quarta-feira, 14 de maio de 2014

3 POEMAS PORTUGUESES

ÊXTASE

acordo adormeço acordo
O Infante D. Henrique olha-se
no espelho azul do mar
Salazar está sentado numa cadeira
suspensa no tempo que perdemos
Salgueiro Maia assoma-se à janela
triste do futuro adiado
O meu fato cinzento tem um rasgão
atravessado no peito

No meu país tudo aconteceu  há
muito muito tempo e ainda está
tudo a acontecer
nada está esquecido
nada é lembrado
no meu país tudo acontece e não
acontece
ao mesmo tempo
no mesmo lugar

Por isso escrevo cada vez mais
branco sobre branco
os dedos nus tocando de leve
a superfície vaga do sonho
perdido no lado de dentro
do lado do fora
e de novo adormeço
de novo acordo
e de novo adormeço


ERA UMA VEZ UM PAÍS

fomos sempre um país possível
cedo nos habituámos a ser assim
ou assado
tanto nos fazia
éramos um país possível
até que um dia sonhámos juntos
um país novo
fomos realistas
quisemos o impossível
quisemos um país impossível
foi isso que desejámos
foi isso que obtivemos
um país impossível
impossível de suportar
impossível de viver
impossível de se renovar
quando é que o sonho se tornou
pesadelo?
vivemos hoje no mesmo impossível
país possível de sempre
quando é que vamos acordar?
quando é que de novo
pediremos o impossível?
quando é que começaremos
a construir o possível
país impossível
que existe e está ainda
à nossa espera?


POEMA EM CONSTRUÇÃO

Em mim eu guardo a alegria de Abril
faca de dois gumes
pau de dois bicos
metáfora estafada
cegueira que me permite
ver o que perdemos todos os dias
memória que me aproxima
e me afasta dos outros e de
mim mesmo
mistério íntimo intransmissível
inútil
ouro dos tolos
ressaca furiosa
sangue que me corre nas veias
palavrão gritado com raiva e com dor
com amor

Em mim eu guardo intacta
a alegria de Abril
bandeira puída
que ainda agito com orgulho
com desespero
com toda a estúpida intensidade
do meu ser
fui Abril e Abril fez-me assim
pleno desta alegria triste que é saber
que um mundo melhor é possível
que um mundo melhor só
depende de nós
que a poesia é a vida que
a nós mesmos recusamos
ténue linha que nos desafia

Em mim eu guardo intacta e dura
a alegria de Abril
sonho sonhos mil
mil sonhos esqueço mil sonhos adio
em mim Abril são todos os meses do ano
em mim Abril é esta alegria que me entristece
em mim Abril é esta tristeza que me enternece

Em mim eu guardo intacta e pura
a alegria de Abril
envelhecida ano após ano
em cascos de mágoa e de dor
doce vinho triste que estou certo
um dia todos hão-de beber
e então
só então
serei completamente

feliz

Cruzeiro Seixas

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