda, crescera na medida em que a minha
ligação diminuíra e eu ficara cada vez mais isolada até ficar completamente
sozinha pela primeira vez. Olhei as árvores mais novas, incrustada nos muros do
parque de estacionamentos que formavam os vários compartimentos que acolhiam os
muitos automóveis, e não as senti, era como se não existissem, ou como eu não
existisse. Nunca me tinha sentido assim e pela primeira na minha longa
existência senti-me triste. A menina estava ainda a olhar para mim e esperava
uma resposta. Tentei acalmar-me e comecei a falar muito devagar, à espera de saber
afinal a resposta àquela pergunta, como sempre soubera até então a resposta a
todas as perguntas a que precisava de responder.
“O importante é que vás até à oliveira, ela saberá a que
vais e saberá obter a informação de que precisa para refazer a rede e voltarmos
a ligarmo-nos todas umas às outras.” Acabei de dizê-lo e soube de imediato que
essa era a solução, mas senti a perturbação da menina e percebi que nada estava
ainda resolvido.
“Eu não posso fazer isso sozinha, preciso de contar ao
meu pai e, ainda que ele acredite que não é um capricho meu, está zangado
comigo e não sei se corresponderá ao meu pedido.”
Estive para lhe dizer alguma coisa mas fiquei calada, à
espera que ela tomasse uma decisão, e não tardou muito até que me disse: “Vou
contar ao meu pai, ele vai perceber que precisas de ajuda e não te vai dizer
que não! E não me vai dizer a mim que não, tenho a certeza, só preciso de lhe
explicar tudo muito bem explicado.” Já se ia embora, mas parou e terminou o que
tinha para me dizer: “Disse ao meu pai que o esperava no carro. Insisti tanto
que ele disse que sim e me deu as chaves. Não o vi passar mas estive distraída,
até pode já ter ido ao carro e não me encontrou. Vou até lá e depois
telefono-lhe. Espera por mim aqui!” E foi-se embora com o pedido absurdo de que
eu esperasse ali, como se eu pudesse ir a algum lugar. Esperei e pouco tempo
depois a menina voltou com o pai. Fiquei muita surpreendida quando percebi que
o pai da menina conseguia ouvir-me, ainda que fizesse de conta que não e perguntasse
sempre á menina o que eu lhe tinha dito. Fosse como fosse o que é certo é que
ele disse que iria procurar a oliveira e levaria a filha consigo.
Disse-lhes que agradecia muito, que eram muito
simpáticos, e eles sorriram os dois o mesmo sorriso feliz e foram-se embora de
mãos-dadas. Nesse mesmo dia, depois do almoço, a menina e o pai foram ao
aldeamento das Pedras d'el Rei, junto a Tavira, à procura da oliveira milenar . Estacionaram junto à
receção do aldeamento, porque não sabiam ao certo onde estava a oliveira, e o
pai disse que ia perguntar a alguém, mas a verdade é que não se via quem quer
que fosse. Ao lado do carro, um gato malhado, sem coleira, chamou a atenção da
menina, que se baixou para lhe fazer festas. Era amarelo e cinzento e castanho e
branco, numa profusa e invulgar mistura de cores. Quando o pai disse para a
menina ficar ali que ele ia ver se encontrava alguém, logo o gato se afastou
alguns metros, voltou-se para trás, e começou a miar, como se estivesse a
chamá-la. A menina aproximou-se do gato e este voltou a fazer o mesmo, e ela
não teve qualquer dúvida que o gato os levaria à arvore. Chamou o pai e
disse-lhe que deviam seguir o gato. O pai olhou-a surpreendido e deu-lhe a mão,
o que o gato só parecia esperar para se pôr em movimento, parando aqui e ali só
para confirmar que eles ainda estavam a segui-lo. A oliveira ficava logo ali,
duas ruas acima, e tinha uma placa, não deixando qualquer dúvida sobre a sua
identidade. Parecia a soma de várias oliveiras e o tronco era larguíssimo, oco
e torturado. A menina pegou o gato ao colo e deu-lhe mimos, enquanto o pai fotografava a oliveira e falava dela com
respeito e admiração. A menina continuou com o gato ao colo e passado um bocado
o pai aproximou-se e fez-lhe também
festas. Não sei como, mas logo tiveram a certeza de que estava tudo bem, que
tudo tinha acontecido como eu tinha previsto e que eu e as oliveiras do parque
estacionamento estávamos de novo em rede, como se fossemos só uma.
Esqueci-me de dizer à menina e ao seu pai que, muito
provavelmente, se tudo corresse bem, eu deixaria de ser ouvida por eles, mas
sinto que eles souberam isso naquele momento em que tudo voltou ao normal e não
me levaram a mal por eu não falado com eles quando me vieram cumprimentar e
perguntar se estava tudo bem. Estavam de mãos dadas e o mesmo sorriso feliz
iluminava-lhes o rosto.