Às vezes acontece-me esquecer quem sou

ÀS VEZES ACONTECE-ME ESQUECER QUEM SOU

Luís Ene




LIVRO PRIMEIRO





I


1 Muitas vezes acontecia-lhe esquecer-se de quem era, sem qualquer aviso prévio ou razão aparente. Não era uma sensação completamente desagradável, mas podia ser bastante aborrecido, tendo em conta as consequências óbvias. Decidiu então escrever o mais importante de si mesmo, aquilo que o tornava diferente e singular (não deviam ser precisas muitas palavras) e trazê-lo consigo, talvez um pequeno papel colado na carteira, talvez uma pequena inscrição numa pulseira, qualquer coisa que o fizesse regressar a si. O seu nome não era importante, na verdade pouco dizia de si, a sua idade, sexo e coisas que tais, estavam à vista, e quanto às suas características morais, elas reflectir-se-iam necessariamente nos seus actos. Acabou por fazer uma pequena tatuagem nas costas da mão direita, junto ao polegar, onde se podia ler a palavra SOU, não se fosse esquecer de ser, que isso sim, é que seria completamente desagradável e bastante aborrecido.


2 Subitamente, sentiu-se triste, mais do que isso, sentiu que nada mais era do que tristeza, como se todos os outros sentimentos o tivessem abandonado, deixando atrás de si apenas a tristeza, esmagadora e cruel. Olhou a chávena fumegante de café com leite, suspensa da imobilidade da sua mão direita, e riu. Riu sonoras gargalhadas que abriram espaços vazios na densa tristeza que ainda sentia e, pouco a pouco, se foram enchendo de memórias, ternas e doces, alegres e cómicas, até que a tristeza se dobrou sobre si mesma, voltando à sua condição de nó cego à espera de um desenlace.
3 Hoje aconteceu-me uma coisa extraordinária, acordei a sonhar, ou talvez tenha adormecido acordado, não sei, a vida é muita complicada, sobretudo quando se procura uma explicação para tudo e não se aceita o mundo tal e qual como ele é. O problema é que o mundo não se explica com facilidade (a relação causa e efeito está caduca e a teoria das catástrofes não passa de uma ferramenta) e, por outro lado, a vida, essa, limita-se a acontecer e nada mais. No meio de tudo isto não se admirem que eu avance, com cautela, entre o sonho e a realidade.


4 O homem assustou-se quando se viu defronte a si mesmo. Era e não era ele, mas o mais intrigante era que não conseguia decidir qual era ele e qual era o outro. Por instantes pensou em fugir, mas ficou, se por coragem ou por medo nunca o soube. O outro, que era e não era ele, olhou-se nele e sorriu. Ele, que não sabia quem era, sorriu também e o sorriso tornou-se um só. O homem sorriu então de si mesmo, soltou uma pequena gargalhada abafada, e disse em voz baixa: é difícil viver quando nos levamos demasiado a sério.


5 Não é verdade nem mentira que o dia esteja cinzento mas eu sei que está, ou talvez eu esteja. Sempre tive dificuldades em distinguir o interior do exterior, o côncavo do convexo, o dentro do fora, o eu dos outros. Este facto trouxe-me bastantes problemas ao longo da vida e vi-me forçado, inúmeras vezes, a explicar aos outros aquilo que, no geral, chamavam as minhas distracções e, nalguns casos, as minhas bizarrias. As coisas são o que são e disso nunca tive dúvidas, embora saiba perfeitamente que não é verdade nem mentira que o sejam. A realidade e a ficção são duas faces da mesma moeda, por assim dizer. Foi nisto que sempre acreditei e toda a gente que me conhece sabe que é assim. Quando anunciei que me apaixonara por uma personagem de ficção e íamos casar, todos foram unânimes em dizer que o casamento não fazia sentido: eu vivia no mundo da lua, nunca iria resultar.


6 Um homem foi ao fundo uma vez, outra, e outra ainda, mas não morreu. A questão que lhes quero colocar, caros leitores, não é quantas vezes mais pode ele ir ao fundo e ficar vivo, mas sim quanto tempo poderá ele ainda estar vivo sem ir de novo ao fundo.

II

7 Ela tocou-lhe a mão sobre a mesa com as pontas dos dedos. Ele estremeceu interiormente. Não tinha sentido a suavidade de uma carícia ou a displicência de um choque ocasional; fora um toque intenso, profundo, interrogativo, a pôr em causa a sua própria existência — a mais extraordinária experiência metafísica que alguma vez tivera.


8 Primeiro decidiu dizer-lhe que o amava. Mas deveria escrever-lhe uma carta ou fazer-lhe uma declaração? Esta pergunta conduziu-a a outra. O que é que ele sente por mim? E outra. Como irá ele reagir? E outra. Será que devo dar a conhecer o meu amor? Pensou durante muito tempo mas não conseguiu respostas, apenas mais uma pergunta. Amo-o? Decidiu então não dizer que o amava. Mas seria esta a melhor solução? Respondia às suas necessidades? Aos seus anseios? Devia manter escondidos os seus sentimentos? Finalmente, decidiu-se. Não faria mais perguntas!


9 Encontraram-se ao princípio da noite num quarto de hotel. Quando ela chegou ele estava deitado na cama, todo vestido, os olhos fechados de sono. Deitou-se ao seu lado e adormeceu também. Quando acordaram há muito era hora de irem embora. Sorriram, trocaram beijos apressados e saíram. Ainda hoje, muitos anos depois, recordam esse dia com uma ternura muito especial.


10 O coração (história feita)

Foi a casa dela com o coração nas mãos, disposto a tudo esclarecer e perdoar. Ela recebeu-o à entrada com três pedras na mão. Ele abriu o seu coração, mas nada do que disse a fez mudar de opinião, e fechou-lhe a porta na cara. Ele ficou sem pinga de sangue, e o coração caiu-lhe aos pés. Mas há males que vêm por bem, pois foi só nesse momento que ele percebeu que o seu coração era de ouro, maciço. Vendeu-o por bom dinheiro, fez das tripas coração, e levou até ao fim da vida uma existência sóbria mas feliz.


11 Encontravam-se todas as primeiras quintas-feiras do mês, das 18 às 19 horas, sempre no mesmo quarto de hotel. Umas vezes era ele que lia, outras ela, mas sempre em voz alta, clara e pausada, para que o deleite fosse mútuo e genuíno. Esta situação durou ainda bastante tempo, até que o romance chegou ao fim.


12 Um homem declarou o seu amor a uma mulher. Esta, sabendo-o muito violento, disse-lhe que sim, mas com uma condição: deveria ajoelhar-se à sua frente, de cabeça baixa e ficar imóvel por alguns minutos. Contente, ele assim fez, e muito pouco tempo passou até que ela lhe desferiu uma forte pancada na base do crânio que o matou de instantâneo. [A moral desta história é bastante clara: muitas vezes um sim condicional em nada se distingue de um não peremptório.]


13 A minha mulher é excepcionalmente quente, e eu gosto de acender os cigarros no seu corpo, declarou ontem o homem detido por maus-tratos conjugais.
III

14 Não tenho nada contra falar, podemos falar de coisas muito importantes, como por exemplo literatura, política e amor, mas é de longe preferível fazer, pois só no fazer as perguntas e as respostas ganham verdadeiro sentido. Assim falou um dia certo guru aos seus alunos, e todos concordaram em silêncio, sobretudo os que, e foram muitos, ainda ele mal se calara e já tinham esquecido as suas palavras. [Escusado acrescentar que o melhor aluno é aquele que supera o mestre.]


15 Um livro que se fecha é um livro que se abre. Um amor que acaba é um amor que começa. Na leitura e no amor não há intervalos. Se ainda não começou de novo é porque ainda não acabou de vez.


16 Cada livro tem os seus leitores. Uns mais, outros menos. Mas alguns livros têm leitores fiéis que nunca os deixam de ler. Foi o que aconteceu entre um livro e um leitor meu amigo. Conheceram-se e nunca mais se separaram. Um fenómeno que nem é muito invulgar, basta que se encontre o livro certo, aquele que desperte em nós o amor incondicional pela leitura. E foram muito felizes: o seu amor nunca teve fim pois renovava-se a cada nova leitura, afinal. [Esta é uma história fraca com uma moral forte: mais que um amigo, um livro pode ser um amante.]



17 Quando deixou de escrever, após uma carreira fulgurante, todos quiseram saber porquê. Leiam a minha obra, disse ele, e calou fundo a verdadeira razão. Nunca mais escreveu, e muitos anos passaram, mas o interesse pela sua obra aumentou e foi várias vezes reeditada sempre com sucesso. Por sua vontade expressa, todos os jornais publicaram, após a sua morte, uma pequena mensagem dirigida aos seus leitores. Não procurem na Literatura o que está dentro de vós.


18 Livros e homens

Um homem encontrou um livro estendido num banco de jardim e perguntou-lhe: Quem te perdeu? Ao que o livro respondeu: Ninguém me perdeu, na verdade fui aqui deixado para que alguém me encontrasse e me levasse consigo. Mas ainda o livro mal acabara de falar e já o homem abalava sozinho sem dizer sequer uma palavra. [A moral desta história é dupla: há livros que não falam ao coração dos homens; há homens que são surdos à voz dos livros]


19 Sentiu, pela primeira vez, uma imensa vontade de escrever, mas não tinha a mínima ideia de como lhe podia dar forma. Talvez uma carta para um amigo, mas não os tinha, talvez uma poesia de amor, mas não estava apaixonado, talvez um pequeno conto, mas ninguém o leria, talvez o seu testamento, mas não tinha quaisquer bens. Acabou por nada escrever quando podia ter escrito alguma coisa de extraordinário e perene. Mais tarde, ultrapassado aquele momento, acabou por produzir uma obra extensa e bem recebida pela crítica, mas nunca mais sentiu aquela vontade imensa de escrever. São coisas que acontecem.


20 A Morte encontrou-o sentado na cama, a ler com afinco um grosso livro, e tão compenetrado o viu que não quis de forma alguma interrompê-lo. Regressou noutra ocasião, mas ele lia ainda, como se não tivesse mais nada para fazer, e de novo ela se foi embora sem hesitações. O mesmo aconteceu ainda outras vezes, mas é claro que o homem morreu afinal um dia, como não podia deixar de ser, só que isso foi muito mais tarde. A moral desta pequena e despretensiosa história não destoa: A leitura não afasta a morte, mas ajuda bastante a prolongar a vida.


21 Gestro

Esticou o dedo indicador, como podia ter feito outra coisa qualquer, mas logo o braço, o ombro, a cabeça e todo o corpo se prolongaram num movimento único e inconfundível que lhe apontou o olhar muito para além da linha do horizonte. Foi nesse preciso instante que o homem pensou afinal que todos os gestos contam a sua pequena história, e que todas as histórias são na verdade o registo de um único gesto. [A moral desta história não é muito clara, confesso, mas talvez se possa dizer que os gestos e as palavras têm às vezes as mesmas ideias.]


22 O que se pode dizer com meia dúzia de palavras? Muito, mesmo muito, muito mais do que se imagina. Basta calar bem fundo em nós a arrogância de tudo explicar.
IV

23 Sozinha em si mesma, caminhava sem rumo nem destino. Absorta, não via que o caminho crescia debaixo dos seus próprios passos. A realidade estava virada do avesso e o interior e o exterior confundiam-se; todos os caminhos só podiam ir dar a si mesma e fora de si. As palavras tinham-se calado e o silêncio falava. Que mais podia ela fazer senão ir a direito?


24 Deu um passo à frente e, para seu espanto, logo se seguiram dois atrás. Tentou ainda muitas vezes, mas o resultado foi sempre o mesmo. Na verdade, estava cada vez mais longe de onde queria chegar. Foi então que decidiu virar costas ao problema, e seguir em frente sem hesitar.


25 Preciso mudar de vida, dizia ele vezes sem conta, mas permaneceu sempre o mesmo. [É o que acontece a quem não sente o que diz.]


26 Somos o que pensamos ser, assim pensou ele, e passou a partir daí a ser o que pensava. Mas ninguém deu por isso, e achavam que ele estava cada vez mais na mesma, o que não deixava de ser verdade, embora não fosse bem assim, pois se somos o que pensamos ser, também não podemos deixar de ser o que os outros pensam que somos.


27 Um homem sentiu-se tão infeliz que começou a chorar, e quanto mais chorava mais infeliz se sentia, até que chegou uma altura em que já não sabia se chorava porque se sentia infeliz ou se estava infeliz porque chorava. Não sei se em tudo há uma causa e um efeito, disse o homem, mas chorar de certeza que não me faz feliz, e eu não gosto de estar triste. Deixou de chorar, limpou a cara, e sentiu-se logo melhor. Não estava feliz, é verdade, mas também não estava triste, e não estar triste, se pensarmos bem, é quase estar feliz.


28 Tinha alcançado uma perfeita consciência de si mesmo, e esse sentimento intenso e persistente era-lhe agradável, mas, ao mesmo tempo, incomodava-o, como se trouxesse vestida uma camisola de um tamanho inferior ao seu. Um dia apaixonou-se e experimentou de súbito o milagre da unidade: perdeu então a consciência de si mesmo e sentiu-se finalmente um só. Estranho caminho é este que nos leva de nós aos outros e dos outros a nós mesmos, pensou o homem, e foi nesse preciso momento que se sentiu completamente miserável* pela primeira vez. [* onde se lê miserável sintam-se à vontade para ler feliz]


29 Porque queria parecer mais magro, certo homem passou a andar na companhia de gordos. E porque queria parecer mais inteligente, passou a andar na companhia de idiotas. Verdade seja dita as coisas não lhe correram bem: os gordos achavam-no idiota, e os idiotas achavam-no gordo.


30 Periclitante

Mergulhou no mais fundo de si mesmo para fugir dos outros de uma vez por todas. Foi uma enorme desilusão. Encontrou um pequeno espaço mal iluminado e bafiento. O pior mesmo foi que os outros também lá estavam. O homem saiu então de si mesmo o mais rápido possível, e nunca mais lá voltou até ao dia da sua morte.


31 Solilóquio

É talvez porque esperamos dos outros o que eles não nos podem dar que nos sentimos tão sós. E afirmar que não estamos sós ou que estamos sempre sós não é afinal a mesma coisa? Pelo menos ambas as afirmações assentam na crença que existe um Eu. Mas se o Eu verdadeiramente existe, só podemos então estar sós, porque os outros existem fora de nós. E se o Eu não existir, todos serão afinal um só, em completa solidão. E depois? Desde quando estar cheio de si é um problema? [Disse isto e calou-se: ninguém estava ali para o ouvir!]


32 O silêncio fala, mas afinal o que é o silêncio? O homem estava sentado, tranquilo, e pensava assim, mas na verdade os seus pensamentos nada eram senão uma brisa suave no silêncio do seu ser. [A moral desta história é barulhenta: estar em silêncio não é igual a estar calado.]
V

33 O prostituto

Era um dos prostitutos mais solicitados e mais bem pagos da agência, e nunca encostara um dedo que fosse em qualquer das mulheres que o recordavam com terna e saudosa paixão. Todas o descreviam como um homem atento, meigo, sábio e paciente que as guiara com segurança até si mesmas e a um prazer sem sofrimento ou limites como jamais haviam sonhado existir.

Esperava-as a extraordinária revelação de um sexo sem fricção, sem choque, sem incontida perda de fluidos, mas intenso e penetrante como um sonho. Ele falava-lhes em surdina, numa voz que parecia vir de dentro delas, e o que lhes dizia abria como que mil portais por onde elas entravam ao mesmo tempo, unidas por um prazer tão intenso que por momentos deixavam de ser, e se apagavam como sóis negros. E os orgasmos que assim alcançavam eram tão doces como frutos do paraíso, e tão medicinais quanto fatais.

Por mais que lhe implorassem nunca aceitava uma cliente segunda vez. Uma vez, uma vez apenas, e nada mais, explicava-lhes sempre com todo o vagar: era um meio e não um fim, não era possível repetir.







LIVRO SEGUNDO


I

34 Passeava pelo jardim municipal quando se sentiu diferente. Um quase nada. Uma fugidia sensação de mudança. Tentou desesperadamente capturá-la, mas em vão. Sentou-se num banco, desanimado, e ficou à espera.


35 Uma a uma, inexoravelmente, as suas possibilidades começaram a diminuir. O homem apercebeu-se disso mas, apesar de todos os seus esforços, não conseguia inverter a tendência. Não era muito esperto nem dispunha de qualquer talento, era um homem sem qualidades, como podia ele escapar da armadilha que é o mundo? Certo dia, tirou um romance da estante e começou a lê-lo. A páginas tantas, suspendeu a leitura, por coincidência, no exacto momento em que mais nenhuma hipótese de que ser quem era lhe restava. Não teve consciência desse facto, e durante anos ainda acreditou que a sua vida podia mudar.


36 Ontem, cerca das 21 horas, um homem matou a mulher por causa de um iogurte. Ele queria comer iogurte mas a mulher queria que ele comesse sopa. Eram horas de jantar, disse-lhe ela, comer iogurte estava fora de questão. Discutiram durante muito tempo, em voz alta, quebrando copos e pratos. A dada altura o homem agarrou um garfo, avançou lentamente na direcção da mulher, e espetou-lho com força na jugular. Depois foi para a varanda comer o iogurte. Era um iogurte cremoso e com pedaços de pêssego amarelo. O homem adorava aqueles iogurtes e comeu-o com prazer. Interrogados os vizinhos, aqueles foram unânimes, todas as horas são boas para se comer iogurtes.
37 Na morte do velho filósofo os elogios fúnebres pareciam não ter fim. Dedicou toda a sua longa vida ao conhecimento de si mesmo – salientaram uns. Foi um homem sábio, possuidor de um conhecimento profundo – sublinharam outros. Abriu novos caminhos à filosofia humanista – afirmaram solenemente todos. Ninguém tinha dúvidas sobre ele, tinha sido um grande homem, o maior da sua geração, um exemplo para todos. Descerrada a lápide, coube ao morto a última palavra: “Fui não sei quem”, podia-se ler em letras dourados sobre o mármore negro, na estrita obediência da sua última vontade. A multidão dispersou, num silêncio embasbacado, e só duas horas depois o mais velho e mais sábio de todos eles conseguiu proferir em voz baixa: grande cabrão!


38 Trabalhava numa oficina e sentia-se bastante angustiado. Tomou então a decisão de largar tudo e fazer uma longa viagem em busca de si mesmo. Por todos os lugares que passou perguntou por si, mas a resposta foi sempre a mesma: não sabemos quem é. Muitos anos depois, regressou ao ponto de partida, ainda sem saber quem era. A vizinha do 3.º B não teve dúvidas e saudou-o pelo nome. Sérgio sentiu um imediato e intenso alívio.


39 Uma mulher desferiu três machadadas frontais no marido com o machado de cortar lenha e na última a lâmina penetrou-lhe tão fundo no crânio que não o conseguiu retirar. O homem mostrou-se estupefacto, não estava mesmo nada à espera, e por mais que meditasse não encontrava explicação; acabou por ficar com uma tremenda dor de cabeça, e nunca mais pensou no assunto. A mulher, por seu lado, também não perdeu muito do seu tempo a reflectir sobre o que fez. Gostava de ter recuperado o machado, mas o homem habitou-se a ele e não mais o tirou da cabeça.


40 Faz hoje um ano que o meu amigo Rui caiu em si. Aconteceu de repente, sem qualquer aviso ou premeditação, apanhando-o completamente desprevenido, circunstância que em muito terá contribuído para o que veio depois. Claro que é preciso também não esquecer que ele não se conhecia a si mesmo muito bem: desprezava por completo a meditação e nunca reflectia com profundidade sobre os seus actos. Penso muitas vezes o que poderia ter feito para o ajudar, era um bom amigo e sinto muito a sua falta. Seja como for, o resultado mantém-se inalterado, desde então nunca mais ninguém o viu.


 41 Igual a si mesmo

Tinha as suas próprias ideias e emoções, e em nada o perturbava que fossem idênticas às do grupo. Sentia-se um indivíduo, e era tanto mais feliz com a sua condição de ser único quanto menos se distinguia dos outros. Suicidou-se um dia, e com ele os restantes quarenta e cinco homens e mulheres que formavam a seita a que pertencia. Foi igual a si mesmo, pode sem dúvida dizer-se, tanto na vida como na morte.


42 Uma história muito óbvia

Um homem resolveu perguntar a si mesmo o que tinha, e as respostas foram deveras surpreendentes: não tinha ideias, não tinha vontade e não tinha amor por ninguém. Percebeu que tinha pouco, muito pouco, essa era a verdade, mas, apesar disso, descobriu que podia pensar muito, querer muito e amar muito. Acreditou então que quanto menos tivesse mais poderia ser.


43 No início foi pedido a todos os participantes que se apresentassem. Quando chegou a sua vez, o homem não conseguiu dizer nada, nem mesmo o seu nome. E isso disse muito sobre ele, apesar de ter atrasado bastante a reunião.


44 Quando morreu só encontrou a morte, e nada mais. Nem túnel, nem luz, nem anjos sorridentes, nem mesmo o eterno descanso. Apagou-se apenas, e deixou de estar no mundo. Mas o melhor de tudo é que nunca mais pensou em coisa alguma. Verdade seja dita, foi como ele sempre imaginara.



II


45 Adormeceu a pensar nela e acordou a pensar nela. Vários dias depois continuava a pensar nela. Este sentimento era-lhe tão agradável que decidiu preservá-lo. Desapareceu sem deixar rasto e nunca mais a procurou. Foi bem sucedido. Ainda hoje, decorridos mais de vinte anos, continua loucamente apaixonado por ela.


46 Esperou por ela uma hora. Já tinha bebido dois gins tónicos e tinha comido quase uma cesta de pão variado com um queijo seco de cabra. Telefonara-lhe duas vezes, e das duas deixara mensagem. Pediu a ementa e a lista dos vinhos e, depois de uma leitura atenta e minuciosa, encomendou o jantar: rosbife, com puré de maça e batatinhas coradas, e uma garrafa de vinho tinto, reserva, do Douro. Comeu e bebeu com um prazer intenso, tonto de sabores e aromas. Não quis sobremesa, terminou com um café forte, da Etiópia. Quando ela chegou queixando-se do trânsito e da vida, ele sorriu-lhe, levantou-se e saiu, deixando-lhe a conta para pagar. Caminhou durante meia hora, aspirando voluptuosamente o ar frio da noite lunar; sentia-se feliz. Decidiu jantar mais vezes sozinho.


47 Leu o texto com redobrado interesse: simples mas conciso, a linguagem vulgar mas carregada de uma poesia suave. Gostava, gostava mesmo muito. Leu-o novamente, em voz alta: homem só procura mulher só para partilharem em conjunto a solidão. Ficou tão entusiasmado que foi imediatamente para a janela gritar o seu pregão. Estava ele debruçado a ouvir uma das muitas candidatas que haviam acorrido, quando caiu desamparado nos seus braços. Podia ter sido uma história com um final feliz, mas não estava destinado que assim fosse. Morreram a caminho do hospital sem terem retomado consciência. Inconvenientes de viver em locais elevados!


48 Felicidade

A-mo-te, disse ele, em voz baixa, soletrando a palavra com exagerada solenidade, mas pareceu-lhe ouvir ma-mu-te, e franziu as sobrancelhas. Depois disse apenas a-mo, mas logo respondeu para si mesmo: se-nhor! Calou-se então, fechou os olhos, e esperou que a imagem dela se tornasse definida e nítida. Só nesse momento pensou e sentiu verdadeiramente que a amava. Ela nunca soube disso, na verdade quase nem dava por ele, mas, ainda que por breves instantes, ele amou-a e o amor existiu nele. Foi feliz, não para sempre, é certo, e não com ela, mas foi feliz, repito, disso tenho a certeza.


49 Um homem e uma mulher

Um homem e uma mulher é uma história de sempre. Basta evocá-los para que uma história comece, sempre nova e eternamente a mesma. Façam-me então esse favor. Estão já a imaginá-los? Tomem bem atenção! Repararam como passaram a ser um ainda que continuem a ser dois? O amor e a sua impossibilidade, eis o enigma que todos os amantes têm de decifrar, e o homem e a mulher desta história que aqui começaria não são em nada diferentes dos outros. [Pois é, nada mais óbvio, quem é que desconhece que o amor é um enigma? Nem sei porque o repeti!]


50 Felicidade infeliz

O amor que sinto por ti morreu, declarou-lhe ele, mas sabia que o amor que sentia por ela estava vivo, e embora não mentisse a si mesmo também não estava a dizer a verdade. Durante muito tempo tudo fez para decifrar aquele enigma, e acabou por concluir, vencido, que estava perante mais um daqueles paradoxos em que a sua vida parecia ser fértil. Mas na verdade a resposta era simples e inequívoca, ele é que não a queria aceitar. Como todos os amores infelizes, aquele não tinha onde cair morto, e essa era a única razão que o mantinha vivo.


51 Juntos para sempre

Contra todas as previsões, nunca se separaram até ao fim. Morreram apenas três dias depois, num acidente de viação, quando regressavam da lua-de-mel, e tudo aconteceu tão de repente que nem tiveram tempo de se rir das palavras que tanto os tinham emocionado dias antes: Até que a morte os separe. Foram enterrados juntos, e mais não digo.




52 Uma receita

Partiu seis ou sete ovos e deitou-os (sem a casca!) numa tigela, acrescentou oito ou nove colheres de sopa cheias de farinha, um copo e meio de leite (1/4 de litro era o que dizia a receita!), sal e pimenta, mais o que tinha à mão (queijo aos cubos, uma chávena de vegetais cozidos, azeitonas pretas, um pouco de fiambre!) e ainda salsa. Mexeu tudo muito bem e levou depois a lume brando numa frigideira antiaderente até cozinhar (rijinha mas sem estar queimada!). Finalmente, cortou a tortilha em pedaços e comeu-a sozinho, acompanhado de um vinho tinto de aroma subtil. Ela tinha-o ensinado bem! [A culinária tem a sua arte mas também as suas histórias.]


53 Um homem e uma mulher encontraram-se e logo se apaixonaram perdidamente, o que até seria quase vulgar, não fossem as circunstâncias adversas que fizeram com que esse amor ainda mal começara e já fosse. Acontece que a mulher vivia no presente, cada dia de uma vez, como se fosse o último. Por outro lado, o homem vivia no futuro, cada dia era para ele o primeiro de todos os que se seguiriam. E foi desta maneira que ainda mal se haviam apaixonado e já o amor era passado. A moral desta história a seu tempo chegará. É só ter paciência!



III

54 Não queria morrer sem deixar rasto, ignorado, incompreendido, apenas mais uma breve notícia numa página interior de um jornal local. Não só o seu suicídio deveria estar carregado de um claro e grandioso simbolismo trágico, mas também o bilhete de despedida, inevitável, teria de ser brilhante, conciso e comovente. Começou pela tarefa que lhe pareceu mais fácil; terminou duzentos e cinquenta e sete bilhetes de despedida, que lhe consumiram seis meses de intensa actividade, mas, apesar da elevada qualidade de todos, nenhum lhe pareceu verdadeiramente ajustado ao seu sentir. Uma grande editora interessou-se pelo seu trabalho e publicou-o sem demoras, tendo atingido, em seis meses, seis edições e cem mil exemplares. Aceitou o sucesso com indiferença, um ano depois morreu, famoso, sem deixar qualquer bilhete de despedida; o seu suicídio continua por explicar.


55 Abriu o livro ao acaso e leu uma linha, mais precisamente a quinta linha da página 145. Ficou muito perturbado, o rosto lívido e a voz embargada, parecia que ia começar a chorar mas conteve-se com esforço. Leu mais uma linha, desta vez a décima da página 31, e riu com gosto durante muito tempo. Depois foi a vez da linha trigésima da página 222: um autêntico convite à reflexão que lhe foi impossível declinar. Devolveu o livro ao seu lugar na estante e pensou emocionado, entre o choro e o riso, que só a literatura dá sentido à vida.



56 Um homem que passeava o seu cão no jardim público desapareceu misteriosamente. Desapareceu de repente, à frente de várias testemunhas. Todas as pessoas interrogadas foram unânimes em afirmá-lo, não houve forma de demovê-los, o homem desaparecera no ar. Os jornais falaram em alucinação colectiva, chegando mesmo alguma imprensa a afirmar que o homem fora raptado por alienígenas. Nunca se soube quem era e, apesar das investigações realizadas, parecia nunca ter existido. Muitas pessoas foram ouvidas, muitas opiniões foram avançadas, mas ninguém deu atenção ao escritor que, em poucas palavras, afirmou que muito provavelmente o homem caíra fora da sua história.


57 Era uma vez um homem a quem nada corria bem. Como era dado à reflexão, passava muito tempo a pensar na sua vida. Disciplina e persistência é tudo o que é preciso para obter o que desejamos: foi a esta conclusão que ele chegou finalmente. E se assim o pensou mais depressa o fez. Mas não havia nada a fazer. A disciplina e a persistência foram inúteis no seu caso. Escreveu um livro sobre o assunto, que se tornou um campeão de vendas, e foi feliz para sempre. Morreu, sem que se saiba porquê, num sete de Outubro.


58 Um belo dia, decidiu escrever a história da sua vida. Sentou-se em frente ao monitor, olhou por um momento o dia lá fora, e começou a escrever tudo o que recordava, por ordem cronológica, desde o nascimento, primeiro acontecimento inscrito no rol, sem prejuízo de um breve mas necessário recuo genealógico. Nos cinco anos seguintes, reconstituiu exaustiva e minuciosamente a sua existência até ao dia em que começara a descrevê-la. Quando terminou, leu, duas vezes, as seiscentas e trinta e quatro páginas impressas a dois espaços, e achou o texto incompleto, os cinco anos que levara a escrevê-lo não estavam lá e, o que era pior, não terminava verdadeiramente, não tinha fim. Saiu de casa e deu um longo passeio pensativo ao longo da via rápida, até que foi assaltado pela ideia de que os últimos cinco anos eram o próprio livro, o livro incluía esse tempo de escrita em si mesmo, a descrição da sua vida estava completa, até aquele momento. Sorriu e precipitou-se para o fim, servido ali mesmo na faixa de rodagem por um veículo longo como a morte.


59 Nas paredes das casas eram visíveis os buracos de bala disparados pela polícia. Buracos que se repetiam no corpo do homem. Era um homicida, um homem perigoso que nada tinha a perder. Chamavam-lhe homem-bomba e mata-bófias. No bolso esquerdo do blusão de cabedal foi encontrado um livro. Estava trespassado por uma bala que lhe foi direita ao coração. O polícia pegou no livro com mágoa. Amava aquele romance e doeu-lhe imenso vê-lo assim vandalizado. Sentiu como se assistisse à morte de um amigo querido. Olhou para o cadáver com raiva e cuspiu-lhe no rosto. Os outros polícias seguiram-lhe o exemplo.


60 Estava uma história muito descansada, a pensar na vida, quando alguém começou a contá-la. Ficou muito aborrecida, mas nada podia fazer. É sabido que as histórias não podem impedir que as contem, o que é muito desagradável, sobretudo se pensarmos que ficam completamente nas mãos, melhor seria dizer nas palavras, de quem as conta. Por isso à nossa história nada mais restava que ficar à escuta e desejar ser bem contada, que é o que desejam todas as histórias. Terá sido o que aconteceu? Não sei, que me faltou imaginação para mais. As histórias não falham, mas aos narradores acontece.


61 No início os pontos formavam uma linha intermitente que se estendia a perder de vista. Durante vários dias seriam sujeitos a muitas provas e todos dariam o seu melhor. Os primeiros excluídos, por razões óbvias, foram os que se mostraram incapazes de conter exclamações e interrogações. Os que se agruparam com outros pontos ou não resistiram ao encanto das vírgulas foram os seguintes. Mas ainda a procissão ia no adro, e de entre os pontos que restavam, todos eles solitários e orgulhosos, só um deixaria os parágrafos para trás e fecharia o texto, sendo então aclamado como o .


62 Pegou numa palavra vulgar, extraiu-lhe significados uns atrás dos outros até ficar exangue, depurou-os depois num texto esquisito serviu-o por fim acompanhado de vinho novo. [Programar é suportar e desejar a imensidade do espaço aéreo.]


63 Estava silencioso, mas corria em todas as direcções. Estava lívido, mas gorgolejava profundamente. Estava hirto, mas as suas cuecas eram cor-de-rosa. Estava morto, mas falava pelos cotovelos. As pessoas que ali tinham acorrido começaram a comentar entre si que não o acompanhariam a casa se ele continuasse a não se comportar com todo o decoro que a situação exigia. Como ele persistisse, escreveram uma carta de protesto que todos assinaram e lhe entregaram em mão. Depois foram-se embora e deixaram-no finalmente só. Ele não se importou nem um bocadinho. Continuou morto, mas cheio de vida. Era um cadáver muito esquisito.
64 Como fazer um aforismo

De um dicionário de Língua Portuguesa qualquer retire uma mancheia de palavras, por exemplo: azul, cadeira, descansar, poeta. Coloque-as num copo misturador, junte uma pitada de sintaxe e outras coisas que tais. Agite até ficar tudo muito bem misturado. No final, deite o preparado com muito cuidado numa folha de papel branco. Está pronto, por exemplo: a cadeira do poeta descansa no azul. Se não lhe agradar, pode sempre repetir a operação, juntando ou não mais palavras. Serve-se a frio, a qualquer hora do dia e em qualquer ocasião. É ideal para impressionar os amigos. Deve beber-se de um trago.


65 Isso é um livro?

Entrou numa livraria e pediu o nariz de Gogol. A empregada tentou vender-lhe a mãe de Gorki. Ficou muito perturbado, e exigiu-lhe em alternativa as três irmãs de Tchekhov. Mas ela só conhecia a mãe de Gorki e nunca tinha privado com as três irmãs de Tchekhov ou sequer entrevisto o nariz de Gogol. Ele falou-lhe então longamente da riqueza da literatura russa, e ela escutou-o com atenção. Estão muito apaixonados e vão casar-se. A mãe de Gorki foi convidada. Ela insistiu, e ele não foi capaz de lhe dizer que não, mas é óbvio que preferia de longe convidar a Ana Karenina. [E não se esqueçam, nada disto teria acontecido se ela tivesse apenas respondido: Isso é um livro?]



66 Dito e feito

Era uma vez um homem que dizia apenas o que tinha de ser dito, e fazia tão só o que tinha de ser feito. Viveu sempre assim, firme nas suas convicções, até morrer, sem no entanto atrair sobre si a atenção dos outros, e dizem até que foi muito feliz. O mesmo se passou com esta pequena história que, tal como o homem, também não teve escolha e se limitou a ser o que teve de ser até ao fim.


67 Era uma vez um homem que permaneceu quieto no seu quarto até não se distinguir dos livros que o atravancavam. Também eles estavam fechados sobre si mesmos, esquecidos de ser. Agarrou então um livro ao acaso e levou-o consigo para fora. Sentou-se mais tarde num banco de jardim e leu como se fosse a primeira vez. Nunca mais regressou ao quarto e jamais abandonou o livro. [Foram felizes para sempre, é o que me apetecia dizer a terminar! E vocês?]


68 O futuro

Não sei que futuro vou ter, mas sei que vou ter futuro. Isto disse um homem, tal e qual, e morreu quase de repente. Tivessem sido aquelas as suas últimas palavras e certamente a ironia da situação as teria imortalizado. Mas a verdade é que ainda teve tempo de dizer mais alguma coisa, e foram essas as palavras que todos repetiram e logo esqueceram. Ai que me estou a sentir mal!

69 A literatura é a minha religião, disse o homem, e não sentiu em si qualquer necessidade de invocar um ou mais deuses. E, como tantas outras vezes, sentiu que aquela era uma afirmação que tudo explicava sem nada explicar, pairando inútil entre o sonho e a realidade. Repetiu a medo a frase, e, por breves instantes, como acontecia nessas ocasiões, viu as suas palavras riscarem de sonho a realidade, como o voo errante da borboleta de asas tingidas de azul vibrante que sempre recordava, acordado ou a dormir. [A moral desta pequena história é paradoxal: não acreditar é também acreditar.]


70 A verdade

Perguntaram ao velho escritor como se escrevia, e ele deu a mesma resposta de sempre: escreve-se escrevendo, palavra a palavra, frase a frase, parágrafo a parágrafo, e por aí adiante. Por estas e por outras é que há muito que não lhe faziam entrevistas. [A verdade pode ser muito maçadora.]


IV


71 Levantou-se e permaneceu sentado, fechou o livro e continuou a leitura. Desde que se levantara da cama, manhã cedo, tudo lhe saíra ao contrário, sem que conseguisse, no final do dia, encontrar uma única explicação para tudo o que acontecera. Levantou-se e de novo permaneceu sentado, voltou a fechar o livro e leu-o até ao fim. Durante algum tempo pensou em tudo o que fizera nos últimos anos, a vida tinha-lhe corrido bem, a sorte nunca lhe tinha faltado, a sublinhar, é certo, opções correctas. Levantou-se e mais uma vez permaneceu sentado, fechou o livro e foi deitar-se, convencido de que amanhã seria outro dia e talvez tudo voltasse ao normal, afinal só a morte não tinha remédio. Nada disso, nada mas mesmo nada disso, adormeceu e nunca mais acordou, saiu-lhe tudo ao contrário, menos a morte, que é astuta e maliciosa e não gosta de contradições.


72 Avançou com confiança em direcção aos seus sonhos. Nem muito depressa nem muito devagar. Um avançar feito de avanços mas também de recuos e de pausas. Com confiança mas não sem dúvidas. Sempre mais além na direcção da linha do horizonte, onde os sonhos vivem, a confiança em si mesmo e nos sonhos alimentando um movimento perpétuo. Avançou, avança ainda e há-de avançar, sempre em direcção aos seus sonhos. Os sonhos, esses, estão-se nas tintas.


73 Primeiro, deixou de comer carne. Depois, deixou de consumir produtos lácteos e derivados. A seguir deixou de comer. Deixar de beber foi o passo seguinte. Por último deixou de respirar. Passado mais algum tempo, não soube quanto, deixou-se ir, cessou de existir e foi o fim.


74 Pediu um café, simples, sem adjectivações, nem curto nem cheio, nem pingado nem escaldado, nem outra coisa qualquer, apenas um café, um café para ajudar a ganhar coragem, para mais um dia, para um dia mais. O empregado trouxe-lhe o café, quente, a escaldar, meio-cheio e fumegante. Deixou passar alguns minutos, não mais de cinco, e bebeu-o num gole, sem açúcar ou adoçante. Olhou a chávena e estava meio-cheia de novo, quente a escaldar, fumegante. Esperou e bebeu o café outra vez. Pousou a chávena no pires, com atenção, cuidadosamente, estava de novo meio-cheia; guardou-as no bolso direito do casaco, tentando não entornar, e saiu sem pagar. Abriu uma cafetaria num centro comercial e serviu milhares e milhares de cafés, até ao dia em que, misteriosamente e sem qualquer explicação, a chávena, a mesma tantas vezes usada, ficou vazia, definitivamente. Trespassou a cafetaria com o recheio, a chávena e o pires incluídos, e deixou de trabalhar. Viveu ainda muitos anos mas nunca mais bebeu café, por razões sentimentais.


75 Quando o seu salário se encolheu, mais uma vez, ao novo aumento generalizado do custo de vida, pensou que era altura de fazer alguma coisa. Sentou-se no sofá vermelho, as pernas cruzadas, o olhar fixo no tecto, a concentração em pessoa, e adormeceu imediatamente. Ao abrir os olhos, estremunhado, estava decidido: ia entrar em greve, em greve total. Saiu de casa, apressado, e foi postar-se ao lado do poeta de pedra, que protestou, sem se mover, incomodado com aquela proximidade não desejada. Dias depois, não aguentou mais e foi-se embora, em silêncio, arrastando os pés. O homem ocupou-lhe de imediato o lugar; tinha-se habituado rapidamente ao seu novo estatuto. Ninguém notou a diferença, nem mesmo os pombos.


76 Mudou completamente. Foi uma mudança profunda, interior, irreversível. Ninguém se apercebeu. Via as coisas de maneira diferente (era esta a mudança) mas o seu aspecto não sofrera modificações (a sua imagem permanecia inalterada). Com o tempo ele mesmo se convenceu que nada mudara.


77 Mudou tão completamente que já ninguém o conhecia. Não o deixaram entrar no local de trabalho (era estritamente proibida a entrada a estranhos ao serviço), e a mulher expulsou-o de casa ameaçando chamar a polícia (era uma mulher honesta e enérgica). Tinha mudado tão completamente que nem se importou com o que lhe estava a acontecer. No fim de contas, agora podia ser outro.


78 Mudou de carro. Mudou de nome. Mudou de aspecto. Mudou de profissão. Mudou de residência. Nunca ninguém conseguiu perceber porquê. Nem ele.


79 Deitou-se loura e acordou morena, ou talvez tenha sido ao contrário, isso não interessa, o importante é que acordou diferente, mudada. Ficou muito aflita e preocupada, as pessoas iam notar e comentar a sua transformação. O que lhes diria? Que explicação avançaria? E o que ia vestir? O seu guarda-roupa de nada lhe servia agora! Que desgraça! Tinha mudado, sim, tinha mudado, mas no seu interior permanecia a mesma pessoa.


80 Mudar

Era uma vez um gigante que vivia no meio da gente pequena, mas era muito desajeitado e a convivência tornou-se cada vez mais difícil. Todos fugiam à sua frente e gritavam sem cessar que se fosse embora, insultando-o de tudo, mas ele insistia em ficar e fazia de conta que não era nada com ele. Um dia em que se sentia muito mais triste do que o habitual decidiu finalmente mudar. Concentrou toda a atenção em si mesmo e convocou a mudança desejada até que ela finalmente aconteceu: tinha agora o tamanho dos homens. Mal a população se deu conta da transformação, logo o expulsou da aldeia e ordenou-lhe que nunca mais voltasse. Ele foi-se embora sem protestar, os braços caídos ao longo do corpo, a sua vontade tinha diminuído tanto quanto o seu tamanho.


V


81 Não deu por nada e continuou a frequentou os locais habituais. Todos sabiam mas ninguém lhe disse nada. Não é uma coisa muito agradável para se dizer a quem quer que seja e ninguém o queria entristecer. Ele sentia-se bem, muito bem, e só quando se apercebeu que essa sensação não desaparecia é que soube que estava morto.








LIVRO TERCEIRO


I


82 Tinha em casa muitos espelhos e olhava-se neles vezes sem conta. E o mesmo acontecia com todos os outros espelhos que encontrava. Era um homem belo e atraente, muito preocupado com o seu aspecto. Não admira pois que a sua obsessiva contemplação de si fosse considerada como uma mera preocupação com a aparência, quando na verdade ele o fazia para se assegurar que existia. Levava a existência muito a sério.


83 O enlevo

Sentiu em si algo que não era novo mas que há muito já esquecera, e tudo fez para se encher desse sentimento. E de tal forma o fez, tão intensamente, que começou a inchar cada vez mais, sem nunca parar, ao ponto das pessoas que ali estavam começarem a correr assustadas em todas as direcções, na iminência da explosão. Mas quando a praça já mal continha o fenómeno, eis que se elevou sem esforço e desapareceu no céu com um enorme sorriso rasgado de satisfação. [Nunca é tarde de mais para se contar de novo uma história há muito esquecida.]





84 A verdade

Era uma vez um homem que encontrou a verdade e, para que não a perdesse ou a roubassem, escondeu-a muito bem escondida e deixou-a entregue a si mesma. Assim passaram muitos anos, e ele já mal se lembrava da verdade que um dia descobrira e tão bem mantivera afastada de si e dos outros. Resolveu então olhá-la de frente, mas quando o fez, nem soube o que dizer, pois se alguma vez ali estivera uma verdade há muito que deixara de o ser. "Agi mal", disse o homem, "devia-a ter partilhado", e foi esta sinceridade que na verdade o salvou.


85 A pedra no Sapato

Era uma vez um homem que tinha uma pedra no sapato, e por mais vezes a deitasse fora, nunca dela se via livre, pois a pedra, a mesma ou outra, sabe-se lá, sempre voltava a aparecer como por artes mágicas. O homem desesperava e não encontrava solução, até que depois de muito matutar resolveu não mais se calçar. Muitos foram os que acharam que ele endoidecera, muitos os que riram dele, e muitos deixaram até de lhe falar. Mas o homem não se importou mesmo nada. A verdade é que se sentia muito melhor e só isso era realmente importante.





86 Era uma vez um homem que durante muito tempo permaneceu sentado, nada fazendo, e sentia-se muito bem assim, mas chegou uma altura em que experimentou uma imperiosa necessidade. Ergueu-se lentamente, olhou em volta sem pressa, espreguiçou-se, e de novo se sentou, em paz, com um sorriso brilhando no rosto. E muito, muito mais tempo passou.


87 Nada mais fazia senão perguntar a si mesmo quem era, mas não conseguia uma resposta conclusiva, a não ser que era um homem, e isso não o ajudava, muito pelo contrário, pois levantava uma nova pergunta, que o levava para mais perto e mais longe de si, pois não só lhe dizia respeito mas também a todos os outros. E assim pensando, cada vez mais se atormentava, pois continuava sem saber quem era, e isso era afinal o que ele mais queria. Felizmente, acontecia-lhe algumas vezes ficar tempos sem fim a olhar o céu, e não pensar em coisa alguma.


88 Olhou-se de repente no espelho com a estranha mas convicta sensação de que se iria ver pela primeira vez tal como era, nem mais, nem menos, mas a imagem devolvida era tão enigmática e familiar como sempre. Fechou então os olhos e esforçou-se por sentir quem era, e por muito tempo nada mais fez, mas apenas conseguiu por momentos esquecer-se por completo de si. Bizarra compulsão era a sua que o impedia simplesmente de ser.



89 Só quando compreendeu que nada era é que pôde finalmente ser, o que o deixou feliz e cheio de si, tão cheio que só pensava em partilhar a sua descoberta com toda a gente, mas cedo percebeu que não só não conseguia explicar o que tinha alcançado, como não estava verdadeiramente interessado em fazê-lo.


90 Conhecia o caminho de ida e o caminho de volta e várias vezes os tinha percorrido. Sabia também que o caminhante faz o caminho. Por isso não se admirou quando o caminho de ida o trouxe de volta e o caminho de volta o levou a partir de novo. Era um homem sábio e experimentado e não ignorava que o destino não se encontra no fim do caminho mas em cada curva do nosso ser.


91 Ele era, e muito se esforçava por ser, mas a verdade é que, fosse como fosse, ele sempre seria o que quer fosse que era. E foi neste jogo de palavras, divertido e fútil, que fui de novo visitado por uma convicção antiga. As palavras só nos podem levar até determinado ponto. A partir daí é necessário avançar em silêncio.


92 Era um homem bom e extraordinário, inteligente e sensato, solidário e generoso, persistente e dinâmico, e mais, muito mais, que nele as qualidades vinham sempre aos pares e não terminavam nunca. Pena é que com tantos adjectivos se perdesse o que nele era verdadeiramente substantivo.


II


93 História de amor

Conheceram-se. Apaixonaram-se. Casaram-se (ou não!). Queriam ser felizes para sempre e às vezes foram-no.


94 O Paulo queria e não queria a Paula, ou não queria e queria, mas ainda a Paula, que a ordem dos factores é arbitrária mas o resultado sempre o mesmo. E se o amor é querer e a paixão ainda mais, pois nela não cabe o não querer, o que será este querer e não querer, que na verdade não quer nem deixa de querer? A verdade é que o Paulo não faz a mínima ideia. Tivesse ele uma resposta e eu teria afinal contado outra história que não esta que acabei de contar. Mas as histórias são como são!


95 Ela visitava-o todos os dias, nos seus sonhos, e fazia-o muito feliz, tão feliz como nunca alguma vez ele fora. Chegava num passo tão ligeiro que os pés nem pareciam tocar o chão, e logo o abraçava com intensa ternura, sussurrando-lhe ao ouvido que o amava muito. Cheirava a fruta madura e deixava-o louco de desejo... tão louco que ele a procurou por toda a parte e, verdade seja dita, acabou por a encontrar, o que nem mesmo ele acreditara verdadeiramente. Mas, desse momento em diante, ela deixou de aparecer nos seus sonhos, e nunca mais foi a mesma coisa.

96 Como não a conseguia compreender, pediu-lhe os olhos para com eles ver o mundo, convencido que estava aí a solução. Perturbou-se de tal forma que nunca mais a quis ver.


97 Ele gritou que a amava, mas ela não o ouviu. Quando fazia amor concentrava-se por completo e nada mais existia para ela a não ser o amor que fazia. Ele de novo afirmou que a amava, agora num sussurro, os corpos saciados estendidos lado a lado, mas ela ignorou-o. Se havia coisa que ela nunca fazia era falar de amor.


98 Primeiro olhou para ele e viu um príncipe encantador. Não muito mais tarde viu nele um monstro horrível. Na verdade ele não era nem uma coisa nem outra, era apenas ele mesmo e nada mais. Tudo estava no olhar dela. Não que isso tenha feito grande diferença, mas foi assim.


99 Uniram-se como nunca se tinham unido, como se fossem apenas um. Quando ela lhe perguntou se a abandonaria, ele não só não percebeu como julgou estar a enlouquecer.


100 Se ela estivesse apaixonada por ele, escrever-lhe-ia sem dúvida uma doce carta de reconciliação. Isto foi o que ele pensou, mas esperou em vão, que é o que acontece muitas vezes a quem confia nos correios. Antes isso do que deixar de acreditar no amor.


101 Não a voltou a ver, mas muitas vezes recordou a última ocasião em que estiveram juntos. O mês era Agosto, o ano já nem sabia ao certo. Tinha sido ele que tinha exigido que se encontrassem. Precisava falar com ela, disse, e ela acedeu. Poderia ter respondido que não, não sentia qualquer necessidade de falar com ele, mas achou que lhe devia isso, as separações são sempre assuntos complicados. Ele tinha tudo planeado, mas quando ela chegou percebeu afinal que já estava morta para si, e desistiu de a matar. Ela achou-o diferente, quase feliz, e chegou mesmo a desejá-lo.


102 Num dia que já só consigo imaginar, atravessaste a rua e disseste que me amavas. Respondi que também te amava, mas esse amor pareceu-me tão impossível então como agora me parece que tenha afinal acabado.


103 Encontrou sempre o homem certo no tempo errado. Não é assim de admirar que chegado o tempo certo só encontrasse homens errados. Uma mera questão de harmonia.


104 [Check list]

- Preparar um jantar frio.
- Abrir um tinto velho.
- Colocar as argolas que ele tanto gosta.
- Dizer-lhe que está tudo acabado.
105 Quando ficaram a sós, ele passou-lhe de leve a mão pelo cabelo, olhou-a nos olhos e sorriu. Foi então que ela lhe disse, palavra a palavra, o que ele há muito desejava ouvir. Só nessa altura ele percebeu que estava a sonhar, mas nem por isso se sentiu menos feliz.


106 O amor

Ele queixava-se dela e mais uma vez concluía que não sabia o que fazer. Sinto-me com um ciclista sem bicicleta, disse ele a certa altura, e ela riu-se muito. Ele riu-se também, pararam de discutir, beijaram-se e acariciaram-se. É assim o amor.


III

107 Uma História Extraordinária

Certo homem recebeu um dia a extraordinária notícia de que ganhara o mais importante concurso literário do seu país, facto tanto mais extraordinário quanto tinha a certeza de não só não ter concorrido como de nunca ter escrito um única linha em toda a sua vida. Era, verdade seja dita, um excelente contador de histórias, mas completamente analfabeto, facto que não o impediu de comparecer à cerimónia de entrega com um sorriso vencedor e proferir um discurso que ainda hoje é citado amiúde. E até à sua morte contou esta história a quem a quis ouvir. Eu fui um deles.


108 As palavras

Despertar em nós o que nunca pode ser dito é uma das coisas que as palavras podem fazer, talvez até a mais importante, por mais contraditório que isso possa parecer, disse o homem sábio a quem o quis ouvir. No entanto, ninguém o escutou verdadeiramente, e não foi porque tivesse falado de mais, nem de menos, nem fosse pouco claro o seu discurso, mas apenas porque até a maior sabedoria nada é se não for vivida por cada um de nós. Na verdade, o que acontece é que se as palavras despertam, também adormecem, e para escutar é preciso ouvir.



109 A Obra, o Escritor e o Homem

O Escritor e o Homem eram vistos juntos com frequência, a maior parte das vezes a discutir, em voz alta, mas sempre com grande cordialidade e respeito. Só quando falavam da Obra é que os ânimos sobreaqueciam e quase perdiam as estribeiras, pois a verdade é que tinham opiniões muito diferentes e por vezes mesmo contraditórias. O escritor e o homem morreram entretanto. A obra continua por aí e recomenda-se.


110 Entrou em casa e encontrou-se na rua, em frente à porta, de costas para ela. Voltou-se, entrou de novo, e de novo estava cá fora, num movimento suave e contínuo que não lhe causou qualquer perturbação. E várias vezes repetiu a acção, sempre com o mesmo resultado, até que o leitor, que desde o início o seguira sem a mínima hesitação, acabou por se cansar e fechar finalmente o livro.


111 O seu primeiro livro foi um enorme sucesso de vendas e de crítica, o que o assustou de tal forma que nunca mais conseguiu escrever. Mas a verdade é que essa circunstância contribuiu ainda mais para o seu sucesso, e até ao fim da sua vida viu os seus leitores e a sua fama crescerem sem parar. O suicídio também fez a sua parte neste fenómeno, mas isso foi mais tarde, um nada mais tarde.




112 De alguma maneira

Uma história tem de começar, de alguma maneira, assim como depois tem de continuar, de alguma maneira, e ainda, de alguma maneira, finalmente deve terminar. De alguma maneira, é isto que a ficção é: começar, continuar e terminar uma história.


113 Estava um homem deitado, adormecido, quando uma história o agarrou pelos cabelos, assim mesmo, sem mais nem menos, e o arrastou consigo, alheia aos seus gritos de espanto e de protesto. Ia a história quase a meio quando percebeu afinal que se enganara, e aquele homem não devia ali estar. Mas isso é outra história, e esta fica por aqui.


114 Certo dia uma página disse a outra que desaparecesse, estava farta dela, já não podia suportá-la; ao que esta lhe respondeu com muitas e boas, quem está mal muda-se e outras que tais. Foi tal a discussão, que se estendeu em pouco tempo a todo o livro, e não havia página que não gritasse alto e bom e som o seu descontentamento. Ainda nem um minuto tinha passado quando um homem de uniforme chegou ao local, agarrou o livro com determinação e folheou-o com vigor, pondo fim ao tumulto. Era uma biblioteca onde se mantinham regras estritas quanto ao silêncio.




115 A história atrás da orelha

Um homem acordou um dia com uma história atrás da orelha, e por mais que tentasse nunca lhe conseguia pôr termo. Só vários livros depois é que percebeu afinal que tinha sido picado pelo bichinho da escrita.


116 Tempos houve em que escrevia como respirava, sem quase ter consciência. É claro que às vezes sabia muito bem o que estava a fazer, mas era como se inspirasse e expirasse profundamente, escrevia a plenos pulmões. Agora é diferente, tenho medo, aprendi que escrever é como respirar: assim que começamos não o podemos deixar de fazer. E o que escrevemos é sempre impuro, rarefeito. Escrevo com dificuldade, com os pulmões dilacerados. Tempos houve em que não escrevia e não pensava em escrever. Então respirava como escrevia, sem quase ter consciência. Agora escrevo como respiro e respiro como escrevo, a custo.


117 A mão escreveu na folha em branco uma frase simples, bela e penetrante. O homem, apanhado de surpresa, olhou para o lado e fez de conta que não era nada consigo. A mão agarrou a folha, amachucou-a e deitou-a no caixote do lixo. O homem olhou a folha em branco à sua frente e suspirou.


IV


118 O Emir dos Crentes

Certo dia o sultão Harum Al Raschid, Emir dos Crentes, ordenou que trouxessem à sua presença dois homens em tudo comuns, e a cada um deles ordenou: Escolhe entre matar alguém ou ser morto! Um deles escolheu matar e o outro ser morto, mas a ambos o Emir dos Crentes mandou degolar sem demoras. Ao velho sábio que ousou perguntar, esclareceu que ambos lhe tinham dado uma resposta, quando na verdade só a ele cabia escolher.


119 Porca de vida

Agir pode ser tão inevitável como não agir, mas não agir dá muito menos nas vistas. Foi mais ou menos isto que ele pensou, amaldiçoando-se mais uma vez nem sabia bem porquê, se por não ter conseguido deixar de agir ou apenas por ter agido. Não lamentava ter agido, mas podia não o ter feito, e se o não tivesse feito só a ele diria respeito e a mais ninguém, o que não era o caso. Fosse como fosse, uma coisa é mais que certa, era um homem muito complicado, mas o livre arbítrio também não lhe dava folgas, essa é que é a verdade.



120 Um homem perguntou certo dia a si mesmo se era possível procurar a felicidade. E durante muito tempo só pensou em responder a essa inquietação. Pode-se procurar a felicidade, mas na verdade só ela nos pode encontrar, foi esta a conclusão a que chegou afinal. E nesse momento sentiu-se feliz.


121 No dia, hora e lugar combinado ele estava lá, preparado para o que desse e viesse. Ninguém veio, e nada aconteceu, mas ele estava lá, e por muito tempo ali ficou, até que se foi embora.


122 SE HOUVER UM PROBLEMA HÁ UMA SOLUÇÃO

Quando lhe deram a notícia da sua morte não ficou nem triste nem contente, e muito menos surpreendido, o que explicou a si mesmo como sendo um natural mecanismo de defesa. Mas quando mais tarde transmitiu a novidade à sua mulher, sentiu em si mesmo um grande alívio, e isso não lhe pareceu normal. Pensou e pensou, mas não chegou a uma conclusão, a não ser que talvez há muito desejasse morrer e não o soubesse. Fosse com fosse a verdade é que estava morto e, diz o povo com toda a sabedoria, só para a morte não há solução.


123 Mergulhou os pés no mistério, e nada mais. Não que o mistério fosse pouco profundo, ele é que era muito cauteloso, que mergulhar num mistério não é tarefa fácil. Que o digam os que decidiram mergulhar de cabeça! Os que tiveram sorte atravessaram-no sem mais, como se nada fosse, mas os outros, esses, nunca mais regressaram. Por isso resolveu ser metódico, e todos os dias mergulhou um pouco mais no mistério, até só ficar com a cabeça de fora. Depois… depois passou a fazer parte do mistério, que é o que acontece àqueles que pensam que os mistérios têm soluções.


124 Ele sabia muito bem que o único conselho verdadeiro que alguém pode oferecer aos outros é que não se devem dar conselhos. Mas era um homem voluntarioso e tinha dificuldade em estar calado, o que muitas e muitas vezes lamentou. No entanto, verdade seja dita, nunca ninguém lhe deu ouvidos.


 125 Sabedoria

Simplesmente, seja o que é, mesmo que nada seja, disse o mestre, e sorriu. O aluno sorriu também, em silêncio, e pisou-lhe com força o pé até que as lágrimas lhe lavassem o sorriso. Depois foi-se embora, não sem antes lhe ter dirigido respeitosamente as seguintes palavras: Aprendi consigo a falar e a estar calado, que maior sabedoria poderia almejar?


126 Lembro um homem que muitas vezes pensava em mudar, e com tanto empenho o fazia que pouco tempo lhe restava para mais alguma coisa. Não é pois de estranhar que tenha permanecido sempre o mesmo, o que até seria de louvar não fosse ele continuar a desejar ser outro, o que afinal o impedia de ser ele próprio. É afinal o que acontece a todos os que não se mantêm livres para serem eles mesmos.


127 O aluno perguntou ao velho mestre qual o significado do zen, mas ele nada respondeu. O aluno insistiu ainda, mas o mestre permaneceu em silêncio. Estava praticamente surdo, mas nada tinha perdido da sua sabedoria.


128 Estava muito infeliz, e só esse sentimento existia para si. Recordou então os dias em que fora feliz e, por momentos, voltou a sê-lo. Depois, numa súbita inspiração, antecipou os dias em que seria feliz, e assim continuou para sempre.


V

129 Na primeira pessoa

Naquele dia, tal como tantos outros, saí do escritório por volta das sete horas. Era ainda de dia e estava calor. Desci até ao parque e sentei-me numa das esplanadas em redor do lago. Pedi um gin tónico e bebi-o em pequenos goles metódicos. Pedi outro, bebi-o da mesma forma e deixei que os meus pensamentos flutuassem sem controlo. Foi só quando me levantei e me encaminhava para o carro, estacionado ali perto, que me apercebi que não sabia onde morava. E não se tratava de não conseguir dizer o nome da rua ou da porta e em que zona da cidade ficava mas sim, tão só e apenas, não ter a mínima recordação sobre o assunto. Em algum lugar havia de morar, mas onde? Sabia o meu nome, data de nascimento, filiação, estado civil, profissão — confirmei apressadamente o meu bilhete de identidade — mas não conseguia dizer a minha morada nem me lembrava de nada que me pudesse ajudar a descobri-la. Percorri os meus documentos mas nada encontrei. Estava a começar a perder o controlo. Entrei no carro e arranquei sem destino confiando nos meus instintos. Mas apesar de conseguir visualizar facilmente a cidade, com as suas zonas e as suas saídas, sentia-me perdido. No cruzamento da rua 5 com a rua 12 despistei-me e fui embater num poste de iluminação. Desmaiei. Retomei consciência muito tempo depois, mais precisamente doze anos depois. Os médicos mostraram-se muito preocupados mas eu assegurei-lhes que me sentia bem. Uma semana depois deixaram-me sair. Entrei no táxi e dei a minha morada ao condutor. Finalmente ia voltar para casa.


Cruzeiro Seixas

 Ouvir.