AQUI ESTOU EU (A SUL) A COMER
PEIXE GRELHADO
Procuro a rude serenidade que me permita viver o tumulto do ser. Procuro as raízes ensombradas que perseguem sem descanso o negrume da luz. Procuro um centro a partir do qual possa desenhar um círculo mais que perfeito. Procuro o silêncio necessário para despertar as palavras que dormem no branco da folha. Procuro a distância necessária para me aproximar de mim próprio e do mundo.
Tavira, 28 de Junho de 2016
Aqui estou eu (a sul) a comer
peixe grelhado, dizia a legenda, e a fotografia mostrava um homem de meia idade
(com mais de sessenta anos), magro e com fartas barbas grisalhas, de óculos
escuros, tronco nu, calções e chinelas. Seria um poeta? Um filósofo?
Estava num pátio e à sua direita,
atrás dele, avistava-se um grelhador. Não me lembro de muito mais, a frase
intrigou-me mais do que a fotografia, se assim o posso dizer, nem sei bem
porquê.
Aqui estou eu a comer peixe
grelhado, uma frase banal, mas a que a menção “a sul”, entre parênteses, me
pareceu conferir-lhe um indefinível mistério. Depois, claro, há a fotografia,
que reflete e/ou aumenta o mistério. O homem, vou chamá-lo Virgílio (não me
perguntem porquê), não está a comer peixe grelhado nem se vê qualquer peixe à
vista. Vê-se o grelhador, é verdade, mas até parece apagado. E Virgílio está
só. Aqui estou eu, diz ele, como se estivesse admirado de estar ali (a sul).
Estará reformado e procurou o sul, ou estará apenas de férias? E onde será
aqui? Talvez o melhor seja perguntar-lhe.
“Virgílio, onde é aqui?”,
pergunto, e Virgílio olha-me em silêncio, como a avaliar se vale a pena
responder-me. Insisto. “Virgílio, onde é aqui?”, mas ele parece desinteressado
e volta-se para o grelhador atrás dele.
Aqui é sempre onde um homem está,
ouço, mas sou eu que o penso, e não Virgílio, ainda que acredite que ele o
poderia dizer, ou até escrevê-lo.
Aqui é sempre
onde se está,
aqui e agora,
diz Virgílio, enquanto observa o
grelhador. Diz e repete, que não lhe apetece agora sair de onde está, e não tem
consigo nada com que escreva, que papel até arranjava, bastava procurar na
carteira que está no bolso esquerdo das calças, o da frente, claro. Talvez seja
o princípio de um poema ou, quem sabe, de uma pequena história. Aqui é sempre
onde se está, repete, aqui e agora, e acrescenta, mas ele não estava ali e
muito menos agora. Volta a olhar para o grelhador. Está quase, diz e repete,
está quase.
Ele está ali e vejo-o cada vez
melhor. Mas onde é o ali que Virgílio chama aqui? A sul, afirmava ele, e eu
digo-o no Algarve, não sei bem onde, talvez em Tavira, nem sei bem porquê. Olho-o
mais vez, olhos nos olhos, tentando
lembrar-me do que nele me intrigou.
“Estás a enganar-te”, ouço. É
Virgílio que fala comigo.
“Conheces a pessoa da fotografia
e estás a introduzir em mim, que sou uma personagem de ficção, alguns traços e
circunstâncias dessa pessoa real.”
Hesito em responder, mas ele
continua a olhar-me à espera de uma resposta, digo-lhe que a ficção é mesmo
assim, mistura-se realidade e imaginação, para dar força à mentira, para dar
força à verdade; é assim mesmo que se faz. Ele parece ir responder, mas
volta-me as costas e vai ver o lume. Está quase diz, está quase, e volta a
olhar-me, para minha surpresa.
“Mas eu não sou essa pessoa que
tu conheces, disso tenho a certeza e, embora nada saiba dele, sei de mim, e
muito do que avançaste não sou eu nem são as minhas circunstâncias.”
Espero que continue, mas ele cala-se,
e só passado algum tempo acrescenta, com um tom entre o pedido e a ordem, “O
que quiseres saber, pergunta-me”.
“Já te tinha perguntado. Não me
respondeste.”
“Queres saber onde é aqui? Era
essa a tua pergunta?”
Assenti com um breve aceno de
cabeça e esperei em vão por uma resposta que tardou a chegar.
“Não te vou dizer onde é aqui,
isso é pouco importante e tu sabes que é no Algarve. Deixo à tua escolha o
lugar exato, assim como outras considerações que só a ti competem, mas deixa-me
que te diga que não sou escritor como tu, e atribuíres-me a criação de textos
que são teus parece-me incorreto.
“Virgílio, é esse o teu nome, não
é? Ou será que me enganei?”, perguntei-lhe com arrogância.
“É sim. Esse é o meu nome”,
respondeu com alguma rispidez.
“Se não te importas vou retomar a
minha narrativa. Sei muito bem que terás sempre a última palavra, mas cada
coisa a seu tempo, se não te importas”
*
A fotografia é só um ponto de partida.
E talvez mais do que a fotografia, a legenda seja ela mesma um ponto de partida e um trampolim. Decido retomar
a frase inicial e com ela dar inicio a um novo parágrafo e também um novo rumo
a esta narrativa.
Aqui estou eu (a sul) a comer
peixe grelhado, isto pensou Virgílio, ou talvez o tenha mesmo dito em voz alta. O que quereria ele dizer?
Que estar a sul é comer peixe grelhado? Peixe fresco, peixe que ele próprio
pescou? Estar a sul é ser livre, por
oposição a uma outra vida. Será isso? Estou a sul e como peixe grelhado, que é assim o mesmo que dizer estou no sul e sou
livre, olhem para mim a experimentar a liberdade.
No dia anterior foi com um amigo
de longa data à pesca, à noite, e divertiu-se bastante, tanto mais que foi ele
que apanhou o peixe maior, o mesmo que vai agora comer com o amigo, este que
lhe está agora a tirar-lhe a fotografia, um ar sério, o olhar em frente, as
brasas a esperarem o ponto certo no grelhador. Queria tirar uma fotografia com
o peixe mas o amigo recusou-se, a rir, chamou-lhe arrogante, convencido e
lisboeta.
“Já escalei o peixe, agora é que
a fotografia está fora de questão. Isso de tirar fotos com o peixe que se
apanhou é coisa de americanos e de rabetas.”
Estão a beber cerveja e já lhes
perderam a conta, mas o amigo teve o cuidado de esconder as garrafas para que
não aparecessem na fotografia.
“É preciso manter uma imagem,
isto de ser livre tem as suas responsabilidades”
O amigo não nasceu a sul, mas o
seu pai e o seu avô sim, e pertence a uma longa e corajosa linhagem de
pescadores e de bêbados. O Algarve não é só mar, mas quando Virgílio pensa em
sul, pensa no mar, pensa no azul banhado de luz.
“Estar a sul não é comer peixe
grelhado, mas comer peixe grelhado que nós mesmos pescámos. Assim é que é devia
ser.”
“Tens razão, Virgílio, meu grande
cabrão, mas quem é livre não precisa de se afirmar livre e muito menos precisa
de tirar e mostrar nas redes sociais a sua liberdade.”
“Já que sou cabrão, ao menos que
seja grande.”
Virgílio ri, está feliz, está no
sul e sente-se livre. Apanhou o seu próprio peixe, tem o amigo de longa data
consigo. Vão grelhar o peixe, comer e beber até fartar.
*
“Aqui estou eu (a sul) a comer
peixe grelhado. E o importante é estar a sul, o sul como espaço de liberdade, o
sul como estado de felicidade bruta, felicidade que não só inclui a melancolia
mas até a suporta. Por isso escrevi sul entre parênteses, se é que me faço
entender.”
Virgílio olha para mim com um
sorriso aberto, uma cerveja em cada mão. Estende-me uma e eu aceito. Bebo pela
garrafa uma longo gole gelado.
“Já acabaste de escrever?”
“Nunca se acaba de escrever, tu
sabes que é assim. Só se acaba de escrever quando se morre. Ou será o
contrário?”
Batem as garrafas uma na outra e
bebem as cervejas até ao fundo.
Está quase, está quase.