A
OLIVEIRA DO CENTRO COMERCIAL
Luís
Ene
Ao fim-de-semana
costumo ir com o meu pai ao supermercado que fica no centro comercial
junto à entrada oeste da cidade. Os meus pais separaram-se e eu
fiquei inicialmente a viver com a minha mãe, no entanto, alguns anos
depois, decidi viver com o meu pai e os dois concordaram. A minha mãe
voltou a casar e o meu pai não, mas isto não vem ao caso, é outra
história completamente diferente.
No
parque de estacionamento ao ar livre existem várias oliveiras que o
meu pai me garantiu, quando ali fomos pela primeira vez, terem vindo
do Alqueva, no Alentejo, por ocasião da construção da barragem. Na
altura não liguei muito, eram apenas árvores, e o meu pai, apesar
de estar muitas vezes mal-humorado , também gosta de dizer piadas,
algumas, verdade seja dita, sem piada absolutamente nenhuma.
Olhei
as oliveiras espalhadas pelo parque, aprisionadas em pequenos
compartimentos murados e pensei se ele não estaria a fazer uma
comparação mais ampla do que a minha simples origem comum com as
árvores. Eu tinha deixado o Alentejo para vir para o Algarve, mas a
decisão tinha sido minha, ao contrário das árvores, e sorri, pois
por momentos pensei nas árvores a deslocarem-se para o Algarve em
carros próprios ou mesmo de autocarro e nem digo a pé porque é
muito longe. Às vezes dou por mim a imaginar coisas impossíveis,
completamente estapafúrdias, como o meu pai gosta de dizer, mas isso
é outra história.
Ao
longo da entrada do parque de estacionamento, num largo canteiro que
acompanha uma das paredes do centro comercial e que conduz à entrada
principal, alinhavam-se várias oliveiras, maiores e com melhor
aspeto, pareceu-me, do que as outras que se misturavam com os carros
estacionados. Tinham a folhagem mais compacta e brilhante e pareciam
ter umas saias vestidas, e sorri outra vez, que afinal não eram mais
do que uns tufos floridos que lhes rodeavam os troncos curtos, ideia
decorativa que eu não estava certa que as oliveiras apreciassem, mas
que era sem dúvida divertida.
A oliveira é uma
planta de folha persistente, o que significa que nunca perde
totalmente a sua folha; em vez disso, as folhas mais velhas vão
caindo ao longo do ano. As folhas, pequenas e luzidias, são verde
acinzentadas na frente e de um cinzento prateado e brilhante por
trás. Na parte de trás têm pequenos pelos, que protegem a árvore
da desidratação recapturando a água e conduzindo-a de novo para a
folha. Não pensem que sabia isto; procurei na Internet informação
sobre as oliveiras e esta foi uma das que obtive e pude até
confirmá-la observando as folhas das oliveiras do parque de
estacionamento do centro comercial. A verdade é que passei a
olhá-las com mais atenção, especialmente a que ficava mais perto
da entrada, mesmo ao lado da passadeira.
O
meu pai nem sempre deixava o carro no estacionamento exterior, embora
o preferisse, e por isso muitas vezes eu só via as oliveiras da
estrada, quando nos dirigíamos para o parque subterrâneo, ou de
relance, por uma das grandes vidraças, ao subir as escadas rolantes.
Num dos dias em que o meu pai tinha deixado o carro no parque
exterior e estávamos quase a entrar, mesmo ao lado daquela primeira
oliveira, ele disse que se esquecera de não sei do quê no carro e
pediu-me para esperar. Aproximei-me da oliveira, olhei-a com
redobrada atenção e disfarçada reverência e disse-lhe: “Olá,
como estás?”
Não
sei porque é que o fiz! Nunca tinha feito uma coisa assim. Onde já
se viu falar com uma árvore? Mas por mais estapafúrdio que fosse, a
oliveira respondeu-me, numa voz que mais parecia um murmúrio, como
uma brisa suave que lhe agitasse de mansinho as folhas estreitas e
pontiagudas.
“Vim
para a cidade contra a minha vontade e contra a minha natureza. Fui
trazida do campo, onde sempre vivi e cumpria as minhas funções, e
colocada num centro comercial para mero embelezamento do espaço e
recreio dos visitantes que me mal me olham.”
A
voz parecia triste, pelo menos foi o que eu pensei, a própria
oliveira parecia triste, e o tom era claramente de lamento, mas a voz
era sussurada e, talvez por isso, a emoção revelava-se atenuada.
Pensei se devia dizer alguma coisa, mas a oliveira parecia falar para
si mesma.
“Não
sei ao certo a minha idade, mas algumas das minhas irmãs têm hoje
mais de dois mil e quinhentos anos. Uma oliveira, perto da cidade de
Tavira, no aldeamento turístico de Pedras d’el Rei tem mais de
2000 anos e julga-se que foram os fenícios que a teriam trazido da
Mesopotâmia. É contemporânea da civilização romana e para
abraçar o seu tronco são necessários cinco homens.”
A
voz deixou de se ouvir por uns instantes, mas logo recomeçou, e o
tom era agora manifestamente de orgulho, ainda que, tal como antes,
surgisse sempre mitigado.
“
Eu vim do Alqueva, com outras árvores realojadas por altura da
construção da barragem. Somos há muito apreciadas pelo óleo que o
homem aprendeu a extrair dos nossos frutos e que utilizou como
ungento, combustível e também na alimentação. Por isso fomos
veneradas desde a antiguidade por diversos povos. Fomos sempre
associadas à força e à vida e por esses facto respeitadas e
louvadas, mas aqui, onde agora estou, sou apenas ignorada.”
E
de novo parou e de novo recomeçou.
“O
maior olival do mundo é o da empresa Sovena, produtora de azeite do
grupo português Mello. São 9.700 hectares. A sede do grupo é em
Ferreira do Alentejo, Beja, Alentejo e seu mais famosos azeites são
Andorinha e Oliveira da Serra, de Portugal; Soleada - Espanha;
Olivari - Tunísia. A maior parte de seus olivais são intensivos,
com 1600 oliveiras por hectare.”
Fiquei
admirada com esta última fala, cheia de informações tão
detalhadas que me perguntei como poderia ela saber tudo aquilo e
senti uma vontade urgente de a interpelar. Acho que ia mesmo a abrir
a boca para fazer a pergunta quando de repente me senti puxada por
um braço e ouvi a voz do meu pai a perguntar-me se estava outra vez
com a cabeça na lua. Disse-lhe para esperar, interroguei a árvore
com uma mirada firme, mas percebi de imediato que toda a magia tinha
desaparecido.
Apanhei
uma azeitona do chão, das várias que ali estavam caídas e
estendi-a ao meu pai que a olhou meio desconfiado. Ele viveu em
cidades desde que nasceu e, embora seja sensível ao mistério e à
atracção da natureza, diz sempre que não percebe nada das coisas
do campo.
Cheirou
a azeitona, esmagou-a um pouco e cheirou-a de novo, entre o surpreso
e o sorridente. “Cheira a azeite”, disse, “é um aroma muito
ténue mas cheira ao azeite extra-virgem, que resulta da primeira
pressão a frio das azeitonas, assim como se fosse um sumo suave.”
Cheirei também a azeitona, mas nada disse e limitei-me a sorrir
também.
“Se
quiseres podemos comprar azeite daquele melhor”, disse ele e soltou
uma pequena gargalhada. O meu pai gosta de comer torradas com azeite,
diz que é à espanhola, e eu habituei-me também, embora prefira de
longe pão com um doce qualquer. Compramos sempre um azeite melhor e
mais caro, apenas para temperar e colocar no pão.
Não
lhe contei que a oliveira tinha falado comigo, no entanto contei-lhe
o que ela me tinha dito, como se fosse alguma coisa que eu tivesse
lido ou ouvido. Fiz-lhe também algumas perguntas e pareceu-me que
ele ficou contente por me ver interessada por alguma coisa, mesmo que
fossem apenas oliveiras. Acho que andava preocupado comigo e se
interrogava também sobre se estaria a relacionar-se comigo da melhor
maneira e a conversa pareceu amenizar por momentos essas
preocupações.
Perguntei-lhe
se as oliveiras do centro comercial tinham mesmo vindo do Alqueva e
se para lá voltariam, e ele respondeu-me que lhe tinham dito que
sim, que num dado momento foram redistribuídas porque as terras em
que se encontravam iam ser inundadas, o que veio mesmo a acontecer.
Disse-me ainda que achava que estavam de novo a desenvolver o olival
naquela região, mas que agora usavam uma espécie de oliveira
diferente das anteriores, mais pequena e jovem, que produzia azeitona
de forma super-intensiva; se com melhor ou pior qualidade não sabia,
mas achava que só podia ser pior.
O
meu pai é mesmo assim, sempre disposto a acreditar em tudo e ao
mesmo tempo sempre disposto a duvidar de tudo. Se lhe tivesse contado
que a oliveira do centro comercial, a primeira a contar da entrada
principal do centro, tinha falado comigo, ele estaria sem dúvida
disposto a acreditar, mas também estou certa que logo duvidaria e
diria certamente qualquer coisa do tipo como é que oliveira podia
falar se não tinha boca ou talvez me perguntasse desde quando é que
eu falava oliveirês. Ou ainda, talvez me tivesse piscado o olho e
convidado a contar a história da oliveira do centro comercial.
Quando
tinha nove anos escrevi várias pequenas histórias que o meu pai se
encarregou de fazer publicar numa revista e muitas vezes disse a quem
o quis ouvir que eu escrevia muito melhor do que ele. Acho que ele
gostaria que eu voltasse a escrever mas nunca mais o fiz. Seja como
for, não lhe contei que tinha ouvido a oliveira falar.
Algum
tempo depois o meu pai levou-me ao aldeamento das Pedras d'el Rei,
junto a Tavira. Disse que íamos à procura da tal oliveira milenar
de que eu lhe tinha falado, e eu concordei. Estacionámos junto à
recepção do aldeamento e o meu pai perguntou a um homem que por ali
passava se conhecia a oliveira, ao que o outro respondeu que sim, que
era logo ali, duas ruas acima, que tinha uma placa, que era muito
fácil de encontrar.
Ao
lado do carro, um gato malhado, sem coleira, chamou-me a atenção.
Era amarelo e cinzento e castanho e branco, numa profusa e invulgar
mistura de cores. Era muito manso, fiz-lhe duas ou três festas e ele
seguiu-me como se fosse um cão, quando fui atrás do meu pai, que
queria chegar à árvore antes que se fizesse noite e já ia lá à
frente. Era Dezembro, o dia mais curto do ano estava próximo e já
passava um bom bocado das cinco da tarde. Curiosamente, o gato
seguiu-me até à oliveira, como se também estivesse interessado em
vê-la, mas quando lá chegámos não lhe ligou nenhuma. O meu pai
ainda o colocou em cima da oliveira para lhe tirar uma fotografia,
mas o gato esquivou-se sem cerimónias.
A
oliveira milenar parecia a soma de várias oliveiras e o tronco era
larguíssimo, oco e torturado. Peguei o gato ao colo e dei-lhe mimos,
enquanto o meu pai fotografava a oliveira e falava dela com respeito
e admiração. Continuei com o gato ao colo e passado um bocado o meu
pai aproximou-se e fez-lhe também festas. Ainda pensei que me ia
perguntar porque me interessava tão pouco pela oliveira, dizer-me
que tinha vindo ali de propósito para que eu a visse, e outras
coisas assim, porém ele ficou calado, a fazer festas ao gato e a
olhar a velha oliveira.
O
meu pai consegue à vezes ser um grande chato, mas gosta muito de mim
e tenta agradar-me sempre que pode. É claro que isso nem sempre lhe
é fácil e muitas vezes eu também não ajudo nem um bocadinho.