sábado, 2 de outubro de 2010

A PERDA DO DEDO MÍNIMO II

[A FALTA]


Ao longo do dia, a estranheza que sentiu perante a perda do dedo mínimo da mão direita foi substituída pela estranheza perante a pouca falta que lhe fazia o dedo mínimo da mão direita, sentimento que foi crescendo à medida que ia desenvolvendo a sua rotina diária.

“Afinal o dedo não me faz falta nenhuma, é que como se sempre tivesse tido apenas quatro dedos na mão direita.”

Cortou uma fatia de pão, tirou o pacote de leite do frigorífico, pôs o pão a torrar, encheu um copo de leite, barrou o pão com manteiga e não sentia a falta do dedo, sensação que se prolongou durante a manhã mas, no entanto, quando olhava a mão, via com clareza o lugar onde o dedo tinha estado.

Não conseguia explicar o que sentia quando olhava para o dedo em falta, mas quando olhava para a mão direita era sempre para o dedo em falta que olhava, como se apenas pensando no dedo que uma vez tivera conseguisse ver a ausência desse dedo. Quanto mais tentava lançar luz sobre o que sentia perante a falta do seu dedo mínimo, mais as sombras aumentavam, impedindo-o de ver com clareza, uma sensação que na verdade lhe era bastante familiar.

Não conseguia perceber que, não sentindo a falta do dedo, não conseguisse olhar para a mão sem ver o dedo em falta.

“Mas por que raios me incomoda a perda de um dedo mínimo? Ainda se me fizesse alguma falta!”

Tamborilou, com a mão direita, como era seu hábito, sobre o tampo da mesa, e nem nessa altura sentiu falta do dedo mínimo mas, no entanto, não conseguia deixar de pensar nele, mesmo que fosse apenas sobre a pouca falta que lhe fazia o dito cujo.

Continuava a não se interrogar nem porque perdera ou dedo nem como tal acontecera, e isso dizia muito dele, porque a verdade é que não era pessoa que gastasse muito tempo a perguntar a si mesmo porque é que a sua vida era como era ou se esforçasse por perceber como as coisas tinham acontecido na sua vida.

Há pessoas que se limitam a ser, sem nunca ou quase nunca se interrogarem, seja o que for que sejam, e há pessoas que se interrogam tanto que se esquecem quase sempre de ser. É fácil de ver que ele não pertencia a nenhuma dessas categorias; talvez fosse apenas preguiçoso, demasiado preguiçoso para se interrogar, ou não estivesse para se chatear e lhe fosse muito mais fácil aceitar.

“Afinal o que me importa a perda de um dedo! E ainda por cima a perda de um dedo mínimo!”

Ensaiou vários gestos e concluiu com facilidade que o dedo mínimo da mão direita era o que menos falta lhe fazia, ainda que fosse dextro. O polegar ou o indicador da mão direita, esses sim, que lhe fariam falta, mas mesmo assim ainda lhe restaria a mão esquerda.

Olhou as mãos ainda durante algum tempo, ora uma ora outra, e decidiu não dar mais importância à perda do dedo mínimo, que afinal não lhe servia para nada, mas foi então que sentiu mais a sua falta, não porque precisasse realmente dele, mas porque se sentiu incompleto sem ele.

“Um dedo mínimo, que se foda o dedo mínimo!”

Fechou as mãos em punhos e mais uma vez confirmou que o dedo mínimo não lhe fazia falta nenhuma.



Cruzeiro Seixas

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