sexta-feira, 8 de outubro de 2010

A PERDA DO DEDO MÍNIMO VIII


[APONTAR]


Perdera o dedo mínimo mas, por estranho que parecesse não conseguia ver-se livre dele de uma vez por todas porque, a verdade é que nunca ele recebera tanta atenção quanto a que passou a receber depois que desapareceu sem qualquer explicação de um dia para o outro.

Às vezes fechava os olhos, concentrava-se, e tentava sentir todos os dedos das mãos e quase ia jurar que sentia o dedo mínimo da mão direita no exacto lugar onde agora não estava.

Tinha ouvido falar em pessoas que haviam perdido braços e pernas, ou apenas parte deles, e continuavam a senti-los, a experimentar dor nesse braços e pernas perdidos, chamavam-lhes membros fantasmas, e com certeza que isso se aplicava a um dedo, ainda que fosse o menor de todos, mas a verdade é que só sentia o dedo, ou julgava senti-lo, quando se esforçava por senti-lo, e dificilmente poderia dizer que o dedo, ainda que ele não o conseguisse esquecer, de alguma forma o assombrava.

Não dera inicialmente qualquer importância à perda do dedo, mas esse mesmo dedo que já não existia ganhara cada vez maior importância e agora, por mais que quisesse, não conseguia esquecê-lo.

Ignorou o exterior, onde tinha a certeza não encontraria respostas e voltou-se para dentro de si, onde sabia que encontraria a pergunta certa.

“Que importância tem a perda de um dedo mínimo? Será que tem mais ou menos importância do que outra perda qualquer? O que é importante e o que não é importante?”

Continuou a fazer perguntas mas não encontrava respostas ou, quando as encontrava, elas não o satisfaziam, como aliás lhe acontecia muitas vezes que procurava responder com palavras a perguntas que estavam para além delas.

Há pessoas que acreditam que as palavras podem dizer o mundo e há outras que acreditam que o mais simples dos eventos é completamente indizível. Como é fácil de perceber, ele acreditava nas palavras mas apenas como meio de apontar para o que estava para além delas.

“É preferível ter uma luz fraca a não ter luz nenhuma, sobretudo se não conseguimos ver no escuro.”

As perguntas que fazia agora a si mesmo eram as mesmas que sempre fizera e a perda do dedo mínimo não tinha nada a ver com isso, porque se não tivesse acontecido, ele estaria agora a fazê-las na mesma, pois sempre se questionara sobre o que era verdadeiramente importante e sobre quem ele verdadeiramente era e, quando percebeu isto, foi como se tivesse perdido de novo o dedo, pois voltou a não dar-lhe qualquer importância e quase se esqueceu que alguma vez o perdera.

“Mas afinal que falta me faz o dedo mínimo da mão direita?”

Olhou a mão direita e sentiu-a incompleta, e era afinal dessa sensação que ele não se conseguia libertar, da sensação de incompletude. Riu-se quando essa ideia lhe surgiu e afastou-a de imediato porque, ainda que se tivesse rido, a verdade é que essa ideia não tinha graça nenhuma, era pelo contrário a ideia mais sem graça que alguma vez tivera. Mas depois de pensar um pouco mais, voltou a rir-se, e agora com muito mais vontade.

“Já percebi, é o dedo que agora me falta que aponta para a minha incompletude e é isso afinal que me incomoda e não a perda do dedo em si.”

E riu ainda mais, soltou gritos de alegria e bateu palmas, tendo verificado, não sem espanto, que as palmas soavam da mesma maneira do que antes de perder o dedo, ou pelo menos assim lhe parecia.

A partir desse momento deixou de olhar para a mão direita e passou a metê-la no bolso das calças ou do casaco, sempre que não estava a usá-la, prática que só abandonou por achar que lhe conferia um certo ar napoleónico, personagem por quem ele tinha tanto de embirração cega quanto tinha de admiração esclarecida por Dom Quixote. Mas esconder a mão direita era afinal chamá-la para o centro da sua atenção e mais valia que estivesse à mostra, para que ele mais facilmente a pudesse ignorar, e foi o que ele fez durante muito tempo.


Cruzeiro Seixas

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