segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Não me perguntem porquê [2]

[…]


Quando abria um romance pela primeira vez, lia-lhe sempre o princípio e o fim, era um hábito de longa data, e naquele dia o hábito prevaleceu, ainda que conhecesse muito bem o romance em questão, uma vez que fora ele que o escrevera.

Leu as primeiras duas ou três linhas e depois saltou para o fim que, para seu espanto, encontrou diferente. Olhou o fim, olhou a capa, depois olhou o princípio e de novo o fim.

Ficou um bocado sem dizer nada, repetindo os mesmos gestos. Depois levantou-se, declarou terminada a sessão de autógrafos e pareceu ter a intenção de se dirigir de imediato para o local onde o livro estava à venda, mesmo ali ao lado, no outro extremo do pequeno pavilhão, a poucos metros de distância, mas deu finalmente pela mulher à sua frente, a mão estendida na sua direcção para que lhe devolvesse o livro, e entregou-lho num gesto mecânico, ao mesmo tempo que lhe dizia com solenidade: “Há um erro neste exemplar que altera por completo o sentido do livro!”

“Falta-lhe alguma coisa?”, perguntou a mulher, ao que ele respondeu, quase gritando, que era exactamente o contrário, e parou por momentos de falar, como para ganhar fôlego para prosseguir, mas ao aperceber-se de que estava alguém a comprar mais um exemplar naquele exacto momento, quase correu os poucos metros que o separavam da banca, não sem antes pedir atabalhoadamente à mulher, que esperasse, se fizesse o favor, que voltava logo, logo.

Quando o escritor lhe ordenou, sem mais, que não vendesse nem mais um livro, o representante local da editora, pediu-lhe repetidamente que se acalmasse e explicasse o que se passava, mas a venda já tinha sido feita, o comprador afastara-se já, e o escritor começou a gritar ao representante local da editora que guardasse os livros, ou melhor, que lhe desse os livros, que era inaceitável, que iam ver com quem se tinham metido, e tudo isto sublinhado pela sua mirada fixa e insistente. O outro continuava a olhá-lo, mas desistira já de lhe pedir que se acalmasse, e esperava apenas que tal acontecesse naturalmente. No entanto, o escritor entrara num estado de total excitação e pegava agora em cada um dos livros expostos e a todos espreitava o final, e de cada vez que o fazia, soltava um sonoro e rotundo “Foda-se!”, sublinhado com uma gargalhada longa e áspera, até que o representante local da editora perdeu as estribeiras e lhe gritou:

“Mas que bicho lhe mordeu?”

“O final não é este!”, respondeu-lhe o escritor, soletrando cada uma das palavras como se as proferisse com dificuldade, e apontava para as últimas páginas de um exemplar que mantinha aberto à sua frente. “O final não é este!”, repetiu perante o silêncio do representante local da editora e, sem qualquer transição, atirou o livro à cabeça do outro, que se desviou por muito pouco. Ficaram a fitar-se em silêncio, como a medir-se um ao outro, imóveis, e o escritor repetiu ainda, “O final não é este!”, parecendo incapaz de dizer outra coisa, e o representante local da editora, a deitar contas á vida, repetiu também ele a frase, transformando-a numa interrogação, como que a tentar ganhar tempo, “O final não é este?”, mas não ficou à espera de uma resposta e abandonou o pavilhão pela direita, rapidamente, sem olhar para trás.

O escritor não o seguiu, nem com o olhar, que estava pousado nos livros em cima da mesa, e começou de imediato a guardá-los na caixa de cartão, que encontrou no chão, abandonando também o pavilhão pouco depois com a caixa ao ombro.

Quando o representante local da editora voltou, acompanhado de um amigo, não fosse o diabo tecê-las, não encontrou nem o escritor nem os seus livros. Demorou-se apenas o tempo necessário para recolher o casaco e a maleta que deixara abandonados numa cadeira. Nem uma hora decorrera desde que a sessão fora dada por iniciada.

Cruzeiro Seixas

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