segunda-feira, 19 de dezembro de 2022

O QUE SEMPRE FICA POR DIZER

 


 

 

 

 

Não aguento mais. Vão-se todos foder.

 

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Uma linha, duas frases, seis palavras, é tudo o que está escrito nas costas de um envelope fechado, contendo publicidade.

O envelope, com a mensagem visível, está em cima de uma pequena mesa vazia, encostada a uma das paredes, perto da janela, com apenas uma cadeira.

O quarto é pequeno, mas a cama é confortável e veem-se quadros e fotografias nas paredes, de indiscutível qualidade.

Quem ali vive? 

Será um bilhete de suicídio?

 

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                Conhecem-se há muitos anos, desde a infância, e durante muito tempo a vida de ambos seguiu o mesmo caminho, depois menos, cada vez menos, até que um subiu cada vez mais alto e o outro desceu cada vez mais baixo. Encontram-se raramente e sempre por iniciativa do primeiro, o rico, o famoso, o mais determinado dos dois.

 

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                Pensei que não vinhas, estava quase a ir-me embora, diz Evaristo, num tom neutro, que contrasta com o seu habitual tom agressivo.

                O outro senta-se, com gestos lentos, olha em volta, olha para o amigo, e diz-lhe que detesta estes locais elegantes. Evaristo responde que nestes locais eles são invisíveis, ninguém os incomodará, ninguém ousará importuná-los.

                Esse não é um problema meu, eu sou sempre invisível, diz Paulo, num tom neutro, com um sorriso triste a sublinhar a frase.

 

***

 

                Ambos sonharam ser ricos e famosos, estar entre os melhores, e foi isso que aconteceu, mas apenas a um deles. O que fez a diferença?

                Não tenho sorte nenhuma, diz Paulo.

                Quis sempre ser o melhor, e fiz tudo para o ser, a sorte não vem ao caso, diz Evaristo.

                A sorte é sempre importante, o azar existe, diz Paulo.

                Fizemos escolhas, o que nos aconteceu não tem nada a ver com sorte e azar. Não que a sorte e a má sorte não existam, mas as nossas escolhas prevalecem muitas vezes, as boas e as más.

                Tu sempre foste o melhor.

                Eu sempre quis ser o melhor, e fiz tudo por isso, fiz sempre tudo por isso. Tu sabes que foi isso que fiz, apenas isso.

 

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                E agora estamos aqui, tu rico e famoso, tu rico, riquíssimo, o melhor do mundo, e eu pobre, quase sem abrigo, desconhecido, esquecido de todos.

                Deixa-te de lamentações. Queres ser rico? Dou-te metade de tudo o que tenho, a minha metade, que a outra é da minha família.

                Paulo olha Evaristo e é difícil perceber o que sente, mas no seu rosto não se espelha certamente ternura ou admiração. Ama Evaristo, não será exagero dizê-lo, mas é tão teimoso e obstinado quanto ele, essa é que a verdade, por isso é que lhe responde com rudeza, por isso é que lhe diz que não precisa de caridade, por isso é que lhe diz que não acredita nele, que é um mentiroso, por isso é que abandona o restaurante a chorar compulsivamente.

 

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                Pensa na morte, considera-a a única solução. Não é uma fuga, é antes um passo em frente, um passo necessário. É o que diz a si mesmo, e não é uma lamentação, é um grito, um grito de afirmação, um grito de liberdade.

 

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                Julgo que foi Tchekhov que disse que um homem ganhar a lotaria (acredito que ele falava em ganhar na mesa de jogo) e matar-se é que seria um tema literário, e acho que quem lê já adivinhou para onde me dirijo, para onde encaminho este conto. Talvez pudesse até terminar assim, na dúvida, na ambiguidade, mas vou continuar ainda mais um pouco.

 

***

 

                Evaristo foi ainda mais uma vez capa de todos os jornais e abriu todos os noticiários do mundo. Caiu de uma ponte, disseram, era tudo o que se sabia, ninguém conseguia concluir fosse o que fosse. Dizia-se nas redes sociais que tinha sido assassinado, dizia-se até que se tinha suicidado, mas todos o choravam, o mundo estava de luto.

 

***

 

                Paulo deixou de beber e não consome heroína há dois anos. Continua desconhecido e quer continuar assim. Está rico, bastante rico, mas leva uma vida austera, monástica. O seu dinheiro foi quase todo aplicado numa fundação que gere anonimamente, a Fundação Evaristo Macedo, vocacionada para ajudar quem precisa, sobretudo artistas.


FIM

Cruzeiro Seixas

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