História da cantora de jazz e do homem que perdeu a cabeça



Quando a cantora de jazz desceu para a estação de caminho-de-ferro da pequena cidade do interior onde ia cantar, só viu um cais deserto.

- Mas que raio de coisa é esta? - Cantou num timbre velado, ao mesmo tempo doce e áspero, que deixou ecos aflitos como mosquitos excitados em dia de verão.

- Cala-te - ordenou uma voz cava. - Arrelias-me com essa cantoria.

Ela, de nome Ela em homenagem à outra, mas só com um ele que por cá a letra dupla passa por ostentação barata, vagueou o olhar à procura do autor do protesto.

- Que coisa mais estranha - disse Ela e repetiu: Que coisa mais estranha!

Calou-se, à escuta, mas só o silêncio lhe respondeu. O cais continuava deserto. Aliás, agora que olhava melhor, apercebeu-se que, na verdade, nada mais existia para além dele. Onde estava o edifício da estação? Onde estava o comboio? Havia qualquer coisa que lhe escapava. O altifalante gritara o seu destino e quase podia jurar que avistara a cidade. Onde diabo estava tudo o que devia estar ali?

- Baby, baby, o que fazes aqui? Estás perdida ou fora de ti? - Cantou dando à sua voz uma sonoridade flexível de oboé. Quando estava muito zangada, alegre ou pensativa Ela cantava: era a sua natureza.

- Recomeças? Não disse que te calasses? - A mesma voz desagradável fez-se ouvir de novo.

- Onde estás que não te vejo? - Perguntou Ela olhando em redor, a ver se identificava a origem da misteriosa voz.

- Estou aqui em baixo, mas não te quero ver - foi a resposta que obteve. - Só quero que deixes de cantar. Até podes ficar por aí, desde que não cantes. Fazes-me dor de cabeça.

Ela caminhou para a beira do cais e espreitou intrigada para baixo. Quase caía e a sua voz soltou-se num fraseado de espanto não contido. Deitado de costas na linha do comboio, atravessado nos carris, estava um homem sem cabeça que a olhava zangado. Em boa verdade, a cabeça, que como toda a gente sabe manda a natureza que repouse solidamente em cima dos ombros, segurava-a ele com ambas as mãos contra o peito.

- És mesmo teimosa. Não percebeste ainda que não quero ser incomodado? - disse o homem, virando a cabeça ligeiramente de lado com as mãos, com ar de quem não queria falar mais.

- Desculpa-me - disse a cantora - mas embora tenha conhecido muitos homens nunca me deparei com um tão singular como tu.

- Em que é que eu sou diferente? Falta-me alguma coisa? - Perguntou o homem exaltado, ainda deitado sobre a linha, rodando com brusquidão a cabeça de modo a enfrentar o olhar dela.

Ela não sabia o que lhe responder. Não queria ofendê-lo pois sabia que os fantasmas, e só podia ser um fantasma, são muito susceptíveis e vingativos. Não era mulher para correr riscos desnecessários.

- Perdeste o pio? Olha que se não és ave és certamente canora, demasiado canora para o meu gosto. Diz-me lá então porque me achas diferente? - Insistiu ele

- Êiii êi bi bá beru, o que me dizes tu? - Cantarolou Ela sem se aperceber.

- É o que eu digo! Não há forma de parares com essa cantoria - resmungou o homem ao mesmo tempo que tapava os ouvidos com as mãos.

- Se me ajudares eu talvez possa ir-me embora depressa e deixar-te sozinho! - Quase soletrou Ela esforçando-se por não cantar.

- Queres que eu te ajude?

- Porque não?

- Nunca ninguém me pediu realmente ajuda - disse ele pensativo.

- Foi por isso que te mataste?

O homem levantou-se e estendeu os braços de forma a aproximar o mais possível da cantora o seu rosto de olhos muito abertos.

- Ora deixa lá ver se percebi. Achas que eu me suicidei?

- Era uma hipótese, naaaããããuuuuéééraaaaa? - Perguntou Ela, a voz a tremer-lhe num arremedo de canto.

Ele ignorou-a e sentou-se com a cabeça no colo.

- Mataram-me! Ouviste, mataram-me! - Gritou com a cabeça erguida bem alto.

- O quê? Uqêêêrêrêê? - Cantou ela.

O homem arremessou a cabeça que passou gritando por Ela, a pouco mais de um palmo do seu rosto, e caiu no chão com um gemido cavo. A cantora apanhou a cabeça do chão com uma repugnância não disfarçada e manteve-a estendida à sua frente olhando-a com reprovação.

- Ok, mataram-te, mas não precisas ser rude e mal-educado - disse Ela bastante zangada mas sem cantar, o que pareceu acalmar o homem.

- Desculpa-me, há muito tempo que estou só. Não sei o que me deu. Fui demasiado longe.

- Compreendo, perdeste a cabeça - gargalhou Ela, começando a atirar repetidamente a cabeça dele ao ar.

- Pára. Pára! - Gritava a cabeça, mas a cantora parecia ter enlouquecido e cada vez a atirava mais alto.

- Mais alto, mais alto.

- Pára. Pára - implorava a cabeça - Eu ajudo-te em tudo o que puder.

A cantora agarrou a cabeça com as duas mãos e beijou-a na testa com exuberância.

- Meu querido, eu sabias que tu me ias ajudar.

- Preciso arranjar-me um pouco, se não te importas - respondeu a cabeça com um sorriso ríspido, relanceando o olhar pelo corpo que se erguera para o cais com desenvoltura e se aproximava. As mãos cegas agarraram a cabeça e colocaram-na em cima dos ombros. O homem agora completo apertou o colarinho e ajeitou o nó da gravata. Pareceu ir passar a mão pelo cabelo mas deteve-se.

- Anfitrião, às suas ordens disse com um vénia ligeira que mesmo assim lhe fez cair a cabeça nas mãos.

- Ponha-se à vontade - disse ela com uma pequena risada - não sou de cerimónias.

- Diga lá então em que lhe posso ser útil - disse o homem segurando a cabeça contra o peito.

- Pode desde já responder-me a algumas perguntas. Primeiro que tudo, onde estamos?

- Eis uma pergunta para a qual tenho uma resposta clara: estamos precisamente em lugar nenhum - assim disse Anfitrião e calou-se, à espera de nova pergunta.

- E como se sai daqui? - Perguntou Ela sem comentar a resposta.

- Mais uma vez tenho uma resposta inequívoca: não se sai.

- Eis um raciocínio de uma perfeita coerência: não se pode sair de um lugar que não existe - troçou Ela, fazendo meia volta e começando a afastar-se. Anfitrião pareceu ir dizer alguma coisa mas ficou calado, as mãos nas ancas em gesto de desafio e a cabeça debaixo do braço direito.

Ela esforçava-se por avançar mas não conseguia. Era uma sensação estranha, como a que se experimenta num sonho em que andamos sem parar mas não saímos do mesmo sítio. Tentou com desespero em várias direcções mas sempre sem qualquer resultado. O seu campo de acção apresentava-se tão diminuto e informe como o seu campo de visão. O cais estava ali e parte da linha do comboio também, mas fora desses ténues limites materiais os sentidos apenas conseguiam captar uma ausência luminosa que os cegava. Quem pensa que o nada é negro é porque não conhece o vazio da folha em branco.

- Prefiro pensar num não-lugar e numa não-saída mas não quis parecer pretensioso - disse Anfitrião esboçando um sorriso tímido.

Ela avançou para ele e abraçou-o com força, repousando o rosto molhado no ombro dele. Anfitrião puxou a sua cabeça de entre os corpos unidos e rodeou Ela com o braço esquerdo enquanto com o direito segurava a sua cabeça de encontro à dela.

- Estamos ambos mortos, não é?

- Existimos. Que importância tem se estamos mortos ou vivos?

- Há quanto tempo estás aqui? - continuou a cantora com uma voz que tremia um pouco.

- Desde que me recordo - respondeu ele.

- Quem eras antes? - Inquiriu ela

- Não tenho a certeza que alguma vez tenha sido alguém - gritou ele ao ouvido dela fazendo-a estremecer de susto.

- Não faz sentido, não faz sentido nenhum. - Cantou ela desprendendo-se dele.

Anfitrião sentou-se na beira do cais e deitou a cabeça no colo com um gesto que ela classificou de desânimo. Depois, inclinou o tronco para trás apoiado nas mãos abertas como se estivesse a olhar o céu. Ela temeu que a cabeça fosse rolar e antecipou-se recolhendo-a entre as suas mãos. Anfitrião não se mexeu e Ela viu que os seus olhos estavam fechados. Pousou suavemente a cabeça no seu colo emoldurando-a com os braços.

- Fui não sei quem - disse ele sem abrir os olhos.

- Euúnãupercebunada nadadenada mesmunada - cantarolou ela.

- Fala-me de ti! - Ordenou ele.

Ela olhou para ele admirada e durante algum tempo pareceu que nada ia dizer. O corpo dele estava agora deitado no cais, com as pernas de fora, mas a cabeça permanecia ao colo dela e observava-a com atenção.

- Sou uma cantora de jazz - disse Ela finalmente mas calou-se de novo e recomeçou a chorar em silêncio.

- Tu também não te lembras de nada - disse ele como se falasse consigo mesmo. - Tu também não sabes quem foste nem como chegaste aqui!

Ela desceu para linha e deitou-se ao comprido junto a um dos carris. Ele veio estender-se ao seu lado, a cabeça caída entre os dois.

- Mataram-me - disse ele - amarraram-me e deixaram-me aqui. Era de noite. Recordo que olhava as estrelas e esperava a morte. É nessas alturas que toda a nossa vida passa diante de nós num desfile louco de Carnaval.

- Ia da capital para uma cidade do interior em que nunca estivera - disse ela. - Anunciaram o nome da cidade e saí. Agora estou aqui neste estranho lugar que parece existir fora do espaço e do tempo e não consigo lembrar-me quem fui.

Não há nada melhor que fechar os olhos e ver, disse Anfitrião imperativo e Ela fechou os olhos. Anfitrião tinha razão. Quase podia ver quem tinha sido.

- Ia cantar. Os músicos tinham ido de carro mas eu tive de ficar para trás. Ia juntar-me a eles. Era o início de uma digressão que nos ia levar pelo interior do país durante mais de dois meses. O saxofonista estava apaixonado por mim, loucamente apaixonado, e eu por ele. Não se pode pedir mais quando dois corações se tornam num só.

- Tenho a certeza que fui assassinado. Não me recordo de nada mas só pode ter acontecido dessa forma. Não sou pessoa para me matar. Amo a vida, sempre amei. Sabia demais. Era muito perigoso para eles deixarem-me vivo. Iam ficar muito tempo à sombra e isso eles não podiam consentir. Estava muita coisa em jogo. Iam rolar muitas cabeças em lugares altos.

- Amei todos os meus homens, mentiria se dissesse o contrário. Não me recordo dos seus rostos nem dos seus nomes mas sei que os amei a todos com o mesmo amor que só uma mulher tem para dar.

- Estás a aprender depressa. - Disse ele com um sorriso aberto.

- Quem fui? - Perguntou ela

- Fostes quem quiseres ter sido.

- Há quanto tempo fazes de conta que sabes quem foste?

- Talvez há demasiado tempo. A solidão pode ser difícil de suportar quando não temos nada para recordar senão aquilo que inventamos.

- Agora não estás só - disse ela num sussurro momentâneo. - Porque te preocupas tanto com o passado?

- O passado explica o presente e prepara o futuro - disse ele e sentou-se com a cabeça pousada no colo. Ela soergueu-se e olhou para ele com uma atenção redobrada. Anfitrião colocou apressadamente a cabeça entre os ombros e continuou: Sou como toda a gente. Tenho um passado e é perfeitamente natural que pense nele de vez em quando. Mataram-me, tenho a certeza. A partir deste facto construi o meu passado. A princípio acreditei que tinha sido um detective que se meteu em sarilhos dos grandes e foi apagado pelos maus. Um verdadeiro romance policial. Seduzi mulheres bonitas, andei à pancada, bebi demais e por aí adiante. Mas cansei-me. Agora sei que fui um jornalista que descobriu qualquer coisa muito importante: um daqueles furos que pode fazer cair um governo.

- Porque tens tanta certeza que morreste? Porque te preocupas tanto com isso. A morte não me parece um bom ponto de partida. Existes, não é verdade? Isso devia ser-te suficiente!

- Penso que sei quem fui. Penso que existo. Mas isso na verdade não prova coisa alguma.

- Mas se pensas logo existes!

- A existência de pensamentos não me parece ser garantia da existência de um ser pensante. Talvez os pensamentos existam da mesma forma que existe a realidade: sem precisar que alguém a pense.

- És um homem muito estranho - disse ela, acariciando-lhe a cabeleira revolta com cuidado para não a tombar.

- E tu uma mulher muita sedutora - disse ele encostando-se a ela.

Ela calou-se por alguns instantes e quando falou parecia cantar, tal era a energia que lhe animava a voz

- Não quero saber quem fostes. Estás aqui comigo, ao meu lado. Prefiro que me fales de quem és, Anfitrião; ou ainda melhor, fala-me de quem somos!

- Eu sou um jornalista e tu és uma cantora de jazz.

- Isso pode ser o que fazemos, quem somos é uma coisa diferente.

- Então não somos o que fazemos? - Murmurou ele para si mesmo.

Ficaram a observar-se em silêncio e pareceu-lhes que se estavam a ver pela primeira vez.

Vejo um homem determinado nas suas ideias mas contido nos seus sentimentos. Nenhum obstáculo o pode deter quando acredita que a razão está do lado dele. A sua força é a sua fraqueza. Quer mudar o mundo mas não conhece o amor. O seu lado racional asfixia a sua necessidade de paixão.

Vejo uma mulher que acredita no poder infinito do amor. Deseja intensamente amar e ser amada mas teme que o amor só exista verdadeiramente nas canções de jazz. Ama todos os homens e nenhum pois o amor dela é tão poderoso que os assusta de morte. Quer amar mas não encontrou ainda nenhum homem capaz de receber o seu amor.

Um lampejo de reconhecimento percorreu-lhes o olhar. Ficaram de novo em silêncio mas sabiam agora que algo tinha mudado.

- O que nos está a acontecer? - Disse Ela lançando uma gargalhada nervosa. Levantou-se estendeu-lhe a mão numa oferta de ajuda.

- Pouco me interessa. Estamos aqui e agora. Isso é que é importante - disse ele levantando-se num salto acrobático que lhe fez cair a cabeça.

- Perdes a cabeça com muita facilidade - disse ela com um ternura indisfarçada .

- Vês o estado em que me deixas? - Afirmou ele já com a sua dignidade reposta.

Abraçaram-se e beijaram-se.

Um vento quente ergueu-se ao longe e atravessou apressadamente o cais. Quando o comboio entrou na linha beijavam-se ainda.

O homem baixou-se, agarrou as duas malas e seguiu a mulher para dentro da carruagem mais próxima. Beijavam-se quando o comboio partiu. Uma mulher gorda que há muito passara os quarenta chamou a atenção do marido: Ó querido, olha-me para aqueles pombinhos, parecem tão felizes, até aposto que são casadinhos de fresco. Pobres diabos, resmungou o homem calvo sem levantar os olhos do jornal desportivo, têm o futuro pela frente!



“Os limites do meu mundo são os limites da minha linguagem”, terá dito Wittgenstein.

Cruzeiro Seixas

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