Nada é simples quando se trata de palavras.
Quando se trata de palavras até a palavra simples é complicada.
um blog de Luís Ene
segunda-feira, 30 de junho de 2014
19
A arte é sempre um puro processo
de teimosia, de rigor, de autoconsciência,
quer seja escrever um poema, quer seja
limpar o chão da cozinha. Processo lento
mesmo quando avança rápido,
processo feito de pequenos gestos
mecânicos que a si mesmos se corrigem,
processo maior em que te envolves
cada vez mais até seres tu próprio
o processo.
Paulo Serra
Poderia escrever alguma coisa sobre o Paulo Serra e a sua arte, mas não o vou fazer, vou apenas deixar aqui a indicação do local onde podem espreitar a sua arte.
Contactem-no, visitem-no, olhem a sua arte e ouçam-no falar dela. Tal como eu fiz e disso dei eco num conjunto de poemas de que deixo aqui um apontamento.
do pensamento
Contactem-no, visitem-no, olhem a sua arte e ouçam-no falar dela. Tal como eu fiz e disso dei eco num conjunto de poemas de que deixo aqui um apontamento.
POÉTICA
1.
Gere o teu silêncio
com parcimónia
Faz frente ao som
da tua inquietude
Diz-te no intervalo
do teu ser profundo
Muito antes das palavras
já o universo
se contradizia
2.
Vai além das aparências
Há sempre luz e sombra
É tão fácil ver quanto
é cegar
Vai além de ti próprio
O caminho só aparece
se escolheres não saber
aonde vais
Em frente ao medo
enfrenta o medo
O poema é sempre
uma clara evidência.
3.
Tem cuidado com as
palavras
As palavras são sempre
frágeis
As palavras são sempre
perigosas
O poema é sempre um
campo minado
COINCIDÊNCIAS
O pintor e o poeta escrevem e
pintam da mesma forma os mesmos conteúdos
eles olham e olham e olham e focam
e desfocam vezes sem conta a mesma
realidade
até que por detrás do presente o
passado se esconde por completo sem ser
visto
é apenas intuído numa perfeita
coincidência de acasos
a que muitos chamam mundo interior
latente pulsante
onde todos os excessos rebentam em
serenos fogos de artifício
e os objectos nada mais são do que pura cor e as palavras nada mais são
do que fátuos e luminosos pensamentos
A MÃO QUE TUDO VÊ
O olhar leva as mãos
à cabeça
num claro gesto
de impotência
A mão que escreve
a mão que pinta
é a mesma mão negra
que desafia
a cegueira da folha
em branco
O que a mão não vê
os olhos não sentem
As mãos fazem sempre a
multiplicação
domingo, 29 de junho de 2014
18
Muito do que te acontece pode
parecer-te imprevisto, mero resultado
do destino ou do acaso, mas a
verdade é que tu estás a caminho.
Podes até não ter escolhido o
caminho, mas escolheste caminhar.
Podes até não saber aonde esta
atitude te levará, mas sabes
que, chegues onde chegares, será
sempre a ti que
chegarás.
sábado, 28 de junho de 2014
17
Às vezes penso em quem fui e em quem
serei um dia, porém sei que só interessa
quem somos hoje, não quem fomos
ontem, nem quem amanhã seremos,
porque quem somos hoje, inclui quem
fomos ontem e quem amanhã seremos
Mesmo que nos esquecêssemos de
quem fomos e deixássemos de sonhar
quem seremos , ainda assim seríamos,
a cada momento, quem somos hoje,
quem fomos ontem e quem amanhã
sexta-feira, 27 de junho de 2014
16
A poesia ajuda, é verdade, a
poesia ajuda mesmo quando destrói,
ajuda até tanto mais quanto mais
destrói, o preconceito, a angústia,
o medo, a firme certeza de um
mundo dual, regido por um pensar
lógico que ignora os sonhos
que sonhamos acordados.
quinta-feira, 26 de junho de 2014
15
O que não gosto nos outros, até
o que nos outros odeio, descubro-o
quase sempre em mim, mais ou menos
activo, muitas vezes apenas latente.
Por isso é que compreendo com facilidade
os outros, por isso é que julgo e censuro
com facilidade os outros, por isso
é que não os desculpo.
quarta-feira, 25 de junho de 2014
14
Queres escutar-te, mas não consegues
deixar de te dizer. Forças-te ao
silêncio, afastas de ti as palavras,
uma a uma, porém elas logo regressam,
e tu acolhe-as em ti com redobrada
alegria. Percebes que dizeres-te
é afinal a tua forma de te escutares.
terça-feira, 24 de junho de 2014
segunda-feira, 23 de junho de 2014
INSCRIÇÃO ENCONTRADA NUMA PAREDE INTERIOR DE UMA CASA EM RUÍNAS
Está decidido. Vou matá-la e mato-me de seguida. Amo-a
tanto. Desprezo-me tanto. O amor pode ser uma doença. Vou matá-la por amor e
mato-me de seguida por desprezo.
12
Para alcançar o equilíbrio bastam
três pontos, explicas-me, e um deles
és tu próprio. Fico a pensar nisso
e também como na vida todo o
equilíbrio é um constante jogo de
desequilíbrios, de instáveis e necessárias
compensações, que tentamos com
diligência harmonizar em nós,
como livros arrumados numa estante.
Todo o equilíbrio é dinâmico,
aprendeste há muito, o que não quer
dizer que não possas alcança-lo, mas
tão só que tens de o procurar uma e
outra vez, com teimosia, labor diário
que só terminará na última página.
domingo, 22 de junho de 2014
11
Estou a atravessar um período
difícil, costumo responder quando
me perguntam como vai a vida.
E então dizem-me que tenha calma,
que as coisas vão melhorar, que um dia
vou ter tudo o que desejo e outras
coisas que tais. Calo-me e sorrio,
sorrio sempre. Sei há muito, a vida
é uma simples sucessão de períodos
difíceis, que enfrento como um sorriso.
sábado, 21 de junho de 2014
10
Num mundo de constante tensão,
num mundo de eterno conflito, como
se pode estar tranquilo, como se pode
encontrar a paz? Talvez a única
forma seja não pensar, evitar
comparações, contraposições,
evitar evitar, sentir apenas,
sentirmo-nos parte de um todo
que se pensa sem pensar
cada uma das suas partes.
sexta-feira, 20 de junho de 2014
09
A dor não é uma inimiga, a dor
é uma má amiga, uma óptima
professora. Não confundas as coisas,
uma coisa é uma coisa, outra
coisa é outra coisa. Não confundas
felicidade e saber. Podes ser
feliz sem o saber, que é o modo
mais infeliz de felicidade; podes
ser infeliz e sabê-lo, que é o modo
mais feliz de infelicidade.
quinta-feira, 19 de junho de 2014
08
Extraordinária capacidade ou
simples deformação muito aquém
do poema, muito aquém do real,
é no olhar que a poesia primeiro
se revela. Olhar incomum de homens
e mulheres comuns, olhar comum
de homens e mulheres incomuns,
é ele que diz o mundo sem o nomear,
mundo anterior às palavras,
mundo mistério que os olhos vêem,
mas de todo não
dizem.
quarta-feira, 18 de junho de 2014
07
É tão fácil compreender quanto
é difícil compreender. Não percebes
porquê? Talvez porque não seja do domínio
da compreensão, mas do domínio
da fé. E a verdade é que tu preferes
duvidar a acreditar, ainda que,
em ti, tal não seja mais do que acreditar
na ilimitada superioridade
da dúvida. Pois eu duvido, sobretudo,
da própria capacidade
de duvidar, e essa é talvez a minha
maior certeza. Duvido muito, é verdade,
mas acredito ainda mais, muito,
muito mais.
terça-feira, 17 de junho de 2014
06
A dor e a alegria não são a mesma coisa,
partilham talvez a mesma matéria-prima.
Há dor na alegria, como há alegria
na dor. Uma e outra são conteúdo
e contentor. Os melhores poemas,
disse-me uma vez um poeta, e eu
não acreditei então, riem e choram,
são dor que nos faz rir, são riso
que nos faz chorar. Na vida não é
diferente. A dor e a alegria
não são as duas faces da vida,
a dor e a alegria são aquilo
de que a vida é feita.
segunda-feira, 16 de junho de 2014
05
Está tudo no olhar. Até os cegos
olham. Está tudo no ver. Até
nas trevas nos conseguimos ver.
No princípio é sempre o olhar, nada
mais do que o olhar, o ver vem depois,
vem sempre depois, depois do olhar e
antes do fazer, ou não fazer. O
poema pode ser cego mas tem
os teus olhos. O poema pode
ser obscuro mas nunca é invisível.
Está tudo no olhar, não estás a ver?
Então olha!
domingo, 15 de junho de 2014
04
estamos sós, a solidão é um problema
porque nunca, mas nunca, estamos sós.
Para combateres a solidão de nada
te serve afastares-te de ti. Para
venceres a solidão de nada te serve
aproximares-te dos outros. A solidão
não se vence nem se combate, a
solidão aceita-se. Aceita-se a
solidão como se aceita um
poema que não se procurou e
que, no entanto, se escreveu
em nós.
sábado, 14 de junho de 2014
3
Não há princípio nem há fim, existem só
princípios e fins. Cada princípio anuncia
um fim, cada fim revela
um princípio.
Na vida, como na escrita, é sempre
tão difícil terminar quanto é fácil
continuar. Porque todos sabemos,
mesmo quando de todo o ignoramos,
que não há princípio nem há fim
2
Não quero saber o que é o amor,
quero apenas senti-lo. Mas como
posso senti-lo, interrogo-me,
se não sei o que é? A verdade é
que não sei nem me interessa. Não sei
o que é o amor nem quero saber,
quero apenas senti-lo, quero apenas
vivê-lo, quero apenas interrogar-me
se o que sinto é mesmo
amor.
sexta-feira, 13 de junho de 2014
A POESIA AJUDA TANTO MAIS QUANTO MAIS DESTRÓI (poemas de autoajuda)
1
Pratico, com tenacidade, a
indiferença. Procuro, sempre,
manter-me indiferente, ainda
que assim não me sinta. Edifico a
indiferença como quem constrói
um poema, como quem ergue um
muro. Com um grande cuidado,
com um extremo cuidado. Muro que
me protege. Muro que guarda em
mim, intacta, toda a minha paixão.
terça-feira, 10 de junho de 2014
segunda-feira, 2 de junho de 2014
POEMA PROGRAMA
não escrevo para que me leiam
Escrevo para escrever-me
escrevo tão só para me ler
Se me lerem, quem sabe
talvez se leiam também
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