quarta-feira, 11 de novembro de 2009

O bloqueio do escritor [uma versão...]




Leu o que tinha escrito na noite anterior e, mais uma vez, não era o que ele tinha escrito, nem no conteúdo nem na forma.

Gostava de afirmar que não era ele que escrevia o que escrevia, mas nunca lhe tinha acontecido uma coisa assim: o que escrevia era substituído e nada restava que lembrasse, ainda que remotamente, o que ele escrevera.

Leu mais uma vez o que tinha escrito e mais uma vez concluiu que não era em nada parecido com o que costumava escrever. Já tinha tentado de várias formas controlar esse estranho fenómeno, mas sempre sem sucesso. Fez cópias digitais e em papel, mas todas elas apresentavam as mesmas alterações. Chegou mesmo a escrever à mão, o que há muito tempo não fazia, mas o texto que depois surgiu, exactamente com a sua letra, era outro, em tudo diferente.

Na maior parte das vezes, bastava que se afastasse do acto de escrever, que o interrompesse, ainda que por breves instantes, para que o texto fosse já outro quando o retomava.

Aliás, tudo o que escrevia se transformava em algo que ele não escrevera, apresentando no entanto uma continuidade singular: estava a escrever um romance, percebeu pouco tempo depois de ter começado.

A primeira vez que tal aconteceu, atribuiu o facto a um qualquer mistério informático, talvez um vírus, talvez um pirata informático.

Como vivia sozinho e ninguém o visitava essa pareceu-lhe a única explicação possível. Por essa altura tinha voltado a escrever, depois de vários meses de inactividade, e aquelas eram as primeiras palavras que escrevia, pelo que o desaparecimento de quase duas páginas o deixou bastante sobressaltado, nem tem tanto pelas duas páginas em falta, mas sobretudo pelo mau presságio que lhe parecia constituir o seu desaparecimento.

Dessa primeira vez limitou-se a apagar o ficheiro, com o mesmo nome do anterior, mas agora metamorfoseado num texto apócrifo. Tinha apenas lido o texto de relance, mas quando aconteceu pela segunda vez, não teve dúvidas que era o mesmo. Foi o primeiro sinal de que era sempre o mesmo texto que substituía tudo aquilo que escrevia, um texto de uma dimensão desconhecida, mas que adivinhava longo, e na verdade em pouco tempo tinha quase uma centena de páginas.

Quando se convenceu que tudo o que escrevia se transformava noutra coisa, pensou em parar de escrever, mas como há muito tempo já que não escrevia e agora, ainda que de uma estranha forma, estava a fazê-lo, não conseguiu tomar essa decisão, e continuou a escrever.
Não tentava dar qualquer continuidade ao que escrevia, o que lhe parecia tarefa impossível, uma vez que nada do que escrevia se mantinha, e por isso tudo o que escrevia tinha um carácter fragmentário e não sistemático. Escrevia sobre o presente, sobre o passado, sobre o que lhe estava a acontecer e sobre o que gostaria que acontecesse. Escrevia sem preocupações, sem prazer nem angústia, como se traçasse, foi o que pensou, riscos na areia de uma praia. Fosse como fosse, tudo o que escrevia, desaparecia mal ele voltava costas à escrita.

Foi muito mais tarde e completamente por acaso que descobriu a relação entre o que escrevia e o que depois aparecia escrito. Na verdade, já tinha desistido de tentar encontrar alguma relação quando finalmente a descobriu. Inicialmente esforçara-se por perceber se algumas das palavras que escrevia permaneciam no texto, ou se de alguma forma o que escrevia influenciava o que aparecia escrito, mas não encontrara qualquer relação e concluiu pela sua não existência. E um dia contou as palavras do que escrevera e do que apareceu posteriormente e verificou que o número era idêntico. Aliás, não só número de palavras era o mesmo, como o mesmo era o número de caracteres, de parágrafos e até de linhas. Repetiu a experiência várias vezes, sempre com o mesmo resultado. Esta descoberta reforçou a sua decisão de continuar a escrever e despertou-lhe, talvez pela primeira vez, o desejo de levar aquele texto até ao fim.

Sempre fora metódico no que se referia à escrita ou, pelo menos, disciplinado, e não lhe fora difícil sentar-se para escrever todos os dias, sempre à mesma hora. O que sempre fazia quando estava a escrever, como ele dizia, pois os períodos em que não estava a escrever sucediam-se cada vez mais, e chegou uma altura em que tinha tanto medo de escrever como de não escrever. E depois deixou mesmo de escrever. Já não escrevia quando aquilo lhe começou a acontecer, ainda que não tivesse uma real consciência disso. Acreditava que tinha voltado a escrever e que aquilo lhe acontecera, mas foi exactamente ao contrário, aquilo aconteceu-lhe e ele voltou a escrever, voltou a sentar-se para escrever, todos os dias, à mesma hora, como há muito não lhe acontecia, apesar de tempos a tempos fingir que tentava a sério voltar a escrever.

A partir da centena de páginas deixou de tentar perceber o que estava a acontecer e limitava-se a escrever, fazendo assim avançar o texto, sua única preocupação durante aqueles dias que o aproximavam do fim. Quando não estava a escrever, dava longos passeios pela cidade e demorava-se nas praças e nos cafés. Lia sempre o que escrevera, antes de retomar a escrita, mas não tentava exercer qualquer influência sobre o que leria mais tarde, limitando-se a cumprir esse ritual, em tudo semelhante ao seu próprio ritual de escritor: parava de escrever e, quando a retomava, normalmente no dia seguinte, lia primeiro o que escrevera da vez anterior.

Um dia sentiu que estava a chegar ao fim, e combateu a vontade de continuar a escrever, lendo e relendo as páginas que durante meses ajudara a escrever. Sentiu pela primeira vez o texto como seu, ainda que continuasse convencido que muito pouco dele, quase nada, dependia de si, quer no seu desenvolvimento quer no seu desenlace.

Talvez não se estivesse a sentir escritor, mas apenas leitor, disse a si mesmo, e o leitor escreve o texto ainda que não o escreva, acrescentou.

Sentou-se e escreveu uma pequena frase.

(...)

Essa pequena frase não sofreu qualquer transformação.

Cruzeiro Seixas

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