Não aguento
mais. Vão-se todos foder.
***
Uma linha, duas frases, seis palavras, é tudo o que está escrito nas
costas de um envelope fechado, contendo publicidade.
O envelope, com a mensagem visível, está em cima de uma pequena mesa
vazia, encostada a uma das paredes, perto da janela, com apenas uma cadeira.
O quarto é pequeno, mas a cama é confortável e veem-se quadros e
fotografias nas paredes, de indiscutível qualidade.
Quem ali vive?
Será um bilhete de suicídio?
***
Conhecem-se há muitos anos,
desde a infância, e durante muito tempo a vida de ambos seguiu o mesmo caminho,
depois menos, cada vez menos, até que um subiu cada vez mais alto e o outro
desceu cada vez mais baixo. Encontram-se raramente e sempre por iniciativa do
primeiro, o rico, o famoso, o mais determinado dos dois.
***
Pensei que não vinhas, estava
quase a ir-me embora, diz Evaristo, num tom neutro, que contrasta com o seu
habitual tom agressivo.
O outro senta-se, com gestos
lentos, olha em volta, olha para o amigo, e diz-lhe que detesta estes locais
elegantes. Evaristo responde que nestes locais eles são invisíveis, ninguém os
incomodará, ninguém ousará importuná-los.
Esse não é um problema meu, eu
sou sempre invisível, diz Paulo, num tom neutro, com um sorriso triste a sublinhar a
frase.
***
Ambos sonharam ser ricos e
famosos, estar entre os melhores, e foi isso que aconteceu, mas apenas a um
deles. O que fez a diferença?
Não tenho sorte nenhuma, diz
Paulo.
Quis sempre ser o melhor, e fiz
tudo para o ser, a sorte não vem ao caso, diz Evaristo.
A sorte é sempre importante, o
azar existe, diz Paulo.
Fizemos escolhas, o que nos
aconteceu não tem nada a ver com sorte e azar. Não que a sorte e a má sorte não
existam, mas as nossas escolhas prevalecem muitas vezes, as boas e as más.
Tu sempre foste o melhor.
Eu sempre quis ser o melhor, e
fiz tudo por isso, fiz sempre tudo por isso. Tu sabes que foi isso que fiz,
apenas isso.
***
E agora estamos aqui, tu rico e
famoso, tu rico, riquíssimo, o melhor do mundo, e eu pobre, quase sem abrigo,
desconhecido, esquecido de todos.
Deixa-te de lamentações. Queres
ser rico? Dou-te metade de tudo o que tenho, a minha metade, que a outra é da
minha família.
Paulo olha Evaristo e é difícil
perceber o que sente, mas no seu rosto não se espelha certamente ternura ou
admiração. Ama Evaristo, não será exagero dizê-lo, mas é tão teimoso e
obstinado quanto ele, essa é que a verdade, por isso é que lhe responde com
rudeza, por isso é que lhe diz que não precisa de caridade, por isso é que lhe
diz que não acredita nele, que é um mentiroso, por isso é que abandona o
restaurante a chorar compulsivamente.
***
Pensa na morte, considera-a a
única solução. Não é uma fuga, é antes um passo em frente, um passo necessário.
É o que diz a si mesmo, e não é uma lamentação, é um grito, um grito de
afirmação, um grito de liberdade.
***
Julgo que foi Tchekhov que disse
que um homem ganhar a lotaria (acredito que ele falava em ganhar na mesa de
jogo) e matar-se é que seria um tema literário, e acho que quem lê já adivinhou
para onde me dirijo, para onde encaminho este conto. Talvez pudesse até
terminar assim, na dúvida, na ambiguidade, mas vou continuar ainda mais um
pouco.
***
Evaristo foi ainda mais uma vez
capa de todos os jornais e abriu todos os noticiários do mundo. Caiu de uma
ponte, disseram, era tudo o que se sabia, ninguém conseguia concluir fosse o
que fosse. Dizia-se nas redes sociais que tinha sido assassinado, dizia-se até
que se tinha suicidado, mas todos o choravam, o mundo estava de luto.
***
Paulo deixou de beber e não
consome heroína há dois anos. Continua desconhecido e quer continuar assim.
Está rico, bastante rico, mas leva uma vida austera, monástica. O seu dinheiro
foi quase todo aplicado numa fundação que gere anonimamente, a Fundação
Evaristo Macedo, vocacionada para ajudar quem precisa, sobretudo artistas.
FIM