A OLIVEIRA DO CENTRO COMERCIAL
Luís Ene
No parque de estacionamento ao ar livre do centro comercial, situado na
entrada oeste da cidade, a duzentos metros da prisão regional e do centro de
saúde mental, existe um olival com cerca de duas dúzias de oliveiras, que ali
chegaram vindas do Alqueva, no Alentejo, face à mais que certa inundação dos
terrenos onde estavam, devido à construção da barragem com o mesmo nome. Mais
de metade dessas oliveiras, as mais novas e mais franzinas, estão espalhadas
pelo parque, em pequenos compartimentos individuais, como se fossem flores em
vasos, incrustados nos muros que dividem o parque, como linhas paralelas num
rectângulo distendido, criando desta forma várias zonas de estacionamento. Num
dos lados desse rectângulo, oposto à estrada e ao longo de uma das paredes do
centro comercial, um longo e estreito canteiro acolhe as oliveiras maiores e
mais antigas. Não são árvores muito grandes, parecem até atarracadas, ainda que
pela largura torturada dos troncos devam ser sem dúvida árvores centenárias. É
junto a uma dessa árvores, a que está mais perto da entrada do centro, mesmo em
frente à passadeira dos peões, que podemos ver uma menina, de uns nove ou dez
anos de idade, não deve ter mais, em nada diferente de uma qualquer outra
menina da mesma idade, pelo menos para uma oliveira, que as oliveiras, mesmo as
centenárias, sabem muito pouco ou quase nada sobre meninas com nove ou dez anos
de idade e todas lhes parecem mais ou menos iguais: têm longos cabelos, são
pequenas e muitas vezes usam saias.
Na verdade, as oliveiras distinguem com muita dificuldade as meninas dos
meninos e até as meninas e os meninos dos homens e das mulheres, porque as
oliveiras, mesmo as mais sábias, sabem muito pouco ou quase nada sobre homens e
mulheres, apesar de com eles se relacionaram há muito tempo. É claro que a
menina à frente da oliveira não sabia nada disso e nem sequer dava conta da
oliveira atrás de si. Estava aborrecida, muito aborrecida, e zangada, muito
zangada, não sabia bem porquê nem com quem, mas estava mesmo muito aborrecida e
muito zangada, e quando deu por uma garrafa de plástico vazia no chão, mesmo
ali à sua esquerda, não hesitou, nem por um momento; virou-se na sua direcção,
girando sobre si mesma no sentido dos ponteiros do relógio e com o pé direito
pontapeou a garrafa que levantou voo em linha recta, acertando em cheio no
tronco da oliveira com um crepitar roufenho.
A menina nem gostava de futebol e a garrafa nada tinha de bola e ela até estava
sempre preocupada com o lixo nas ruas e com o facto de os portugueses serem
muito porcos e deitarem muito lixo para o chão, mas deu-lhe para ali, é que
deu-lhe mesmo para ali e não se estranhe que o tenha feito, que o aborrecimento
e a ira leva até os adultos mais sábios a fazer os maiores disparates. O que era
de estranhar, e a menina estranhou, foi a voz que se fez ouvir quase ao mesmo
tempo e que, entre o ríspido e o divertido, lhe perguntou o que se passava ou,
nas exactas palavras que a menina ouviu: “ Mas o que é que se passa?”
A menina olhou à volta e não viu ninguém. Quem é que estava a falar?
Talvez tivesse sido um estranho eco da garrafa de plástico a bater no tronco de
árvore! Avançou à árvore e rodeou a oliveira com cuidado, não estivesse alguém
atrás do tronco, que era largo e bem podia esconder um adulto, ou até duas ou
três crianças, todavia não estava lá ninguém. Voltou para a frente da oliveira,
apanhou a garrafa do chão para a deitar no lixo e deu um salto que nem um
macaco quando de novo ouviu a voz que de novo dizia:
“Mas o que é que se passa?”
“O que é que se passa? O que é que se passa?”, repetiu a menina, entre o
grito e o sussurro, enquanto olhava de novo à sua volta.
“ O que é que se passa? Sim! O que é que se passa? O que é que se passa
para me atirares com lixo? Senti muito bem a pancada e sei que foste tu pois
não está aqui mais ninguém.”
A voz vinha da oliveira em frente à menina, não podia vir de outro lado,
e parecia um sussurro longo, como se fosse produzido pelo vento a repercutir-se
nas pequenas e alongadas folhas da árvore.
A menina ficou calada, um olho na entrada do centro comercial e outro na
árvore. Que palermice, as árvores não falam, onde já se viu uma coisa assim?
Isto pensou a menina e se assim o pensou assim o disse, dirigindo-se à oliveira
e olhando-a no centro da copa, onde sem dúvida estariam os olhos se ela os
tivesse; ou seria no tronco, também podia ser, e assim pensando a menina fixou
os olhos no tronco da oliveira, que lhe dava mais jeito, mas em nenhum local
conseguiu ver ou pressentir quaisquer olhos ou pelo menos uma boca.
“Não me estás a ouvir?”, disse a voz. “Que interessa se tenho boca ou
não?”
A menina olhou de novo a árvore, desconfiada, mas desta vez respondeu:
“Estou a ouvir-te perfeitamente. O que é que se passa?”
“Eu é que te pergunto o que é que se passa! Porque é que me atingiste com
a garrafa de plástico?”
“Não te queria acertar, apeteceu-me apenas dar um pontapé na garrafa.”
“Mas porquê? Não compreendo.”
“Porque estou aborrecida. Porque estou zangada.”
“O que é que queres dizer com isso? Não compreendo.”
A menina calou-se, passou a mão direita várias vezes pelo cabelo longo e
só então falou.
“Tu nunca ficas aborrecida, tu nunca te zangas?”
“As árvores são muito diferentes dos humanos, acredito que pensamos e
sentimos como vocês, nisso somos iguais, mas pensamos e sentimos de modo muito
diferente. Já nos conhecemos há muito tempo, é verdade, a nossa ligação é
antiga e íntima, mas arrisco-me a dizer que conhecemos muito pouco dos humanos,
conhecemos mesmo muito pouco, talvez porque somos muito diferentes, talvez
porque a comunicação entre nós nunca é fácil.”
A menina sentou-se no chão, à frente da oliveira, olhou a garrafa que
ainda tinha na mão, pousou-a a seu lado e, olhando para a oliveira, num ponto
do tronco à altura do seu olhar, pediu desculpas por a ter incomodado. Nada se
alterou na árvore, mas de novo a menina ouviu a voz.
“Estar aborrecida e zangada não é agradável, é isso? Não é como sentir o
vento a soprar-nos de leve as folhas, pois não? É mais como quando as nossas
raízes não encontram água por mais que se esforcem, é isso?” A voz pareceu ir calar-se,
mas continuou ainda, após uma curta pausa. “É como não podarem as nossas folhas
nem colherem as nossas azeitonas, é isso? É como nos sentimos quando não cuidam
de nós, quando não se preocupam connosco?”
“Estar aborrecida e zangada não é mesmo nada agradável, dá vontade de ir
para outro lugar ou de ali nunca ter chegado.”
“Sobre isso nada sei, não poderia sair daqui, ainda que quisesse, e não
estou muito certa do que é querer. Mas tu podes ir de um lado para o outro e
parece que tens querer. Não queres vir mais para o pé de mim? Senta-te debaixo
da minha copa, encostada ao meu tronco, lembro-me que isso às vezes alguns
humanos o fizeram, em dias mais quentes, ou apenas para descansar. As mulheres
novas faziam-no muito, é verdade.”
A menina levantou-se, deu três pequenos passos em frente e sentou-se no
chão, encostada ao tronco, que era rugoso e a incomodou um pouco a princípio.
Mexeu-se um pouco, ajustou-se, aninhou-se e pareceu ficar satisfeita, pelo
menos foi o que a oliveira sentiu, pois embora soubesse pouco sobre humanos sabia
muito sobre sentir.
“Mas tu não estiveste sempre aqui, pois não?”, disse a menina,
voltando-se um pouco para a árvore, habituada que estava a olhar na direcção de
quem falava.
“Não precisas olhar para mim”, disse a oliveira, e a voz soava divertida,
ou pelo menos foi o que a menina sentiu e pensou, pois pouco a pouco tinha-se
acostumado àquela voz e já quase lhe adivinhava emoções. “Na verdade, até
podias fechar os olhos” continuou, “e a boca, e mesmo assim poderíamos
continuar a conversar.” A menina fechou os olhos, pensou agora a pergunta, os
lábios cerrados, e qual não foi o seu espanto quando ouviu a árvore
responder-lhe de imediato.
“Já tinha ouvido, não sou surda. Eu estou sempre aqui, ligada ao solo e
ao sol e ao vento e aos pássaros e também aos humanos que têm sempre cuidado de
mim. Já estive noutro lugar, mas estive sempre aqui e sempre serei quem sou
onde quer que esteja. Isto também deve acontecer contigo, ainda que de outra
forma, pois vocês andam sempre de um lado para o outro. Tu não estás também
ligada a tudo o que te é essencial?”
A menina continuava de olhos fechados e estava a sentir-se sonolenta.
Pensou um pouco e respondeu sem falar: “Acho que estou ligada aos meu pais e
aos meus avós, aos meus amigos e ao lugar onde vivo, mas é muito diferente
porque tudo muda e tudo pode ser muito assustador. Às vezes tenho medo, acho
que é medo, de perder o que tenho e às vezes tenho dificuldade em perceber o que
tenho, o que posso esperar, não sei, e muitas vezes fico aborrecida e zangada,
faço birra e o meu pai diz que não me compreende e fica zangado comigo. Tal
como tu, eu também vim do Alentejo para o Algarve, foi uma decisão que tomei, e
os meus pais concordaram. Eles estão separados, vivem longe um do outro, e eu
decidi vir viver com o meu pai. Há seis anos que vivia com a minha mãe e...”
“O teu pai também faz birras?”, interrompeu a oliveira, que e até então
só falara na sua vez.
A menina abriu um pouco os olhos, virou a cabeça para a oliveira com
esforço, era mais fácil assim, e ficou a pensar se teria havido algum troça na
voz. A oliveira voltou a perguntar: “E o teu pai também faz birras?”, e o tom,
se algum tom havia, era de pura curiosidade. A menina recostou-se de novo e
voltou a fechar os olhos. Uma brisa suave agitava agora de leve as folhas da
oliveira e ela ficou a ouvir por momentos aquela música de um quase silêncio.
“E o teu pai também faz birras?”, insistiu a árvore. “É que somos muito
mais iguais do que pensamos, ainda que talvez muito mais nós do que vocês. Eu
não sou muito diferente das outras oliveiras e tu de certeza que não és muito
diferente do teu pai; também ele se deve aborrecer e zangar, porque muitas
coisas o assustam e de muitas coisas sente medo, medo de te perder, medo de não
te entender, medo de não te conseguir agradar, medo de não te conseguir fazer
feliz, medo de te magoar, medo, medo, medo... Mas ele gosta muito de ti, gosta
mesmo muito de ti e tu tens de confiar nele e no seu amor por ti...”
Os carros continuavam a entrar e a sair do parque amiúde, mas a menina
não os ouvia, aninhada no tronco da oliveira, quase invisível para quem
passava. O tufo florido que rodeava o tronco da oliveira, reforçando a sua
natureza ornamental, reforçava também a quase invisibilidade da menina
adormecida e só quem olhasse de perto a poderia distinguir.
Um homem parou à frente da árvore, como se ali tivesse materializado, e
por instantes ficou apenas a olhar a árvore e a menina e a menina e a árvore,
os olhos muito abertos de espanto de alegria.
Depois avançou com cuidado em direcção à menina e passou a mão pelos seus
longos cabelos. A menina abriu um pouco os olhos e sorriu.
O pai abraçou-a, levantou-a do chão e apertou-a contra si, e assim
ficaram durante muito tempo, abraçados um ao outro, como se ali fossem ficar
para sempre.
“Pai, a árvore falou comigo!”, disse a menina e o pai perguntou-lhe: “E o
que te disse?” Continuavam abraçados e tinham fechado os dois os olhos.
“Disse-me que não somos muito diferentes, eu e tu, que gostamos muito um
do outro e que muitas vezes temos medo e às vezes fazemos birras.” A menina
falou muito depressa e no final abraçou o pai ainda com mais força. O pai
continuou a abraçar a filha, e passado algum tempo colocou-a no chão,
agachou-se à sua frente, olhou-a nos olhos, depois olhou para a oliveira e
disse: “Obrigada, muito obrigada. És uma árvore muito sábia.”
A menina abraçou de novo o pai e depois foram-se embora, sem olhar para
trás, mas quando estavam quase a deixar de ver a oliveira, voltaram-se os dois
para trás ao mesmo tempo e acenaram-lhe um prolongado adeus.
*
Quando a menina despertou o pai estava sentada na cama a olhar para um
ponto situado entre os dois, ligeiramente à sua direita. A menina soergueu-se e
olhou na mesma direcção. Em cima da cama estava um gatinho malhado, numa
mistura derramada de branco, preto amarelo, cinzento e castanho. A menina
sorriu e disse olá, primeiro ao gato e depois ao pai. O pai sorriu, deu-lhe um
beijo, e saiu do quarto sem dizer nada.
Era o mesmo gato que a menina tinha visto com o pai no centro comercial e
que ele se tinha recusado a trazer para casa. Na verdade, recusar ele não tinha
recusado, tinha era dito que ia pensar no caso, e foi então que ela fugiu, logo
que apanhou o pai distraído.
O gato miou um miado fino e a menina olhou-o ainda com mais atenção. Era
tão fofo. Somos todos iguais, somos todos iguais, pensou ainda ao mesmo tempo
que agarrava o gatinho e o enchia de beijos. Ergueu o gatinho à frente da sua
cara e disse-lhe num quase sussurro, soprando-lhe ao mesmo tempo no focinhito
preto: “Precisamos todos de carinho, não é verdade, Oli? Precisamos todos de
alguém que cuide de nós!”