terça-feira, 12 de outubro de 2010

O DOM DA PALAVRA (1)

[A PRIMEIRA VEZ]


A primeira vez que lhe aconteceu foi numa manhã como outra qualquer e Hermínio Campânula nem se apercebeu do que lhe estava a acontecer. Atravessava a praça em direcção ao café da esquina, como fazia todos os dias, pelo menos uma vez por dia, quando alguém lhe perguntou onde ficavam os correios.

Já não se recordava da pessoa que lhe fez a pergunta, mas ainda se recordava da surpresa que lhe atravessou o rosto e da forma como a pessoa se afastou sorrindo e abanando a cabeça, como se o que ele dissera a tivesse ao mesmo tempo surpreendido, desiludido e divertido.

Ainda esteve para lhe lançar alguma ironia ou mesmo algum insulto, mas achou que não valia a pena e seguiu o seu caminho até ao café, onde pediu uma bica ao empregado atrás do balcão, com o gesto habitual, unindo o polegar e o indicador e levando-os à boca, para não ser forçado a elevar a voz sobre o barulho reinante.

Hermínio Campânula não era um homem de muitas palavras e dificilmente se poderia dizer que tivesse o dom da palavra, mas era capaz de expressar-se com facilidade e nunca tivera dificuldades em se fazer entender e, além disso, era ao mesmo tempo bastante tímido e bastante seguro de si, o que talvez possa explicar que não tivesse percebido logo o que lhe acontecera.

A segunda vez que lhe aconteceu foi no talho, em que entrou apenas para comprar meio quilo de carne picada, como enunciou de forma clara quando lhe perguntaram o que queria, mas como o talhante olhasse para ele com cara de quem não tinha percebido nada, apontou para a carne picada, o dedo colado ao vidro, e pouco depois levantou a mão direita indicando que era suficiente, o que na verdade foi mais do que suficiente para ser entendido. Ao sair, a menina da caixa sorriu-lhe, e ele respondeu-lhe com um sorriso.

Na semana que se seguiu aconteceram-lhe outros pequenos incidentes que o levaram finalmente a concluir que as pessoas não compreendiam o que ele lhes dizia; não compreendiam nada do que ele lhes dizia, e isto apesar de ele as compreender perfeitamente e se compreender perfeitamente a si mesmo. Não parecia ter qualquer dificuldade em dizer as palavras nem em articular o seu discurso mas a verdade é que ninguém o entendia quando falava e não o escondiam, rindo e abanando a cabeça. Os que o conheciam pensavam talvez que ele estava a brincar ou que tinha enlouquecido e os que não conheciam pensavam talvez que ele era louco ou estrangeiro.

A sua primeira reacção foi deixar de falar e ficou surpreendido com o pouco incómodo que lhe causava o silêncio, quer porque conseguia o que queria sem falar, quer porque ninguém parecia importar-se que ele não falasse. A verdade é que ele queria sempre muito pouco e falava com muito pouca gente, mas mesmo assim admirou-se que fosse tão fácil ficar em silêncio.

Quantas vezes não tinha dito a si próprio que até agradecia se nunca mais fosse capaz de dizer uma só palavra! Não era o caso, porque ele era capaz de falar, mas era como se não fosse, porque ninguém o entendia.

Mas antes de se calar e aceitar o que lhe acontecera ou, se preferirem, porque não tenho bem a certeza da ordem, antes de aceitar o que lhe acontecera e se calar ainda tentou investigar e perceber o que lhe tinha acontecido.


Cruzeiro Seixas

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