terça-feira, 19 de outubro de 2010

O DOM DA PALAVRA (4)


[FOI UMA VEZ]


Um dia, uma mulher dirigiu-lhe a palavra, em inglês, e ele respondeu-lhe também em inglês. Não era bela, pelo menos de uma beleza convencional, mas tinha um olhar intenso de um estranho azul, e ele sentiu-se bem em responder-lhe. Ela sorriu e ele sorriu-lhe de volta. Tinha um mapa da cidade na mão e apontava para onde queria ir, a pouco mais de quinhentos metros de onde estavam. Hermínio Campânula começou a explicar-lhe com gesto simples e inequívocos como poderia chegar lá, mas ela sorria-lhe e ele sorria-lhe e, sem dar por isso deu por si a levá-la onde ela queria ir, ao mesmo tempo que iam tagarelando incessantemente, um e outro, sem saber o que cada um ia dizendo. Talvez fosse sueca ou de um outro qualquer país do norte, ele não sabia, e estava certo que ela também não sabia que língua ele falava, mas isso pouco importava, porque pela primeira vez há muito tempo ele falava com alguém que não se admirava por não compreender o que ele dizia. Pensou por breves instantes que talvez tivesse passado a falar uma qualquer língua rara e fosse por isso que ninguém o entendia, mas depressa esqueceu essa ideia e limitou-se a saborear aquele prazer inusitado de falar com alguém que lhe respondia sem espanto. Também não deu grande importância à descoberta que fizera, que também em inglês não era percebido, porque depois lhe ter feito a primeira pergunta em inglês, ela passara a falar na sua própria língua, sinal de que não entendera e ele fez o mesmo, falando também na sua própria língua, tanto mais própria quanto ninguém o entendia.

Acompanhou-a à igreja que ela procurava, entrou com ela e percorreram-na sem falar, o silêncio quebrado apenas e ali por alguns risos discretos. Depois saíram e vaguearam pela cidade sem destino, olhando em redor e dentro dos olhos de cada um, sorrindo sempre muito. Ao fim da tarde ele levou-a à estação dos caminhos-de-ferro, que ela indicou no mapa com um sorriso, e beijaram-se sem deixarem nem por um instante de sorrir, até que ela entrou para o comboio, a sorrir, e ele viu o comboio afastar-se, a sorrir.

A partir dessa altura sentiu pela primeira vez que lhe era muito difícil suportar a solidão, de que a impossibilidade de compreenderem o que dizia, era sem dúvida uma das facetas mais evidentes e dolorosas, ainda que na generalidade ele não lhe atribuísse grande importância.

Cruzeiro Seixas

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