quinta-feira, 19 de março de 2015

ESCREVER

ESCREVER


A vida é demasiado séria para eu continuar a escrever. A vida costumava ser mais fácil, e muitas vezes agradável, e então escrever era agradável, embora também parecesse sério. Agora a vida não é fácil, tornou-se muito séria e, por comparação, escrever parece um pouco disparatado. Escrever não é, muitas vezes, sobre coisas reais, mas depois, quando é sobre coisas reais, está muitas vezes a ocupar o lugar de algumas coisas reais. Escrever é demasiadas vezes sobre pessoas que não aguentam mais. Tornei-me entretanto uma dessas pessoas. Sou uma dessas pessoas. O que eu devia fazer, em vez de escrever sobre pessoas que não aguentam mais, é pura e simplesmente desistir de escrever e aprender a aguentar. E prestar mais atenção à própria vida. A única maneira de me tornar mais inteligente é não voltar a escrever. Há outras coisas que eu devia estar a fazer em vez disso.


Lydia Davis, Não Posso nem Quero,

trad. Inês Dias, Lisboa: Relógio D'Água, 2015

quinta-feira, 5 de março de 2015

LITERATURA MENOR

1. PAIXÃO

Um homem apaixonou-se por uma pedra. Não era uma pedra enorme, era apenas uma pedra grande e pesada, demasiado pesada para que o homem a levasse consigo; por isso ele ficou perto dela, em cima dela, tanto tempo quanto conseguiu. Depois chamou um guindaste, pediu que a pedra fosse içada a cerca de dois metros de altura, e, colocando-se debaixo dela, pediu ao maquinista que a deixasse cair.


2. CRUELDADE

O seu amor era tão grande e desajeitado que punha em perigo todas as mulheres por quem se apaixonava; no entanto, o homem não se importava nada com isso, gostava mesmo de afirmar com solenidade que só o amor é que é importante.


3. ENGANO

Depois de ter ressuscitado várias vezes, julgou-se imortal; o que não impediu que um dia viesse a morrer e hoje esteja completamente esquecido.





4. REALISMO

Iniciou as buscas à hora marcada e levou-as até ao fim com um rigor e uma determinação exemplares. Tinha a certeza de que nada encontraria ali.


5. EXPECTATIVA

Caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu e continua a cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, sempre a cair...


6. MÉTODO

Sentia-se tão bem no escuro que um dia arrancou os olhos*.

* Podia ter escrito “que um dia cegou”, mas a verdade é que evito, sempre que posso, as metáforas.


7. EQUILÍBRIO

Ele amava-a tanto que se transformou num homem melhor, só para lhe agradar. Tornou-se mais belo, mais instruído, mais bem-sucedido e muito mais rico.
Ela não mudou nem um bocadinho; continuou a não acreditar no amor.
8. DECISÃO

Toda a sua vida se sentira ora feliz ora triste e isso perturbava-o bastante, a tal ponto que chegou a desejar sentir-se sempre triste a sentir-se assim, ora feliz ora triste; no entanto, nunca soube escapar a essa indesejada alternância. Decidiu então, de uma vez por todas, deixar de sentir. E foi o que aconteceu.


9. FADO

Porque estava cansado de não trabalhar, deixou de procurar emprego. Porque estava cansado de passar fome, deixou de comer. Porque estava cansado de procurar um sentido para a vida, deixou de viver. Não foi feliz para sempre, mas morreu.


10. CONTRASTE

O preto e o branco estavam um à frente do outro e olhavam-se com desconfiança. “Queres mudar de cor?” - perguntou um deles, não sei qual, e o outro assentiu.
Mudaram então de cor e continuaram um à frente do outro a olharem-se com desconfiança.




11. CHÃO

Os seus poemas eram puras excrescências que expulsava de si mesmo, uma vezes com prazer, outras com sofrimento, impedindo dessa forma que o seu corpo apodrecesse e afinal morresse.
Era por isso que escrevia, foi tudo o que declarou.


12. INTERROGAÇÃO

O homem perscrutou as ruas que se cruzavam e prolongavam até onde os seus olhos alcançavam, os parques de estacionamento traçados a esquadro e até um campo de jogos com um aspecto exemplar, porém, dos prédios que ali deviam estar, nem sinais. E então o homem interrogou-se porque cargas de água se teriam ido embora os prédios.


13. PLANEAMENTO

Um homem amputou o seu braço esquerdo e comeu-o. Gostou bastante, porém, mais tarde, vistas bem as coisas, arrependeu-se. Deveria ter cortado uma perna, disse a si mesmo.




14. FAMA

Declarava sempre, com humildade, que era a sua mão direita que escrevia; calava sempre, com desgosto, que a mão escrevia os seus próprios livros e não os dele.


15. CEGUEIRA

Um homem avançava num passo regular. Um velho ao volante de um carro de luxo lançou-lhe um olhar desconfiado. Uma quarentona à janela de um rés-do-chão espreitou-lhe a juventude desaparecida. Um jovem desocupado encostado a uma esquina, pensou se valeria a pena pedir-lhe dinheiro. Um poeta sentado numa esplanada reconheceu-o e acenou-lhe. O homem continuou a avançar num passo regular.


16. PERSISTÊNCIA

Entrou na rotunda com apreensão e circulou-a com cuidado. Circulou-a, circulou-a e circulou-a. Ainda hoje a circula, à procura de uma saída.


17. RAZÃO

Admirava todos os e poetas e artistas em geral, homens e mulheres capazes de enlouquecer. Ele não tinha essa capacidade, era completamente louco.

18. ADAPTAÇÃO

Sofria, sofria sempre, sofria de uma forma contínua e invariável; sofria de tal forma e com tal intensidade que qualquer alegria, por pequena que fosse, lhe era completamente insuportável.


19. ANTECIPAÇÃO

Desiludido com o presente, sentou-se à espera do futuro. Muitos anos depois, olhava para o passado com desespero e sentia ainda mais saudades do futuro.


20. FÉ

Todos os dias pela manhã, antes de ir trabalhar, levava o cão à rua. Ao fim-de-semana fazia o mesmo, apenas um pouco mais tarde. Caminhava ao ritmo do cão, num percurso quase invariável. Acreditava que era ele que passeava o cão, quando na verdade era o cão que sempre o passeava.

P.S. Pode ser de interesse para os leitores saber que o cão era branco.



21. CUSTO

Era um escritor de renome internacional, considerado porém um rematado machista, porque todas as suas personagens femininas obedeciam exclusivamente a uma exagerada visão masculina. Um dia o escritor cansou-se e escreveu um romance visto pelos olhos de uma mulher, considerado o melhor dos seus romances. Um ano depois da sua publicação o escritor ainda se vestia de mulher e estava a considerar colocar implantes mamários.


22. INTERMITÊNCIA

Todos lhe diziam que falava demais, que devia ouvir-se, mas ele não ouvia ninguém e continuava a falar, a falar, a falar. Um dia, nunca soube bem porquê, calou-se e ouviu-se finalmente a si próprio. Percebeu então que eles tinham razão, e disse-o a todos, um a um, para que soubessem que assim era, uma, outra e ainda outra vez, sem parar.


23. LINGUAGEM

Queria ser o melhor, mas cedo percebeu que não era suficientemente bom para ser o melhor entre os melhores; e o mesmo quanto a ser o pior, porque também não era suficientemente bom para ser o melhor entre os piores, que o mesmo é dizer o pior entre os piores. Decidiu então que seria o melhor dos medíocres, o que penso que conseguiu ser, senão o melhor, pelo menos um dos melhores, porque a maioria esmagadora dos medíocres não é mais do que isso, e ele poderia, sem dúvida, ter sido melhor, muito melhor, o que julgo que afinal lhe aconteceu.


24. PERSPECTIVA

Irritava-se por tudo e por nada e, por mais que tentasse, não conseguia mudar, no entanto, um dia sentiu-se sereno, extraordinariamente sereno. As pessoas começaram a fugir dele, dizendo que estava morto, mas ele sentia-se bem, extraordinariamente bem.


25. OXÍMORO

O poema é uma prática de silêncio. O poema, como cada uma das suas palavras, tem sempre um lado de fora e um lado de dentro. O poema nunca é parte de coisa alguma, o poema é sempre um todo.
Ele sabia que assim é.
Ele sabia
que só o grito do poema
permite
verdadeiramente
ouvir o silêncio
que sempre o compõe.


26. ARTE

Subiu ao palco e imobilizou-se à boca de cena, olhando o público, um sorriso tímido a aflorar-lhe o rosto pálido. Quinze minutos depois nada mudara, com exceção da agitação crescente do público que, pouco a pouco, ia abandonando a sala, soltando impropérios e risos de escárnio. Quando ficou sozinho o homem fez uma pequena vénia e saiu sem pressas pela direita.


27. CLARIVIDÊNCIA

Um dia teve uma percepção clara da sua finitude. Foi nesse mesmo dia que se suicidou.


28. MIOPIA

Nunca estava maldisposto, os outros é que estavam sempre maldispostos, e, caso estivesse, por mera hipótese, realmente maldisposto, seria apenas porque os outros o tinham colocado nesse estado.
A verdade, se querem mesmo saber, é que ele nunca estava bem-disposto.





29. SUCÇÃO

Ninguém sabe o que aconteceu e com isto quero dizer isso mesmo. As causas e os efeitos do que aconteceu são por demais conhecidos, o que continua por apurar é o que realmente aconteceu.


30. DRAMA

Dizem-me que não existo e eu nego com veemência que assim seja, todavia ignoram-me.
Estou cada vez mais convencido que só eu existo.


31. HERMENÊUTICA

A sua escrita é tão intricada que poucas pessoas são capazes de ler os seus livros. Atualmente, com a morte de um dos seus leitores, restam apenas doze pessoas, e a tendência é para esse número diminuir ainda mais.


32. RENDEZ-VOUS

Combinou encontrar-se comigo ao fim da tarde na esplanada do mercado, porém, antes disso, enviou-me uma mensagem a dizer que preferia encontrar-se comigo no outro dia de manhã no seu ateliê; todavia, pouco depois, recebi outra mensagem sua. Ainda não tinha começado a lê-la, quando o avistei, do outro lado da rua, com um ramo de flores silvestres na mão, avançando decidido num infantil passo de dança. Deixei-o ir e resolvi vingar-me: abri o meu bloco de notas e escrevi este texto, encontrando-me com ele no local que eu próprio escolhi à hora que eu próprio quis.


33. PUNCHLINE

O homem espera a morte. Não a deseja nem a teme, espera-a apenas. Viver é esperar a morte.


34. INFINITO

 Não me compreendes.
Compreendo-te muito bem, só não concordo contigo.
Se me compreendesses, estarias de acordo comigo.
Não te compreendo!
Vês, eu tinha razão, tu não me compreendes.
Tu queres sempre ter razão! Vês, compreendo-te muito bem.
[Atenção, pede-se ao leitor que regresse imediatamente à primeira fala e continue a ler a partir daí]


35. SEGREDO

Diz-me uma coisa.
O que queres saber?
Diz-me apenas sim ou não.
Sim ou não?
Sim ou não!
Para quê?
Vá lá, diz-me apenas sim ou não.
Sim.
E então o homem estendeu-lhe um pequeno papel mal dobrado e matou-se ali mesmo à sua frente. Ele jogou as mãos à cabeça e o pequeno papel mal dobrado caiu no chão e ali ficou, esquecido.

Nota: Para os mais curiosos, que se perguntam o que estava escrito no pequeno papel dobrado, esclareço que sei o que dizia mas não o escreverei.


36. FIM

Não és meiga e não te preocupas comigo, disse-lhe ele e recusou-se a acompanhá-la.
A morte sorriu e deixou-o viver mais um pouco.



37. NADA

Em que estás a pensar, perguntaram-lhe, e só nesse momento ele deu por si a pensar.
Pensar é afinal - disse a si mesmo pouco depois - o despertar para a inquietude do ser. E sentiu-se enganado.


38. DESCONHECIMENTO

Não vou além deste ponto.
Sei o que escrevi antes, mas averdade é que, ao contrário do ponto que se aproxima, o primeiro ponto não era, afinal, um ponto final.


39. PENSAMENTO

Um homem amava-se mas não era correspondido, até que começou a odiar-se, foi correspondido e matou-se.


40. HANDICAP


Ofereci-lhe um dedo de prosa, recusou indignado. Lancei-lhe um dedo de poesia, entrou-lhe por um ouvido, saiu-lhe por outro.E assim desperdiçei dois dedos de conversa.

Cruzeiro Seixas

 Ouvir.