1. PAIXÃO
Um homem
apaixonou-se por uma pedra. Não era uma pedra enorme, era apenas uma pedra
grande e pesada, demasiado pesada para que o homem a levasse consigo; por isso
ele ficou perto dela, em cima dela, tanto tempo quanto conseguiu. Depois chamou
um guindaste, pediu que a pedra fosse içada a cerca de dois metros de altura,
e, colocando-se debaixo dela, pediu ao maquinista que a deixasse cair.
2. CRUELDADE
O seu amor era
tão grande e desajeitado que punha em perigo todas as mulheres por quem se
apaixonava; no entanto, o homem não se importava nada com isso, gostava mesmo
de afirmar com solenidade que só o amor é que é importante.
3. ENGANO
Depois de ter
ressuscitado várias vezes, julgou-se imortal; o que não impediu que um dia
viesse a morrer e hoje esteja completamente esquecido.
4. REALISMO
Iniciou as
buscas à hora marcada e levou-as até ao fim com um rigor e uma determinação
exemplares. Tinha a certeza de que nada encontraria ali.
5. EXPECTATIVA
Caiu, caiu, caiu,
caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu, caiu e continua a cair,
cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, cair, sempre
a cair...
6. MÉTODO
Sentia-se tão
bem no escuro que um dia arrancou os olhos*.
* Podia ter escrito
“que um dia cegou”, mas a verdade é que evito, sempre que posso, as metáforas.
7. EQUILÍBRIO
Ele amava-a
tanto que se transformou num homem melhor, só para lhe agradar. Tornou-se mais
belo, mais instruído, mais bem-sucedido e muito mais rico.
Ela não mudou
nem um bocadinho; continuou a não acreditar no amor.
8. DECISÃO
Toda a sua vida
se sentira ora feliz ora triste e isso perturbava-o bastante, a tal ponto que
chegou a desejar sentir-se sempre triste a sentir-se assim, ora feliz ora
triste; no entanto, nunca soube escapar a essa indesejada alternância. Decidiu
então, de uma vez por todas, deixar de sentir. E foi o que aconteceu.
9. FADO
Porque estava
cansado de não trabalhar, deixou de procurar emprego. Porque estava cansado de
passar fome, deixou de comer. Porque estava cansado de procurar um sentido para
a vida, deixou de viver. Não foi feliz para sempre, mas morreu.
10. CONTRASTE
O preto e o
branco estavam um à frente do outro e olhavam-se com desconfiança. “Queres
mudar de cor?” - perguntou um deles, não sei qual, e o outro assentiu.
Mudaram então de
cor e continuaram um à frente do outro a olharem-se com desconfiança.
11. CHÃO
Os seus poemas
eram puras excrescências que expulsava de si mesmo, uma vezes com prazer,
outras com sofrimento, impedindo dessa forma que o seu corpo apodrecesse e
afinal morresse.
Era por isso que
escrevia, foi tudo o que declarou.
12. INTERROGAÇÃO
O homem
perscrutou as ruas que se cruzavam e prolongavam até onde os seus olhos
alcançavam, os parques de estacionamento traçados a esquadro e até um campo de
jogos com um aspecto exemplar, porém, dos prédios que ali deviam estar, nem
sinais. E então o homem interrogou-se porque cargas de água se teriam ido
embora os prédios.
13. PLANEAMENTO
Um homem amputou
o seu braço esquerdo e comeu-o. Gostou bastante, porém, mais tarde, vistas bem
as coisas, arrependeu-se. Deveria ter cortado uma perna, disse a si mesmo.
14. FAMA
Declarava
sempre, com humildade, que era a sua mão direita que escrevia; calava sempre,
com desgosto, que a mão escrevia os seus próprios livros e não os dele.
15. CEGUEIRA
Um homem
avançava num passo regular. Um velho ao volante de um carro de luxo lançou-lhe
um olhar desconfiado. Uma quarentona à janela de um rés-do-chão espreitou-lhe a
juventude desaparecida. Um jovem desocupado encostado a uma esquina, pensou se
valeria a pena pedir-lhe dinheiro. Um poeta sentado numa esplanada reconheceu-o
e acenou-lhe. O homem continuou a avançar num passo regular.
16. PERSISTÊNCIA
Entrou na
rotunda com apreensão e circulou-a com cuidado. Circulou-a, circulou-a e
circulou-a. Ainda hoje a circula, à procura de uma saída.
17. RAZÃO
Admirava todos
os e poetas e artistas em geral, homens e mulheres capazes de enlouquecer. Ele
não tinha essa capacidade, era completamente louco.
18. ADAPTAÇÃO
Sofria, sofria
sempre, sofria de uma forma contínua e invariável; sofria de tal forma e com
tal intensidade que qualquer alegria, por pequena que fosse, lhe era
completamente insuportável.
19. ANTECIPAÇÃO
Desiludido com o
presente, sentou-se à espera do futuro. Muitos anos depois, olhava para o
passado com desespero e sentia ainda mais saudades do futuro.
20. FÉ
Todos os dias
pela manhã, antes de ir trabalhar, levava o cão à rua. Ao fim-de-semana fazia o
mesmo, apenas um pouco mais tarde. Caminhava ao ritmo do cão, num percurso
quase invariável. Acreditava que era ele que passeava o cão, quando na verdade
era o cão que sempre o passeava.
P.S. Pode ser de
interesse para os leitores saber que o cão era branco.
21. CUSTO
Era um escritor
de renome internacional, considerado porém um rematado machista, porque todas
as suas personagens femininas obedeciam exclusivamente a uma exagerada visão
masculina. Um dia o escritor cansou-se e escreveu um romance visto pelos olhos
de uma mulher, considerado o melhor dos seus romances. Um ano depois da sua
publicação o escritor ainda se vestia de mulher e estava a considerar colocar
implantes mamários.
22.
INTERMITÊNCIA
Todos lhe diziam
que falava demais, que devia ouvir-se, mas ele não ouvia ninguém e continuava a
falar, a falar, a falar. Um dia, nunca soube bem porquê, calou-se e ouviu-se
finalmente a si próprio. Percebeu então que eles tinham razão, e disse-o a
todos, um a um, para que soubessem que assim era, uma, outra e ainda outra vez,
sem parar.
23. LINGUAGEM
Queria ser o
melhor, mas cedo percebeu que não era suficientemente bom para ser o melhor
entre os melhores; e o mesmo quanto a ser o pior, porque também não era
suficientemente bom para ser o melhor entre os piores, que o mesmo é dizer o
pior entre os piores. Decidiu então que seria o melhor dos medíocres, o que
penso que conseguiu ser, senão o melhor, pelo menos um dos melhores, porque a
maioria esmagadora dos medíocres não é mais do que isso, e ele poderia, sem
dúvida, ter sido melhor, muito melhor, o que julgo que afinal lhe aconteceu.
24. PERSPECTIVA
Irritava-se por
tudo e por nada e, por mais que tentasse, não conseguia mudar, no entanto, um
dia sentiu-se sereno, extraordinariamente sereno. As pessoas começaram a fugir
dele, dizendo que estava morto, mas ele sentia-se bem, extraordinariamente bem.
25. OXÍMORO
O poema é uma
prática de silêncio. O poema, como cada uma das suas palavras, tem sempre um
lado de fora e um lado de dentro. O poema nunca é parte de coisa alguma, o
poema é sempre um todo.
Ele sabia que
assim é.
Ele sabia
que só o grito
do poema
permite
verdadeiramente
ouvir o silêncio
que sempre o
compõe.
26. ARTE
Subiu ao palco e
imobilizou-se à boca de cena, olhando o público, um sorriso tímido a
aflorar-lhe o rosto pálido. Quinze minutos depois nada mudara, com exceção da
agitação crescente do público que, pouco a pouco, ia abandonando a sala,
soltando impropérios e risos de escárnio. Quando ficou sozinho o homem fez uma
pequena vénia e saiu sem pressas pela direita.
27.
CLARIVIDÊNCIA
Um dia teve uma
percepção clara da sua finitude. Foi nesse mesmo dia que se suicidou.
28. MIOPIA
Nunca estava
maldisposto, os outros é que estavam sempre maldispostos, e, caso estivesse,
por mera hipótese, realmente maldisposto, seria apenas porque os outros o
tinham colocado nesse estado.
A verdade, se
querem mesmo saber, é que ele nunca estava bem-disposto.
29. SUCÇÃO
Ninguém sabe o
que aconteceu e com isto quero dizer isso mesmo. As causas e os efeitos do que
aconteceu são por demais conhecidos, o que continua por apurar é o que
realmente aconteceu.
30. DRAMA
Dizem-me que não
existo e eu nego com veemência que assim seja, todavia ignoram-me.
Estou cada vez
mais convencido que só eu existo.
31. HERMENÊUTICA
A sua escrita é
tão intricada que poucas pessoas são capazes de ler os seus livros. Atualmente,
com a morte de um dos seus leitores, restam apenas doze pessoas, e a tendência
é para esse número diminuir ainda mais.
32. RENDEZ-VOUS
Combinou
encontrar-se comigo ao fim da tarde na esplanada do mercado, porém, antes
disso, enviou-me uma mensagem a dizer que preferia encontrar-se comigo no outro
dia de manhã no seu ateliê; todavia, pouco depois, recebi outra mensagem sua.
Ainda não tinha começado a lê-la, quando o avistei, do outro lado da rua, com
um ramo de flores silvestres na mão, avançando decidido num infantil passo de
dança. Deixei-o ir e resolvi vingar-me: abri o meu bloco de notas e escrevi
este texto, encontrando-me com ele no local que eu próprio escolhi à hora que
eu próprio quis.
33. PUNCHLINE
O homem espera a
morte. Não a deseja nem a teme, espera-a apenas. Viver é esperar a morte.
34. INFINITO
Não me compreendes.
Compreendo-te
muito bem, só não concordo contigo.
Se me
compreendesses, estarias de acordo comigo.
Não te
compreendo!
Vês, eu tinha
razão, tu não me compreendes.
Tu queres sempre
ter razão! Vês, compreendo-te muito bem.
[Atenção,
pede-se ao leitor que regresse imediatamente à primeira fala e continue a ler a
partir daí]
35. SEGREDO
Diz-me uma
coisa.
O que queres
saber?
Diz-me apenas
sim ou não.
Sim ou não?
Sim ou não!
Para quê?
Vá lá, diz-me
apenas sim ou não.
Sim.
E então o homem
estendeu-lhe um pequeno papel mal dobrado e matou-se ali mesmo à sua frente.
Ele jogou as mãos à cabeça e o pequeno papel mal dobrado caiu no chão e ali
ficou, esquecido.
Nota: Para os
mais curiosos, que se perguntam o que estava escrito no pequeno papel dobrado,
esclareço que sei o que dizia mas não o escreverei.
36. FIM
Não és meiga e
não te preocupas comigo, disse-lhe ele e recusou-se a acompanhá-la.
A morte sorriu e
deixou-o viver mais um pouco.
37. NADA
Em que estás a pensar, perguntaram-lhe, e só nesse momento ele deu por si a
pensar.
Pensar é afinal - disse a si mesmo pouco depois - o despertar para a inquietude
do ser. E sentiu-se enganado.
38.
DESCONHECIMENTO
Não vou além
deste ponto.
Sei o que
escrevi antes, mas averdade é que, ao contrário do ponto que se aproxima, o
primeiro ponto não era, afinal, um ponto final.
39. PENSAMENTO
Um homem
amava-se mas não era correspondido, até que começou a odiar-se, foi
correspondido e matou-se.
40. HANDICAP
Ofereci-lhe um
dedo de prosa, recusou indignado. Lancei-lhe um dedo de poesia, entrou-lhe por
um ouvido, saiu-lhe por outro.E assim desperdiçei dois dedos de conversa.