[O QUE LHE ACONTECERA]
No dia seguinte, a primeira coisa que fez quando acordou foi olhar pela janela para ver como estava o dia. Só depois olhou para a mão direita. Olhou-a ao pormenor, girando-a para a poder observar de vários ângulos, mas a conclusão era sempre a mesma: parecia que nunca tivera um dedo mínimo na mão direita.
Depois fechou a mão direita num punho, as unhas enterradas na carne, uma dor ténue na palma da mão, e esqueceu-se por completo que lhe faltava o dedo mínimo.
Na semana que se seguiu, não fossem os outros e Rui Medonho nunca se teria lembrado que alguma vez tivera cinco dedos na mão direita, mas os olhares mal disfarçados e alguns comentários que lhe lançaram, impediram-no de se desligar, de uma vez por todas, do seu dedo mínimo da mão direita, dedo que lhe faltava, é verdade, mas de que, e também não era menos verdade, ele não sentia falta alguma.
No café, na mercearia, sentiu que olhavam para a sua mão direita e tomou consciência, novamente, que não só lhe faltava o dedo mínimo nessa mão, como não tinha qualquer explicação para esse facto. O primeiro comentário que lhe fizeram tomou uma forma ambígua – “Nunca me tinha apercebido que só tinha quatro dedos na mão direita!” - e ele respondeu com um sorriso igualmente ambíguo, mas da segunda vez perguntaram-lhe directamente o que lhe tinha acontecido ao dedo, e ele olhou também para a mão direita, para o lugar onde devia estar o dedo mínimo, tentando ganhar tempo, mas achou melhor dizer a verdade.
“Acordei um dia destes e dei por mim sem o dedo mínimo da mão direita.”
O seu interlocutor sorriu, fez um ar surpreendido, e mudou de assunto, o que voltou a acontecer quando respondeu da mesma forma a outras pessoas que também lhe perguntaram o que lhe acontecera ao dedo.
Mas estes acontecimentos levaram-no a pensar não só na perda do seu dedo mínimo, mas também para além dessa perda.
Pensou que aquele acontecimento não era diferente de muitos que lhe tinham acontecido toda a sua vida, pois também nunca os conseguira explicar a si mesmo, ainda que muitas vezes os tivesse explicado aos outros, mas isso não era muito diferente do que tinha feito agora dizendo a verdade, ou seja, fugir afinal a qualquer explicação. Dizer a verdade sobre o que aconteceu é muito diferente de explicar o que aconteceu, e por isso ele continuou a dizer a verdade a quem lhe perguntava o que acontecera ao seu dedo mínimo. Mas começou a pensar na perda do seu dedo mínimo, em como isso o poderia ter alterado.
“Quem sou eu afinal? O que posso ainda perder sem deixar de ser quem sou?”
Disse isto e ficou a pensar quem era, o que lhe acontecia muitas vezes, tantas que nunca sabia afinal quem era, tornando essa pergunta, já de si inútil, completamente inútil. E durante muito tempo pensou no que poderia ainda perder e de que forma alteraria quem afinal era.
Finalmente, olhou a mão direita e começou a rir.