sexta-feira, 7 de abril de 2017

Ó DIABO


Olhei para o homem com insistência até que ele deu por isso e me devolveu o olhar. Na verdade, não só me devolveu o olhar, como me sorriu. Virei a cara e esforcei-me por não o olhar de novo, no entanto, pouco depois, dei por mim a olhá-lo de outra vez com insistência.
É que ele era mesmo esquisito e eu sou muito curioso, pelo menos é o que os meus pais me estão sempre a dizer. E os meus amigos também, para dizer a verdade. O Paulo, o meu melhor amigo, quando se quer meter comigo, costuma dizer que eu sou tão curioso que até gosto de estudar, e é verdade, mas ele diz aquilo só para se meter comigo e eu não gosto, porque os que andam na minha turma e gostam muito de estudar são quase sempre muito aborrecidos.
Eu gosto de estudar, gosto de saber coisas, sou curioso, não vejo nada de mal nisso, mas também gosto de brincar e de me divertir. Se querem saber, estudar pode ser divertido, coisa que às vezes os professores parecem ter esquecido.
Os professores, salvo raras excepções, e os adultos em geral, levam sempre tudo muito sério e são bastante aborrecidos. O homem estava outra a vez a sorrir-me, o que era só por si esquisito, não fosse ele mesmo ser bastante esquisito.
Era esquisito, sim, mas não era um esquisito assustador, era mais um esquisito apenas esquisito, como se fosse, sei lá, um cão com cornos, que seria esquisito, sem dúvida, mas não tão esquisito que me assustasse, por que há animais com cornos e nem por isso são perigosos, e claro que existem cães, alguns bastante assustadores, mas não por terem cornos.
Os meus pais também me dizem que tenho uma imaginação muito grande, mas os adultos parecem todos achar que as crianças têm todas uma imaginação muito grande, o que não deixa de ser verdade, mas alguns adultos também têm uma imaginação muito grande, sobretudo os artistas.
Seja como for o homem era esquisito, tão esquisito que eu nem sou capaz de dizer porquê, isto porque aquilo que o tornava esquisito não era nada óbvio, não era algo que se pudesse na verdade descrever, era preciso ver, ou melhor, era preciso sentir. Parecia mover-se muito mais lentamente que o normal e digo isto ainda que ele estivesse sentado, o que pode parece estranho; mas quando sorriu o seu sorriso abriu-se tão lentamente que parecia que estava a sorrir em câmara lenta e a verdade é que ele até poderia mover a cabeça lentamente, o que de facto também aconteceu, mas qualquer um pode mover a cabeça lentamente, agora sorrir é que não, é algo quase involuntário, que ninguém controla de maneira que permita sorrir como ele sorria.

Fiquei intrigado, fiquei mesmo intrigado, e soltei uma imprecação que aprendi com o meu avô: Ó diabo! E mal disse isto, o homem à minha frente desapareceu, sim, desapareceu, não se foi embora, desapareceu mesmo, do pé para a mão, sem mais nem menos. Ó diabo, repeti, Ó diabo!



Cruzeiro Seixas

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