segunda-feira, 14 de setembro de 2009

FRAGMENTOS DE UM DIÁRIO QUE NÃO ESCREVI
Luís Ene

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Dizem que todos os escritores são tristes e atormentados. Não é verdade, é que não é mesmo verdade. Mas eu sou, triste e atormentado. E além disso escrevo: textos tristes e atormentados como eu. Não escrevo para me aliviar, nem mesmo para me equilibrar, escrevo para sustentar a dor.

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Caminho; caminho e escrevo. As palavras e as frases confundem-se com os meus passos, a minha respiração, os olhares em redor, as paragens e os recomeços. Escrevo; escrevo e caminho. Textos pequenos e intensos que escrevo e esqueço e de novo escrevo, uma e outra vez. Escrevo com o corpo.

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É fácil dizer que naquele dia chovia, chovia muito, e me senti triste, muito triste como se fosse eu que chorasse. É fácil, é muito fácil, escrever um texto e ficar surpreendido com a beleza e o mistério que afinal só em nós existe. É fácil, tão fácil, dizer e escrever o que sabemos que sabemos.


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Num fim de tarde cinzento, ergo os olhos aos céus e sou surpreendido por um enorme arco-íris, quase por cima de mim. Parei a olhá-lo. Senti então… mas como é que eu explico isto… como se aquele enorme arco-íris, mesmo ali à minha frente, não fosse um arco-íris, mas um presságio. Continuei a olhá-lo. Senti então… mas como é que eu explico isto… como se através dele, o meu olhar conseguisse chegar até mim, ao mais oculto de mim. Olhei-o ainda, até quase desaparecer. Senti-me então… como me sinto agora, incapaz de explicar o que senti. Por isso decidi escrevê-lo.

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Atravesso a avenida num domingo de manhã. Acordei há pouco. Apetece-me um café. Paro a meio, na divisória, e espreito os carros que se aproximam pela direita. Depois olho para o passeio do outro lado, a duas faixas de distância. Um instante. Um carro passa, dois pequenos pássaros voam, junto ao asfalto, como que brincando. Um instante. Um dos pássaros desaparece debaixo da roda traseira, ali mesmo à minha frente. Um instante. Uma pequena mancha de sangue. Um farrapo de penas. Um instante. Vida. Morte. Antes. Depois. Um instante. Aqui, onde termina a escrita, começa o que não consigo dizer.

Cruzeiro Seixas

 Ouvir.