[Um final possível e o conto acabou por contar-se. Faltaram alguns pequenos acertos que ficam a esperar nova oportunidade.]
III
Não
voltou ao cruzamento, ainda que para tal tivesse de abandonar os seus passeios,
não fosse o caminho levá-lo de novo àquele lugar. Passou a ficar muito tempo em
casa, saindo apenas por breves períodos e nunca para muito longe. Estava
determinado a esquecer todas as circunstâncias ligadas ao aparecimento e
subsequente desaparecimento do outro, que em tudo se assemelhava a ele próprio,
e havia algo de profundamente infantil na atitude do homem, uma teimosia
egoísta que lhe dizia que só assim seria capaz de reconquistar a serenidade
perdida. Semanas a fio manteve a nova rotina e depois, pouco a pouco, retomou
os seus passeios sem destino, chegando todos os dias a um lugar diferente,
voltando porém sempre a sua casa. Algo havia mudado, e ainda que caminhasse sem
procurar o que quer que fosse, a visão de uma qualquer árvore mais imponente
fazia-o sempre dirigir-se até ela e trepá-la, o mais alto possível, até
encontrar um lugar onde se pudesse sentar confortável, a olhar bem de cima. E
depois ficava ali horas a fio, tranquilo, até ser tempo de voltar a casa.
Demorou algum tempo até reconhecer neste comportamento um eco da sua infância,
em que subia às árvores para estar sozinho. Gostava daquela sensação de entrar
num mundo a que só ele tinha acesso, e divertia-se a observar como os outros
passavam por baixo sem o ver, como se ele se tivesse tornado subitamente invisível.
Sentia-se tranquilo em cima das árvores, e podia estar várias horas sentado em
qualquer delas, sem pensar, sem quase sentir, porém chegava sempre uma altura
em que era assaltado por uma ténue angústia e se recordava da outra árvore e do
homem que em tudo se assemelhava a si próprio. E apesar de continuar
determinado a esquecer todas as circunstâncias ligadas ao aparecimento e
subsequente desaparecimento do outro, daquele que em tudo se assemelhava a ele
próprio, acabou por concluir que só conheceria de novo a serenidade perdida se
encontrasse o lugar onde afinal a perdera.
Recomeçou a sua busca pelo cruzamento que
recordava, porém os resultados que obteve, apesar de multiplicados os esforços
até à exaustão, não foram diferentes. Estava certo que aquele era o cruzamento
a que chegara, e não conseguia perceber como não era capaz de, a partir dele,
encontrar a árvore. Desanimado, já não retirava qualquer tranquilidade dos seus
passeios, e nunca mais teve vontade de subir às árvores, voltando a ficar cada
vez mais tempo em casa, deitado no sofá, os olhos fechados. Pensou que, se
tinha encontrado por acaso aquele lugar, só por acaso o poderia voltar a
encontrar, e se era verdade que bastava querer encontrá-lo para já não ser por
acaso que o encontraria, não era menos certo que talvez bastasse procurá-lo
onde era mais provável que não estivesse, para assim o encontrar por acaso.
Recomeçou os seus passeios, apontando sempre para uma direção o mais contrária
possível ao ponto mais próximo do lugar que procurava. E se não encontrou o
lugar nas duas semanas seguintes em que retomou os seus passeios, também nunca
mais voltou ao cruzamento que lhe ficava próximo, e assim voltou a passear
completamente ao acaso, caminhando a direito, não pensando e quase não sentido.
Num dia em nada diferente dos outros, o caminho levou-o à cidade e ele
deixou-se ir. Atravessou a cidade da periferia para o centro. Era uma tarde
sombria de um qualquer dia de semana de uma Primavera que teimava em esconder-se. Por
todo o lado havia casas abandonadas, ruínas perfeitas que se repetiam numa
geometria decadente. Os carros passavam por ele como máquinas insensatas que
insistiam em funcionar sem qualquer objetivo. Dentro de alguns edifícios pressentiu
pessoas que se escondiam, trabalhavam, viviam, amavam-se talvez. Não tentou
saber, muito menos compreender, o que ali se passara, só conseguia continuar a caminhar,
aturdido, os sentidos saturados. Não acontecera ali nem peste nem guerra que
explicasse o que via, o que sentia, o que nele se instalava e devorava. Chegou
ao centro da cidade e vislumbrou um velho jardim murado; esgueirou-se pelo
portão semicerrado e caminhou a direito, até junto da velha árvore descarnada
que se erguia gigantesca contra o céu cinzento. Não se sentia perturbado nem
perplexo, tudo nele era serenidade e alívio.
As
pernas balouçavam de leve como que agitadas pela suave brisa que se levantara,
e o homem sentado no topo da velha árvore descarnada, os olhos fechados, não
parecia pensar em coisa alguma. Permaneceu ali dias sem conta, e nem por um
momento pensou em ir-se embora, alheado de tudo ao seu redor. Uma voz
despertou-o, levando-o a olhar para baixo, vendo-se a si próprio a olhar para
cima, um sorriso a dançar-lhe no rosto. “Quem és tu?” perguntou o homem, e o
outro respondeu, “Eu sou tu e tu és eu, somos os dois o mesmo”. O homem abriu
muito os olhos, abriu muito a boca, mas continuou fechado num silêncio pesado.
“Eu sou tu e tu és eu, somos os dois o mesmo”, repetiu, e acrescentou, “Somos
um só”. Fechou os olhos por um momento, e quando os abriu, deu por si a olhar
para cima da árvore, para si próprio. Ficou tão perturbado e perplexo que
voltou as costas e saiu dali sem olhar para trás. Não pensava, quase não
sentia, esforçava-se apenas por andar em frente. Quando voltou
a si, a sua casa estava à vista. Parou. Soltou uma gargalhada. “Vou à procura
de mim próprio”, disse. E recomeçou o caminho, para longe dali.