quinta-feira, 1 de outubro de 2009

Queda Livre (cont.)

3


Mário entrou no átrio do austero edifício e estacou. Com o indicador da mão direita, pressionou o espaço entre as sobrancelhas onde a dor de cabeça se estava a iniciar. Merda, mais valia ir para casa deitar-me, pensou, que hoje vai ser um dia perdido. Entrou no banco e dirigiu-se para o seu gabinete. Fechou a porta, sentou-se e descansou a cabeça nos braços cruzados sobre a secretária.
Assim está também Cecília, os braços cruzados sobre a secretária onde a sua fronte repousa. Não lhe dói a cabeça. Sente-se apenas um pouco entediada.
Ainda falta muito até à hora do almoço, quando Mário e Cecília estarão finalmente juntos. Poderão nessa altura falar da fuga de Joana e do desespero de Joaquim, da casa que vão comprar e do mais que lhes apetecer. E os seus gestos e atitudes explicar-se-ão por si mesmos. Mário fala, Cecília escuta. Mário passa a mão pelos cabelos, Cecília respira fundo. Mário acaricia a mão de Cecília com desprendimento. Cecília olha Mário fixamente nos olhos.
Cecília e Mário ambos de cabeça baixa, olhos fechados. Não pensam um no outro. Estão distantes. Qual o sentido desta estranha coincidência?
Mário ergueu a cabeça e espreguiçou-se.
Cecília ergueu a cabeça e espreitou desinteressada o quadro de Matisse. O poster, comprado já não se lembra bem onde, acompanha-a desde a faculdade, primeiro no quarto de uma residência feminina governada por freiras com mão de ferro; depois no apartamento dividido entre amigas, onde ainda vive; por último, com direito a moldura, nos vários locais onde tem trabalhado nos dois últimos anos. Cecília endireitou-se na cadeira e tentou concentrar-se. Não conseguiu. Levantou-se e foi à janela. Voltou para a secretária e sentou-se.
— Estás outra vez a olhar para essa merda — disse Virgínia, indo sentar-se sem a beijar como de costume.
— Já vi que te picou a mosca — respondeu Cecília com um sorriso.
— Antes fosse picada de mosca — riu Virgínia — É mas é coice de vaca.
— Qual é a última?
— Antes fosse a última. Mas é só mais uma das parvoíces da chefe. É mesmo um estafermo de gaja. Põe-me doida.
— Tu já és doida.
— Sou doida mas é por homens.
Riem as duas às gargalhadas. Virgínia levanta-se e presenteia-a com uma dança do ventre ao mesmo tempo que canta, eu sou doida por homens, eu sou doida por homens. Entrasse agora a chefe de má fama, que da fama já não se livra, e já que a tem pois que lhe fique com o proveito e certo é que sairia discurso do grosso: “Mas isto é um local de trabalho ou uma casa de passe? Vocês são assistentes sociais ou prostitutas? Vejam mas é se fazem qualquer coisa de útil.” Mas não entrou e não tiveram elas, Cecília ou Virgínia, ou as duas a uma voz, de lhe dizer, “Mais respeito se faz favor, que nós fazemos o nosso trabalho bem feito. Onde já se viu tamanha falta de delicadeza.” Mas tudo isto não aconteceu e, embora pudesse ter acontecido mesmo assim, talvez seja melhor ficar por aqui ainda que muitas vezes o que não acontece tem tanta importância como o que se afinal sucede.
— Não me dava jeito nenhum ir ao Congresso sobre as Mulheres Maltratadas. Fui pedir ao estafermo que me dispensasse, tu vais estar lá, mas não serviu de nada. Que nem pensar. Que era importante para o nosso trabalho. Que já estava marcado. Parecia um disco riscado. Grande coirão.
— Mas que te fez mudar de ideias?
— O meu marido vai ter de ir a uma reunião em Madrid e gostava que eu fosse com ele.
— Não te estou a perguntar o que lhe disseste.
— (…)
— (…)
— O Raul, sabes qual é, não sabes, convidou-me para passar o fim-de-semana com ele. Foi assim de repente. Já há bastante tempo que não nos vemos. Estou furiosa. Devia era meter atestado médico.
Virgínia tem sempre vários amantes que raramente mudam. É o seu harém, como ela gosta de dizer a Cecília. “ Não sou uma santa como tu. Quando percebi que o meu marido tinha amantes segui-lhe o exemplo. E ao longo dos anos mantive-os.” Raul é seu amante há mais de dez anos, e estando ela casada há doze, fácil é concluir que cedo descobriu que o marido não era adepto da exclusividade conjugal, antes preferindo fazer uns biscates.
Cecília estava divertida e indignada ao mesmo tempo. O estafermo, que nunca dizem o seu nome, por isso assim é designada, e outras vezes, ainda que menos, a chefe, e sobretudo na sua presença, bem podia ser mais compreensiva.
— Porque não o levas? — disse Cecília a brincar.
— Olha que não é má ideia — respondeu Virgínia pensativa. — Não é mesmo má ideia. A cidade é lindíssima. Romântica. Sim. Excelente.
— E podes levá-lo ao congresso. Talvez aprenda alguma coisa.
— O Raul já tudo sobre como maltratar uma mulher — disse Virgínia beijando os dedos num gesto que se pretendia sensual — E o melhor é que me bastaria ir lá buscar o certificado de presença. Sou mesmo burra. Acho que vou agradecer à chefe. Ainda sou paga para... Isto quase faz de mim uma prostituta.
Eu não dizia, pode agora afirmar a chefe, se lhe fosse dada uma oportunidade de se intrometer, razão tinha eu quando falava em prostitutas. É esta chefe um estafermo de primeira para aparecer onde não é chamada, que ainda a pouco a enxotámos e eis que ela volta mesmo sabendo que não é bem vinda.
— Devias levar o Mário. E o congresso que se fodesse!


— Foder, foder, foder, mas será que tudo passa por aí? Vamos foder! O que tu precisas é de uma boa foda! Mas onde é que isto nos leva? — É um homem ou uma mulher que falou? Esta voz que ouvimos não tem sexo, assim acontecerá enquanto não lhe acrescentarmos um “perguntou ele” ou “perguntou ela”. Talvez seja a voz de Virgínia, ainda há pouco era ela que falava e a sua linguagem bem pode ser apelidada de pícara, ou mesmo grosseira. Mas não é ela quem fala mas sim quem escuta.
— Onde quisermos ir. Nem mais nem menos. — respondeu Virgínia, olhando-o com displicência. Fora o seu primeiro amante, por estranho que pareça, não por iniciativa sua ou dela, mas do seu marido, ansioso por novos jogos amorosos.
— Estou cansado.
Os dois casais eram amigos. Os homens eram amigos. As mulheres eram amigas. Os homens desejavam as mulheres. As mulheres desejavam os homens.
— Pensei que me amavas.
Quem pôs tudo em marcha foi o marido de Virgínia. Quando os pares estavam juntos, acariciava a esposa com despudor numa discreta ostentação de sensualidade. Virgínia disfarçava. Virgínia recusava-o. Raul desejava Virgínia.
— Pensei que te fodia.
A mulher de Raul aproximou-se do par reclinado no sofá e deixou a sua mão percorrer o pescoço de Virgínia, rodear-lhe o ombro direito, deslizar para os seios, repetindo os gestos do marido de Virgínia.
— Já não sei!
Raul deixou cair o copo de vinho tinto que caiu no tapete de Arraiolos com um ruído abafado.


— O que é que eu vou aprender no estuporado Congresso que não saiba já?
Há muita coisa que tu não sabes, pensou Cecília mas calou a observação. Virgínia e os seus amantes fiéis, cópias imperfeitas de um amor impossível. Cecília diz-lhe às vezes que não sabe como é que ela aguenta, um homem já é difícil de aturar, imagina o que será aguentar vários. Virgínia explica-lhe que é fácil, mesmo muito fácil, se quiser ela ensina-lhe, que experiência não lhe falta. Cecília pergunta-lhe se ela não se cansa, Virgínia responde-lhe que o cansaço é parte integrante da vida.
— Nunca pensaste deixar de ter amantes?
— E será que eles queriam?
Mas mesmo se eles quisessem não o quereria Virgínia. Viver só para um homem! Viver um só amor! Que seca. Porque porra é que se há de mudar o que funciona menos-mal, isto para não dizer na perfeição, que é coisa senão impossível, com pouca tendência para durar. Claro que existem regras, Virgínia fixou-as há bastante tempo e não tem sentido necessidade de as alterar. Resumem-se a três. Primeira, todos os amantes devem manter uma relação conjugal estável, caso contrário corre-se o perigo de quererem alterar a ordem estabelecida, ou seja, deixarem-se de ser amantes e passarem a marido, o que estaria fora de questão. Segunda, que não existam fora do seu papel de amantes, isto é, que não seja um amigo do casal ou um vizinho que se encontra todos os dias, de preferência que não viva na mesma cidade. Raul foi uma excepção, a que confirma a regra. Terceira, os amantes não devem falar de amor, é difícil dizer que se ama sem acreditar no que se diz.
— Porque vives ainda com o teu marido?
— Entendemo-nos, porquê mudar?
Virgínia sabe que há certas coisas que quanto mais se mudam mais ficam na mesma, essa é que é essa! Nunca o esquece, é uma das suas certezas.


— Vou deixar a minha mulher, não aguento mais.
— Tens outra?
Estranha pergunta para uma amante, mas não para Virgínia e bem o devia saber Raul. Então porque continuou: — A outra és tu. Quero viver contigo.
Poderia Virgínia ter-lhe explicado outra vez as regras, pacientemente, enquanto o beijava, mas ficou calada, as mãos a percorrerem lentamente o corpo dele, à procura de uma resposta que não tardou.
— Sabes que isso nunca acontecerá. Queres-me?
Vou viver contigo, podia ela ter respondido a Raul, mas vou manter os meus amantes, que diferença é que isso faria? Não lhe perguntou se ele queria dessa forma. A questão era retórica e assim a entendeu ele.
— Sim, quero-te.
— Fode-me.


— É tudo uma questão de padrão.
Cecília tinha perdido o fio à meada. O que é que era uma questão de padrão?
— Agimos sempre de acordo com um padrão. A maior parte das vezes quando dizemos que estamos mudados, talvez seja verdade que pensamos assim, mas o padrão mantém-se. Estou a falar dos maus-tratos, é tudo uma questão de padrão.
Virgínia é a mulher que ama vários homens, conta ela a si própria. Era uma vez uma mulher que amava vários homens e a nenhum se queria entregar. Não, era uma vez uma mulher que se entregava a vários homens sem ser de nenhum. Este é o padrão, mas quem será Virgínia? O autor e os seus actos confundem-se? Os actos revelam o autor? Assim Virgínia não se distinguirá de outras mulheres — e homens, porque não? — que, tal como ela querem amar, amar perdidamente. Assim divagava Cecília, olhando a colega, espreitando o quadro, a manhã a escoar-se lentamente.
— Estás a olhar para essa merda outra vez? Não me dás nenhuma atenção. Porque é que as mulheres batidas regressavam invariavelmente para os braços dos agressores? Isto quando lhes conseguem fugir, é claro, o que não se pode afirmar que aconteça com frequência. Porquê? E não me digas que é por dependerem deles economicamente. A maior parte das vezes não é assim, sabes bem disso.
Por que fazemos o que fazemos? Porque não agimos de forma diferente? Se actuarmos de forma diferente seremos outras pessoas? Ou continuamos a ser nós mesmos, independentemente do que fazemos? Estas questões ocupam muitas vezes Cecília, não nos podemos esquecer que ela é uma profissional da ajuda, e ainda que tenha a constante certeza que pode ajudar os outros, às vezes interroga-se como.
— Somos aquilo que acreditamos ser.
— O que é que queres dizer com isso?
A conversa poderia prolongar-se indefinidamente. Estivesse a chefe a escutar à porta e a acharia interminável, um interminável desperdício de tempo. Mas de onde está, apesar da porta que teima em manter sempre aberta, não escuta as palavras trocadas mas apenas os sons que elas deixam e, embora considere que melhor seria que trabalhassem, ainda pode pensar que falam de trabalho.
A voz de Virgínia é rouca, um pouco áspera. A voz de Cecília é suave com pequenos picos agudos. As secretárias estão dispostas perpendicularmente o que as obriga a voltarem-se quando falam, por isso muitas vezes uma delas vem sentar-se à frente da outra.
Os gestos de Virgínia são sempre um pouco bruscos, como se lhe fosse difícil exercer controle sobre o seu corpo. Sublinha as suas afirmações com acenos súbitos de cabeça que lhe fazem ondular madeixas louras. Os movimentos de Cecília são dolentes, como se lhe fosse difícil dar-lhes início. Esta quase imobilidade dá às suas palavras uma tonalidade mesclada de sabedoria e compaixão.
Ambas têm as suas certezas.
— Agimos de acordo com padrões a que não conseguimos fugir, como moscas apanhadas numa teia apertada.
— Podemos mudar se acreditarmos nisso.
Em que é que as pessoas são diferentes? O que as faz únicas?
— Para mudarmos verdadeiramente temos de saber quem somos.
— Se agirmos de forma diferente seremos diferentes.


Esta mulher que está sentada à minha frente e me diz que vai dar ao marido uma segunda oportunidade, em que é que se distingue da outra que me afirmava a mesma coisa há alguns dias atrás? Por instantes Cecília interroga-se se não será a mesma pessoa. Esta mulher tem um rosto, mas os rostos confundem-se quando a história que se conta parece sempre a mesma. Ele bate-me quando bebe de mais. Insulta-me. Isso é o que ele faz mas quem é ele? Sei que ele gosta de mim, eu ainda gosto, apesar de tudo. Esta mulher tem uns olhos doces, as suas mãos são esguias, deve estar na casa dos trinta mas parece mais velha. Cecília escuta. Cecília escuta sempre. Está imóvel e o seu rosto quase não tem expressão. Duas mulheres frente a frente. Mas porque não mandas passear esse teu marido imprestável?, apetecia-lhe dizer Cecília, mas cala-se. É a minha sina, diz a mulher, ou terá sido a outra, porque esta ama o marido, será essa a sua sina, amar, ou ser batida. Esta mulher tem um rosto, rosto que se repetirá pela cidade do interior onde procurou abrigo. Debaixo do rosto repetido, o apelo: Procura-se esta mulher, por favor telefonar para .... dão-se alvíssaras. Uma história de amor? Um homem procura uma mulher. Um homem apaixonado procura a sua amada. Um agressor procura a sua vítima. O agressor e a vítima. O bom e o mau. O seu marido não presta! O meu marido ama-me. O seu marido bate-lhe. O meu marido é assim. Quanto mais me bates mais gosto de ti, é nisso que acredita? Não o amo porque me bate, não me bate porque me ama. Ama-me. Bate-me. Quero que me deixe de bater mas não quero que me deixe de amar.
A mulher, Cecília não recorda o seu nome, não vê o seu rosto, está sentada à sua frente a contar a mesma história que sempre contam todas as mulheres que ali acorrem. Cecília escuta. Cecília toma notas. Mais tarde traçará um breve quadro, depurado de todos os pormenores inúteis, esvaziado de tudo o que torna singular a situação desta mulher. Fará o registo de mais um caso. Mais um caso. Mais uma mulher.
Em que é estas mulheres são diferentes? O que as faz únicas? Porque o que as torna semelhante é por demais óbvio.
— Às vezes não aguento e vou-me abaixo. Nessas ocasiões penso que por má que a minha situação seja, é um território que conheço, onde me sei movimentar, onde sei sempre o que pode acontecer.
Cecília ergue o lápis (não gosta de escrever a caneta), leva-o à boca e morde-o, sentindo a madeira a ceder aos seus dentes com desespero.
— Se o deixasse não sei o que aconteceria. Podia ser muito melhor. Sim, podia. Mas podia ser pior. E de cada vez que o sonho nos escapa a realidade torna-se mais dura, mais pesada.
Cecília prende o lápis entre as mãos fechadas, pousadas sobre as pernas, e faz força, esperando a todo o momento ouvir o estrondo triste da resignação.
— Já tive outros homens, este não é o pior... gosta do filho... beija-me sempre que sai de casa... Mas às vezes não aguento mais.
Excepto uma mesa circular e quatro cadeiras não existe qualquer mobiliário na pequena sala de entrevistas. “Às vezes não aguento mais.” As paredes estão vazias. A porta está fechada. “Não aguento mais.”


A cama é um lugar onde os corpos se deitam e se amam. O quarto é um espaço delimitado por muros que nada guardam ou escondem. O quadro na parede está lá mas ninguém o observa. A luz invade o quarto mas os odores dos corpos nublam-lhes a visão. Onde estão? O que está volta deles? Tudo desapareceu excepto eles e o que dentro deles restou. Quem somos? Quem sou eu? Quem és tu? Dentro e fora. Fora e Dentro. Interior e exterior. Onde estão os limites? Por breves instantes as palavras projectam sombras que se estendem a perder de vista.
— Fodo-te.
— Sim, fode-me.
O candeeiro da mesa-de-cabeceira caiu na tijoleira com estrondo. Raul sente que algo se quebra dentro dele.

Cruzeiro Seixas

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