QUEM
QUER SER PORTUGUÊS
(poema
didáctico)
Luís Ene
1
“Portugal: questão que eu
tenho comigo mesmo”
Alexandre O’Neill
Ser
português nunca foi um problema. Os portugueses sempre foram bons a
ser. Mas Portugal mudou, mudou tanto e tão depressa que os
portugueses ainda não deram por isso.
Portugal
é hoje um país medíocre, o que é bom para um país que sempre foi
mau ou mesmo péssimo.
Portugal
já não é o mesmo, mudou bastante, os portugueses é que parecem os
mesmos de sempre.
Ser
português é uma arte antiga, desacreditada e inútil, completamente
inútil.
2
“O país é pequeno e a
gente que nele vive também não é muito grande”
Almeida Garrett
Os
portugueses raramente são inteiros, existem apenas do pescoço para
cima ou do pescoço para baixo.
O
português é sempre pessimista e taciturno. Mas se é pessimista a
tempo inteiro, já taciturno só o é por turnos.
Os
portugueses quando pensam não agem,
e
quando agem não pensam.
O
português observa sempre muito, pensa bastante e critica ainda mais,
não é de admirar que pouco tempo lhe reste para agir.
Para
o português a questão nunca é ser ou não ser, para o português a
questão é sempre parecer ou não parecer. Para o português, pior
do que ser pobre é parecer pobre. O português parece sempre rico,
sobretudo quando é pobre.
O
que mais distingue os portugueses é a sua quase obsessiva
necessidade de imitar os outros. Apesar do aumento crescente das
desigualdades em Portugal os portugueses continuam cada vez mais
iguais: nenhum quer verdadeiramente ser diferente.
O
português lembra-me muitas vezes aqueles homens que no esforço
desesperado de esconder a sua calvície ainda mais a revelam.
O
português esforça-se tanto por parecer quem não é que acaba por
ser quem afinal parece: alguém a tentar desesperadamente ser quem
não é. Ser português não é um estado, ser português é uma
aldeia.
O
português preocupa-se muito com quem é e com quem não é, quando
melhor seria que se preocupasse com o que quer ser; ou então que não
se preocupasse de um todo e se limitasse,
apenas,
activamente,
a
ser.
A
verdade, se querem mesmo saber, é que o português nunca fica bem na
fotografia,
nunca
fica bem na fotografia e todos os espelhos o deformam.
3
“Esta é a ditosa Pátria
minha amada”
Luis de Camões
Em
Portugal nada se perde, nada se cria, tudo fica na mesma.
Num
país atrasado como Portugal, nunca chegar a horas nem cumprir prazos
é sem dúvida uma sólida demonstração de sensatez. Em Portugal a
justiça não é lenta,
o
tempo é que passa cada vez mais depressa.
Em
Portugal, o tempo comporta-se de forma muito estranha, o presente
repete sempre o passado e o futuro não é mais
do
que o presente repetido.
Em
Portugal há um equilíbrio perfeito entre patrões e empregados: os
patrões têm todo o poder, os empregados têm toda a
responsabilidade.
Se
existisse um super-herói português estou certo que diria que com um
grande poder vem sempre uma grande
irresponsabilidade.
Mesmo
quando nunca parece, o português
sempre
padece.
Um
português nunca está bem ou mal, está sempre assim-assim, ou então
mais ou menos.
O
verdadeiro português é completamente falso, tanto mais falso quanto
mais verdadeiro.
Os
portugueses são os primeiros a classificar a sua condição como boa
(uma
boa merda, se quisermos ser exactos).
4
“Deus e o demónio são
incompatíveis em toda a parte, excepto em Portugal”
Teixeira de Pascoaes
O
português é um ser paradoxal, vive acima das suas possibilidades e
abaixo de cão.
O
português não gosta de trabalhar, quando não é preguiçoso é
poeta.
O
português odeia a corrupção. Odeia-a com a mesma intensidade com
que inveja os corruptos. O português não discrimina os outros, o
português trata igualmente mal uns e outros.
O
português é pacífico, mas revolta-se com facilidade, a mesma
facilidade com que de novo se submete.
No
que toca à língua, os portugueses lembram alguém que atraiçoa o
seu amor, a torto e a direito, por tudo e por nada, e depois afirma
que o amor é que é traiçoeiro.
O
português quase nunca é quem se julga ser; ou então é quem não
é, o que é afinal uma outra forma de não ser.
O
português é sempre vários, o problema é que a soma nunca dá
certo.
Portugal
tem sido tão constante a exportar portugueses quanto a não se
importar com eles.
Será
que o português não gosta de trabalhar porque é mal pago, ou será
que é mal pago porque não gosta de trabalhar?
5
“terra de poetas tão
sentimentais que o cheiro de um sovaco os põe em transe”
Jorge de Sena
Os
portugueses são inventivos e criativos, conhecem 1001 maneiras de
cozinhar bacalhau, mas têm um único modo de ser, triste e
envergonhado.
Os
portugueses riem muito, mas é quase sempre um riso alarve, que ri
dos outros e nunca de si mesmo. Talvez por isso, quem sabe, os
portugueses sejam tão tristes.
Os
portugueses são tristes, tão tristes que os sorrisos têm sempre de
se submeter a rigorosos testes de selecção.
Os
portugueses são tristes,
são
tristes mas não são uns tristes.
Os
portugueses são tristes, são tristes e são poetas.
Por
isso é que em Portugal tantos poetas são tristes e tantos tristes
são
poetas.
Escusado
será dizer que o português adora a língua, mais a de vaca do que a
de porco, sobretudo quando estufada, com ervilhas.
O
português culpa-se muito,
culpa-se
muito e desculpa-se ainda mais.
Os
portugueses lamentam-se tanto que, quando não se lamentam tanto,
ainda
mais se lamentam.
Para
o português é sempre tudo ou nada e,
por
isso, raramente alguma coisa.
6
O meu país é o país dos
quatro efes
João Bentes
O
português é persistente, muito persistente, persiste continuamente
nos mesmos erros. Ser português é sempre não ser, não ser mais do
que isso.
Ser
português é afinal uma enorme arte, uma enorme arte e um ainda
maior desastre.
Ser
Português não se ensina;
mas
também quem o quereria aprender?
O
corpo humano é constituído por 60 a 70 por cento de água. Fosse
vinho e todo o planeta seria português.
O
português reage aos problemas e adversidades de forma singular mas
invariável: ou somatiza ou soma tusa.
Não
ter cão e caçar com gato é ser esperto. Ter cão e caçar com gato
é ser português.
Em
dias de nevoeiro os portugueses passeiam-se orgulhosamente de óculos
escuros.
O
pior de ser português, de acordo com a maioria dos portugueses, é
que não há nada pior do que ser português
7
No meu país não acontece
nada
Ruy Belo
Em
Portugal nada se cria, nada se perde, tudo fica na mesma. Nada vale a
pena em Portugal, quando não é o corpo é a alma que está mal.
Existe
uma tão grande correspondência entre a pequenez do país e a
pequenez dos portugueses, que é legítimo perguntar se foi o país
que os fez à sua medida ou se foi exactamente o contrário.
Deixassem
os portugueses de se preocupar tanto com o seu real tamanho e talvez
pudessem
vir
a ser do tamanho dos seus sonhos.
O
português ora fala de mais ora de fala de menos, que é afinal o que
normalmente acontece a quem não tem nada para dizer. Mas o português
tem de falar-se, pena é que seja muito melhor
a
calar-se.
Esquecida
que foi a raça, os portugueses tornaram-se rafeiros. Uma raça de
rafeiros, se é que me percebem.
Em
Portugal a única regra que não tem excepção é a de que não há
regra sem excepção.
Será
que os portugueses acreditam em Portugal?
Os
portugueses acreditam em Portugal, não parecem é acreditar que são
Portugal.
8
“Minha pátria é a língua
portuguesa”
Fernando Pessoa
Portugal
é dos Portugueses, mas só de alguns, dos mesmos que querem vender
Portugal.
O
português vive mal,
vive
mal mas sobrevive bem. O português é inculto, piegas e não gosta
de fazer sacrifícios. Não admira assim que tenha
os
governantes
que
tem.
Saudade
é uma palavra que só existe em português. Imarcescível também. E
o mesmo para tartamudo.
O
português sente sempre saudade da ditosa pátria sua amada, aquele
lugar triste onde nasceu e onde cedo conheceu o exílio.
Para
o português a sua língua é cada vez mais a sua pátria, uma pátria
resistente e portátil que poderá sempre ter consigo quando Portugal
não existir.
Se
um português está fraco é porque está doente, mas se está forte
é porque está gordo.
Os
portugueses são infelizes e talvez não o possam deixar de ser, mas
bem podiam habituar-se a ser infelizes à vez ou apenas de vez em
quando.
Portugal
é pequeno e nunca será grande. Mas se nunca será grande, sempre
poderia ser Grândola.
9
Eu gosto desta terra. Nós
somos feios, pequenos, estúpidos, mas eu gosto disto.
António Lobo Antunes
Há
duas formas comuns de ser português.
Uma
é falar sempre mal de Portugal. A outra
é
nunca falar bem.
O
português nunca está ambivalente, nunca,
O
português está sempre
ambimedroso.
Portugal
é um país de mortos-vivos.
Em
Portugal nenhum assunto se resolve,
nenhum
assunto fica realmente
morto
e enterrado.
Da
discussão nasce a luz, é verdade, mas também é verdade que a luz
se paga, e está cada vez mais cara. Talvez seja por isso os
portugueses evitem tanto discutir.
Não
é verdade que os portugueses sejam uma grande seca. Pelo menos 30%
são seca extrema.
O
homem está entre a besta e o arcanjo, o português está entre a
besta e o marmanjo.
O
melhor amigo do homem é o cão, o melhor amigo do português é o
cão-guia.
Não
sei do que o português gosta menos, se de ser mandado, se de mandar,
mas, mandem-me onde me mandarem, deixem-me dizer que esse é sem
dúvida o principal problema de Portugal.
Portugal,
tal como os portugueses, vai sempre andando, andando, andando. Talvez
por isso nunca chegue verdadeiramente a lugar algum.
10
Somos um povo de pobres com
mentalidade de ricos.
Eduardo Lourenço
Em
Portugal a política é sempre uma questão privada. Entre a política
e o cidadão não há qualquer relação.
É
certo e sabido que os portugueses amam os seus semelhantes. Por isso
é que idolatram e escolhem para seus chefes homens sem qualidades,
homens que por sua vez acreditam,
acima
de tudo,
na
ausência de qualidades dos portugueses.
Em
Portugal a política e a arte são assunto exclusivo dos políticos e
dos artistas, uns e outros tão pequenos
e
auto-insuficientes como todos os
portugueses.
Em
Portugal nunca se volta atrás com a palavra, em Portugal volta-se
sempre atrás com a acção.
Em
Portugal decide-se muito, é verdade.
decide-se
muito e cumpre-se
ainda
mais.
Um
verdadeiro português nunca tem orgulho de Portugal mas tem sempre
orgulho de ser português. Ou será ao contrário?
Encontrem
um homem que se orgulhe de Portugal e dos portugueses e encontrarão
um homem ingénuo. Ou então perigoso, perigoso e necessário.
É
verdade que os portugueses contam piadas sobre tudo, mas o seu
verdadeiro problema nunca foi esse, o seu verdadeiro problema é
acreditarem nas piadas que contam.
11
“Ai,
Portugal, Portugal
De que é
que tu estás à espera?
Tens um pé
numa galera
E outro no
fundo do mar”
Jorge Palma
Portugal
é a terra onde vivem os portugueses, mas os portugueses são
Portugal, o resto é paisagem.
Houve
um tempo em que estávamos orgulhosamente sós. Esse tempo já
passou. Agora já não estamos sós. E muito menos orgulhosamente.
Os
portugueses invejam quem foram e lamentam quem são. A continuarem
assim, grande coisa nunca
serão.
Os
portugueses não acreditam na providência, mas acreditam em homens
providenciais. O impossível parece-lhes sempre mais apetecível.
É
verdade que os portugueses avançam sempre de olhos postos no passado
e, em consequência, de costas voltadas para o futuro, mas isso não
me parece um problema. Para alguma coisa existem os espelhos
retrovisores!
Os
portugueses dividem-se entre os que detestam e os que idolatram o
processo de decisão, o que é o mesmo que dizer que um português,
qualquer que ele seja, nunca chega realmente a decidir o que quer que
seja.
Os
portugueses têm de mudar.
Nem
que para isso tenham de deixar de ser portugueses.
Os
portugueses têm de mudar.
Ou
mudam o país ou mudam de país.
12
Eu
sou o meu país,
sou
aquele que se cala, sou aquele que se diz.
Sou
o meu país e isso é que me dói.
Sou
o meu país e isso é que me rói.