Nada é simples quando se trata de palavras.
Quando se trata de palavras até a palavra simples é complicada.
um blog de Luís Ene
Meia de língua
Meia de língua
Luís Ene
Pensamentos
Os seus últimos pensamentos foram para a mulher e para os filhos. Depois disso nunca mais voltou a pensar. Desde então a vida tem-lhe corrido muito melhor.
Felizes para sempre
Casaram-se e foram felizes para sempre, o que só foi possível graças ao divórcio.
Pernas para que te quero
Pernas para que te quero, disse ele, e lá foi, ligeiro, com uma perna às costas. E se para lá foi num pé, para cá veio noutro.
A morte
A morte encontrou-o vivo. Por pouco tempo.
Uma história
Esta é uma história que não foi, mas podia muito bem ter sido, se alguma vez tivesse chegado a ser. O que não aconteceu.
Trocar os pés pelas mãos
Estava tão cansada que já trocava os pés pelas mãos. Mas o pior foi quando quis apertar a mão a um cliente e lhe deu um pontapé no peito.
A arte do romance
Amava as mulheres como amava as flores. Contemplava-as distante, aproximava-se lentamente, aspirava-lhes todo o ser e depois colhia-as de morte.
O amor na estrada
Mal a estrada começara e logo encontrou o amor. Na berma. A um preço acessível.
Um homem de palavra
Eu morra já aqui, disse ele, e morreu logo ali, que ele era um homem de palavra e não gostava de voltar atrás.
Nascer cansado
Não fazia absolutamente nada. Os amigos diziam-lhe que já nascera cansado; ele garantia que trabalhara muito para isso.
Ir desta para melhor
Quando a morte apareceu para o levar, recebeu-a com um sorriso aberto. Disse a si mesmo que ia desta para melhor.
Tropeçar na língua
Certo homem, porque lhe disseram que era fácil tropeçar na língua, deixou de falar enquanto andava.
As palavras
As palavras mentem, dizia com frequência, mas a verdade é que era um mentiroso incorrigível.
Dizer e fazer
Dizia uma coisa e depois fazia sempre outra. Felizmente tinha uma voz bonita e uma grande capacidade de argumentação.
Causa e efeito
Não acreditava em Deus e estava cansado da humanidade. Um dia matou-se e acordou sobressaltado às portas do céu.
A lista
Fez uma lista de tudo o que detestava. A lista estendia-se por muitas e muitas páginas. Olhou-a com desânimo e depois rasgou-a. Sentiu-se logo muito melhor.
Aquilo em que acreditamos
Não acreditava que alguma vez pudesse ser feliz e nunca o foi, nem mesmo quando lhe aconteceu afinal ser.
Um homem cansativo
Era o homem mais cansativo que se possa imaginar: nunca se cansava.
O amor e o ódio
Cruzaram-se por um breve instante, ia o Amor a sair e o Ódio a entrar, ou talvez fosse ao contrário, que a maior parte das vezes é quase impossível distingui-los.
Final infeliz
Estava tão cansada que adormeceu. Não tivesse sido ao volante e esta história teria um final feliz.
Sorriso
Um sorriso amarelo encontrou um dia um sorriso azul e os dois sorriram juntos um lindo sorriso verde.
A excepção e a regra
Tentou traçar para si um conjunto de regras sumárias, mas cedo desistiu: eram mais as excepções do que as regras.
Um criminoso empedernido
Era um criminoso tão empedernido que nem às leis da natureza obedecia.
O autor e a sua obra
Quando foi atropelado, numa rua estreita do centro histórico, trazia consigo toda a sua obra, três manuscritos num saco de plástico. Só a obra sobreviveu.
O dom
Quando dizia que alguém ia morrer, esse alguém morria sempre. Era um dom que tinha, nunca falhava. Era um dos assassinos mais procurados.
Gastronómica
Come-me, sussurrou ele. Saboreia-me, disse ela. E durante muito tempo se banquetearam.
Contratempo
És a mulher da minha vida, disse ele várias vezes, e depois matou-se, ali mesmo, de uma vez só.
Mudança total
Mudou de carro. Mudou de nome. Mudou de aspecto. Mudou de profissão. Mudou de residência. Nunca ninguém conseguiu perceber porquê. Nem ele.
Brevidade
Não uses duas palavras se uma for suficiente, afirmou, mas logo se emendou e disse, não uses duas palavras se uma bastar.
A decisão
Um homem ganhou o maior prémio de sempre do Euro Milhões. No dia seguinte suicidou-se. A decisão há muito estava tomada.
A mania
Gostava de olhar as pessoas nos olhos. Era uma mania que tinha. Tornou-se médico oftalmologista.
Recordação
Sinto-lhe tanto a falta, disse a si mesmo, e sentiu-se triste, mas logo sorriu e sentiu-se feliz. Era-lhe tão doce a sua recordação.
O primeiro da lista
Era o primeiro da lista. Foi o primeiro a morrer.
Complicar a vida
Complicou a sua vida de mil maneiras diferentes. Até ao dia em que finalmente se começou a repetir.
Com a melhor das intenções
Disse-lhe, com a melhor das intenções, que um dia acabaria por matá-la, e ela, com a melhor das intenções, matou-o primeiro.
Negação
Gastava tanta energia a negar os seus problemas que nenhuma lhe restava para os resolver.
O interrogatório
Tinham toda a razão. Ele sabia. Só não sabia que sabia.
O elo mais fraco
Ela desprezava-o, ele amava-a. Ela continuou a desprezá-lo, ele continuou a amá-la. Ela ainda o despreza, mas ele já deixou de a amar. Morreu há um ano.
O Interesse nacional
O país precisava de braços. Precisava muito. Ele só tinha um braço, mas nem por isso o país se esqueceu dele: cortaram-lhe o braço que lhe restava.
Envelhecimento
Era belo e estúpido. Com o tempo tornou-se feio e estúpido.
O tudo e o nada
Tinha tudo. Só lhe faltava paz de espírito. Antes nada tivesse.
A verdade
Afirmava sempre uma coisa e o seu contrário. Acreditava que essa era a única forma de estar o mais perto possível da verdade.
O Homem Vazio
Falou durante horas. Quando se calou, percebeu finalmente que nada tinha para dizer.
Nada de especial
Não tenho nada de especial, disse ela, e ele concordou com um sorriso aberto. Era exactamente por isso que a achava tão especial.
O Suicida
Sentiu-se tão vivo, tão extraordinariamente desperto, que quase desistiu.
A morte não é desculpa
Escrevo-te. Telefono-te. Nunca respondes. Sei que estás morto, mas a morte não é desculpa
Um homem de fé
Foi sempre um homem de fé. Só assim se explica que se tenha mantido ateu até ao fim.
Um único poema
Escreveu toda a sua vida um único poema. Com ele encheu dezenas de livros.
O amor deixava-o baralhado
Olhou-a com os lábios e beijou-a com os olhos. O amor deixava-o sempre baralhado.
O Homem Preocupado
Andava sempre muito preocupado. Um dia deixou de se preocupar. Ficou ainda mais preocupado.
O homem e o espelho
Um homem olhou-se ao espelho e viu-se a sorrir. Ficou muito surpreendido. Sentia-se triste, abatido, desanimado. Olhou-se de novo ao espelho e percebeu afinal que era o espelho que sorria.
O livro de cabeceira.
Toda a sua vida teve o mesmo livro à cabeceira. Nunca passou da primeira página.
A ver navios
Foi ao cais para se encontrar com ela, mas ficou a ver navios. Gostou tanto que voltou ali muitas vezes.
O mal
Cortou o mal pela raiz. Caiu-lhe em cima e matou-o.
Uma história para crianças
Certo dia um cão encontrou um urso, e tão perturbado ficou que lhe chamou ursinho. O urso sorriu, olhou-o com atenção e depois comeu-o, não sem antes lhe ter chamado almocinho.
Ser ou não ser
Era mau, mas não era má pessoa. Depois foi-se tornando-se pior, muito pior, cada vez pior, até que deixou de ser pessoa.
Kama Sutra
Ela desceu-se por cima dele e ele subiu-se por baixo dela. Com eles o sexo era sempre elaborado, mas nunca complicado.
A justificação
Em certas circunstâncias sou mesmo necessário, justificou-se o preservativo, mas o pénis não parecia nada convencido.
A humanização da sexualidade
É preciso humanizar a sexualidade, concluíram os animais reunidos em plenário, já chega de depender do cio.
Obnóxio
Um dia sentiu-se obnóxio, completamente obnóxio, e de nada lhe adiantou desconhecer o significado da palavra.
A verdade da mentira
Olha-me nos olhos e diz-me a verdade, disse ele, e ela olhou-o nos olhos, bem no fundo dos olhos e mentiu-lhe. No fundo, no fundo, era isso que ele queria, e ela bem o sabia.
O perfeccionista
Matou-se lentamente, muito lentamente, por isso, quando estava quase a chegar ao fim, teve que voltar ao início e matar-se de novo. Era um perfeccionista.
É o fim
É o fim, disse ele, e tudo voltou ao princípio. Mas era apenas o princípio do fim.
Compreender
Era um artista enorme, extraordinário, mas era um homem pequeno, mesquinho, execrável. As pessoas admiravam-se. As pessoas não compreendiam. As pessoas têm esta incompreensível crença que lhes diz que é preciso compreender.
Esquecer
Um homem esforçou-se muito por esquecer a mulher que o abandonara e foi bem conseguido. Quando ela voltou não a reconheceu e apaixonou-se outra vez.
Todos os caminhos vão dar a Roma
Dois homens chegaram ao mesmo fim por caminhos opostos: enquanto um se esvaziou tanto que nada dele restou, o outro encheu-se tanto que nada dele sobrou.
O melhor de todos
Era bom no que fazia, excelente, o melhor de todos, mas nunca teve sucesso. Era bom a não fazer nada.
O instrutor de mambo
Tito só tinha uma perna, mas era o melhor instrutor de mambo de Cuba. Uma questão de equilíbrio, diziam os mais entendidos. E perseverança.
Compro varizes
Compro varizes, dizia o anúncio. Fui lá e vendi-as. Todas. Por um bom preço. O pior foi que tive de deixar lá as pernas. Agora custa-me a andar.
A língua
Tinha uma língua porca. Um dia lavou-a muito bem e durante vários dias não disse um único palavrão.
A força do hábito
Fumava. Bebia. Fornicava. Sempre pela mesma ordem.
O viciado
Cortaram-lhe as mãos. Continuou com os pés.
A perfeição
Procurou sempre a perfeição. Com o tempo tornou-se um perfeito idiota.
A feminista determinada
Amava-o, mas não tinha escolhido amá-lo. Deixou-o.
O fim
É o fim, disse ele, e morreu exactamente sobre a meta.
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A dieta
Durante três meses submeteu-se a uma rigorosa dieta de emagrecimento. Depois pesou-se, e constatou que engordara dois quilos. Sempre assumira com muita dificuldade as consequências dos seus actos.
Conservador
O rosto é muito conservador, o nariz sempre por cima e a boca sempre por baixo.
Um homem determinado
Tinha uma tão grande determinação e uma tal capacidade de luta que, chegada a hora exacta da sua morte, ainda viveu mais uns bons quinze minutos.
Capacidade de adaptação
Quando ficou sem pernas adaptou-se muito bem. Passou a andar sentado.
O fim dele
É o fim, disse ele, mas não estava sozinho e teve de continuar.
Amar muito
Amo-te muito, disse ela, e ele assentiu com a cabeça, ao mesmo tempo que dizia a si mesmo que esse é que era o problema.
Acorde perfeito
Encontraram-se. Apaixonaram-se. Ela era uma santa e ele era um pecador. O que poderia correr mal?
Pintura naturalista
Estava debruçada a pintar um céu azul, quando começou a deitar sangue do nariz. As gotas que caíram sobre a tela transformaram-se em violetas.
Ele e ela
Ele deixou-a, mas sentiu muito a sua falta e voltou. Foi então que ela o deixou e nunca mais voltou.
Jazz e vinho tinto
Ele adorava jazz e vinho tinto, ela detestava. Apaixonaram-se e casaram-se. Com o tempo ela passou a adorar jazz e vinho tinto, mas passou a detestá-lo a ele.
O autor e a sua obra
Apaixonou-se pela obra e casou com o seu autor. Anos depois ainda continuava apaixonada pela obra, mas há muito se divorciara do autor.
A descoberta da escrita
Antes aborrecia-se, zangava-se e queixava-se da vida. Agora, sabe que tudo o que lhe acontece é matéria-prima. Por isso escreve, escreve e escreve e mil vezes agradece à vida.
Os lábios
Os lábios estão apaixonados, tocam-se a todo o momento.
O culpado e o responsável
Quando perceberam o que tinha acontecido, procuraram logo um culpado, e rapidamente o apanharam. Tão rapidamente quanto o responsável se pôs a coberto.
Queda livre
O importante na vida são os pensamentos e não os acontecimentos, disse a si mesmo, enquanto caía, e foi assim que morreu feliz, com um enorme sorriso estampado no rosto.
Casamento à força
Ele via tudo plúmbeo, ela via tudo cerúleo. Escusado será dizer que para se entenderem foi preciso um esforço hercúleo.
Narciso
Um dia, destruiu todos os espelhos, nos quais se contemplava amiúde, e mandou drenar o lago, em cujas margens passava horas sem fim. Chegara à conclusão que nenhuma imagem estava à altura da sua beleza.
Memória prodigiosa
Lembrava-se sempre tão bem de tudo que até se lembrava do que nunca acontecera.
Apanhar com os pés
Ia zangado e deu um pontapé numa pedra, mas a pedra desviou-se no último momento e ele estatelou-se no chão. É que ele há pedras não gostam de apanhar com os pés.
Honestidade
Apunhalou-o pelas costas, é verdade, mas primeiro explicou-lhe muito bem que só o fazia assim porque já não o podia ver pela frente.
Traição
Tinha acabado de dormir com outra mulher e não via a hora de chegar a casa e dizer à esposa. Se havia uma coisa que ele não suportava era a traição.
Conto a gotas
Acordou. Levantou-se. Saiu. Apressado. Morreu. Atropelado.
Fábula
Olhou, achou-a bela, desejou-a, e logo disse a si mesmo que toda a beleza é aparente.
O príncipe encantado
O príncipe acordou-a com um beijo. E isso foi apenas o começo.
O cê cedilhado
O Cê tinha sempre emprego; depois encontrou uma cedilha e juntaram-se. Agora a sua situação mudou por completo: emprega-se só às vezes.
A verdade e a mentira
Ela não era mentirosa, acontecia-lhe as palavras nunca dizerem o que queria.
Aceitar o inevitável
Só quando aprendeu a aceitar o inevitável é que percebeu afinal quanto poderia ter evitado.
Pontuação
Ela disse-lhe, Sou filha de um ponto e de uma vírgula; ele olhou-a cheio de reticências.
O mistério
Irritado, o escritor despiu-a de todos os significados, mas a palavra guardou ainda assim o seu mistério.
Repentinamente
E de repente chegou lá, depois de muitos e muitos anos de um longo e tortuoso caminho.
Felicidade
Por um momento, um único momento, sentiu-se feliz, completamente feliz, e depois disso nunca mais se sentiu completamente infeliz.
Língua Materna
Adorava tanto a língua materna que a conservou até ao fim da sua vida em formol.
Dieta milagrosa
Para perder de uma vez por todos os quilos a mais foi a uma nutricionista que fazia milagres. A partir daí, de cada vez que tentava comer pão, ele diminuía até desaparecer, e de cada vez que tentava beber vinho, ele transformava-se em água.
Utilidade
Pensou durante muito tempo se valeria a pena viver uma vida sem sentido, e foi afinal essa dúvida que o manteve vivo.
Tempo
Disparou com a intenção de matá-lo e ele veio a morrer. Não tivessem decorrido vinte anos entre os dois factos e as coisas teriam sido bem diferentes.
Previsível
Olha-me nos olhos, disse a serpente, e a pequena ave fez-lhe a vontade. Olhou-a nos olhos, bem no fundo dos olhos, e voou para longe. Do que é que estavam à espera?
Não há coincidências
Apaixonou-se por ele porque era um traste; separou-se dele porque era um traste.
Sem pés nem cabeça
Escreveu um romance sobre o encontro entre um homem sem pernas e uma mulher sem braços. Não tinha pés nem cabeça.
Sequência
Estava mal e sentia-se mal. Depois sentiu-se melhor. Finalmente morreu.
O amor é muito complicado
Perguntou-lhe se queria mesmo andar com ele, respondeu-lhe que preferia correr. Perguntou-lhe se queria mesmo estar com ele, respondeu-lhe que preferia partir. Então ele deixou-a de vez, mas durante muito tempo ainda a levou consigo.
Cego de amor
Olha-me nos olhos, disse ele, e diz-me que não me amas. E ela olhou-o nos olhos e disse que não o amava. Qualquer pessoa veria que ela falava verdade. Qualquer pessoa menos ele, que estava cego de amor.
Coerência
Mudou de um dia para o outro. Completamente. Mas se antes dizia a tudo que sim, e depois passou a dizer a tudo que não, a verdade é que nunca, nem antes nem depois, disse talvez, fosse ao que fosse.
Três vezes amor
Matou-a, por amor, e matou-se de seguida, também por amor, o mesmo amor que ela invocou para que ele não a matasse afinal.
À pressa
Acordou tarde, praguejou, vestiu-se a correr e saiu a voar. Sobrevoou sem dificuldade o trânsito congestionado e chegou num instante ao escritório, mais cedo do que habitualmente.
O filme
De repente ele mordeu-lhe o pescoço e ela ficou sem pinga de sangue. Mas depois continuou, decidido, pelo corpo todo, e logo as cores voltaram ao rosto dela.
Literal
Nada vale a pena, disse o pato, e saiu a voar deixando a raposa sem almoço.
Trocadilho
Quanto mais desceres, disse-lhe o diabo, mais subirás na minha consideração.
O sangue
O sangue escorria, vermelho e insistente. Não aguentava mais. Tomou uma decisão. Nunca mais pediria um bife mal passado.
Simples
É tudo muito simples, disse o mestre, o mais difícil é aceitar que tudo é muito simples.
Perfeitos um para outro
Ele tinha tanto para dar. Ela queria tudo. Eram perfeitos um para o outro.
Morrer de amor
E de repente, pela primeira vez desde que viviam juntos, ele incendiou-a. Infelizmente, foi necessário que primeiro a regasse com gasolina e ela tenha morrido, mas não de amor.
A poesia
Onde está a poesia? – Perguntou ele na hora da morte. Ninguém sabia. Saíram para a rua e procuraram-na durante muito tempo. Depois desistiram, e ficaram para ali de olhos bem abertos, cegos de mistério.
Difícil
É demasiado simples, disse ele desanimado. O mestre sorriu então e disse-lhe: Percebes agora porque é tão difícil?
Autópsia
Leu o texto e dissecou-o com cuidado. Não havia mais nada a fazer. Estava completamente morto.
Persistência
Fecho a luz e tu abraças-me, beijas-me, dizes que me amas, e ao acordar quase estranho não estares ao meu lado. Faço contas à vida: passaram dez anos desde que te matei e ainda estás bem viva em mim.
Inevitável
Todos os dias olhava o seu vizinho e dizia a si mesmo que um dia o mataria. No entanto, tal nunca aconteceu. O vizinho matou-o primeiro.
Um homem justo
Era um homem justo: após matar o amante da sua mulher matou também a sua amante.
Falsas expectativas
Ainda jovem, começou a bater regularmente na avó. Já adulto, bateu várias vezes na mãe. Casou com vinte e três anos, nunca bateu na mulher.
O rei do Plágio
Tinha vários livros publicados. Nenhum era seu. Um dia foi desmascarado. Escreveu então a sua verdadeira primeira obra, um estrondoso sucesso, O Rei do Plágio.
Supreendentemente calmo
Irritou-se tanto que ficou calmo, surpreendentemente calmo. Foi nesse estado de espírito que a matou.
Arrependimento
Matara, é verdade, mas com o tempo arrependeu-se. Arrependeu-se de tal forma que quando o executaram mataram afinal um inocente.
O verdadeiro mentiroso
Mentia e mentia e mentia. A torto e a direito. Com convicção. E ria, ria muito. Dizia que era quando falava verdade que ninguém o acreditava.
Par de botas
Era um borra-botas sem emenda e um incorrigível lambe botas. E, como se isso não bastasse, tinha uma mulher feia como uma bota da tropa. Mas não se preocupem que cedo bateu a bota.
Os meios e os fins
Perante uma magnífica refeição que lhe foi servida com todos os requintes, passou o tempo a tentar comer os talheres. De prata, por sinal. Acontecia-lhe muitas vezes confundir os meios com os fins.
A capitulação do capítulo
Reunido de emergência, o capítulo redigiu prontamente um capítulo que proibia a leitura de certo capítulo, julgado indecoroso. Foi o primeiro capítulo de uma longa série de acontecimentos que levou afinal à capitulação do capítulo.
O motivo
Um homem matou outro sem qualquer motivo. Tinha uma arma. A arma estava carregada. A vítima estava parada do outro lado da rua. Era um bom alvo. Disparou. Matou-o.
Morte feliz
Deitou-se para dormir e não acordou mais. E ainda hoje sonha uma morte feliz.
Num instante
Num instante tudo pode acontecer. Mesmo que nada seja. E não é que o tudo e o nada sejam a mesma coisa. O tudo é um nada maior.
Um dia conseguido
Preparou-se toda a sua vida para um dia conseguido, e ele aconteceu finalmente. Foi um dia igual a tantos outros, mas conseguiu vivê-lo em completa plenitude.
A vida
“O que faço à minha vida?”, repetia a si mesmo sem cessar, dia após dia. E enquanto assim agia a vida fazia dele o que muito bem queria.
Ponto final
Foi-se embora numa sexta-feira, diz sempre que lhe perguntam por ele. E nada mais diz, por muito que insistam. Cada história tem o seu ponto final, ela sabe muito bem que assim é. Eu também.
Gramática
“O que essa mulher me fiz sofrer!”, exclamou ele, e não era um erro gramatical mas uma honesta tentativa de dizer a verdade.
Metamorfose
MAS O QUE É QUE ESTÁ A ACONTECER?, gritou, e estas foram as suas últimas palavras.
A verdade
Toda a sua vida procurou a verdade para olhá-la bem nos olhos, e um dia finalmente encontrou-a, só que nessa altura há muito estava cego.
Paradoxo
Estava a voltar mas sentia-se como se nunca tivesse ido. E se nunca tinha ido, como podia estar a voltar? O paradoxo ocupou-o até chegar ao seu destino.
Avareza
Foi tão agarrado à vida que morreu aos poucos, muito aos poucos, vítima de uma prolongada doença degenerativa.
Esquecimento
Saiu de casa, mas esqueceu-se de dizer à mulher. Ela só deu por isso anos depois.
A raposa e as uvas
A raposa olhou-se na fotografia e não gostou mesmo nada de se ver. Está desfocada, disse.
Ilusão
Um homem surpreendeu-se ao constatar que o pássaro caído no chão estava morto mas o amarelo da sua plumagem continuava vivo.
Corpo e alma
Ainda hoje, tanto tempo passado, sente a falta dela, só não sabe se do seu corpo ou da sua alma, que nunca foi capaz de os distinguir.
O amor
Um homem atravessou a rua na passadeira. Quando iniciou a travessia ainda era amado e quando terminou já não o era. O seu passo, no entanto, em nada se alterou.
A Valsa
Um homem grisalho sentiu-se hoje à tarde tão feliz que começou a dançar entre as mesas de uma esplanada. O polícia chamado ao local deu-lhe ordem de prisão enquanto valsavam.
O sorriso
Esta manhã, na baixa, uma mulher jovem percorreu mais de 50 metros com um sorriso nos lábios. Ao descreverem o sucedido, todas as testemunhas sorriram também.
Comoção
Um homem de 45 anos ganhou ontem pela primeira vez coragem para dizer à mulher tudo o que calara até então. E foi tal a comoção que não conseguiu articular uma única palavra.
Felizes para sempre
Ele amava-a. Ela amava-o. Foram felizes, mas não para sempre. Se querem mesmo saber, por muito menos tempo do que imaginaram.
Paixão
Degolou a namorada e atirou-se para debaixo de um comboio. Apaixonara-se pela morte.
Repentina
Antes de morrer queria dizer que!
Tempo para pensar
Cumpriu uma pena de prisão de onze anos por um homicídio que não cometera. Após a libertação cometeu vários homicídios, mas nunca foi condenado. Tinha tido muito tempo para pensar.
Em comum
Sentiu-se atraído por ela, mas cedo percebeu que nada tinham em comum, nem mesmo a atracção.
Problemas e soluções
Só tenho problemas, lamentou-se ele, mas na verdade também tinha soluções, só que não encaixavam.
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